“Sociedade Pólis Litoral Ria Formosa ter-se-á esquecido da legislação que protege os camaleões”

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“Estudei o assunto e verifiquei que assim acontecia, efetivamente. E que, para além disso, havia lei nacional que até lhes dava mais atenção, cuidados e proteção do que às mães solteiras ou aos doentes terminais”, conta, em entrevista à Algarve Vivo, o advogado António Cabrita, defensor da Câmara Municipal de Olhão no processo das demolições de habitações na Ilha do Farol, travado em nome da defesa do camaleão. E avisa que ao abrigo do Decreto-Lei nº. 140/99, transporto de uma Diretiva Comunitária com vista à preservação desta espécie, “o camaleão nem sequer pode ser incomodado ou perturbado nos seus locais de repouso nem os seus ‘habitats’ podem ser danificados ou destruídos”.

 José Manuel Oliveira

 O advogado António Cabrita, responsável pela providência cautelar interposta pelo Município de Olhão, a qual – ao invocar que a destruição das construções do núcleo da Ilha do Farol coloca em causa o ‘habitat’ do camaleão – impediu, pelo menos no dia 27 de abril, a posse administrativa de algumas habitações por parte da Sociedade Polis Ria Formosa, aguarda “uma reação processual” dentro em “breve” daquela entidade e garante nada ter de pessoal contra o seu dirigente, Sebastião Teixeira, embora admita tratar-se de um “mero comissário e executor de ordens e decisões superiores”, como sublinha em entrevista concedida à Algarve Vivo.

Isto, numa altura em que lamenta haver “explicações vagas, genéricas e sem consistência”, as quais, nota, tanto se aplicarão à Ria Formosa, como ao Rio Gilão ou à Ria de Aveiro.

Afinal, como surgiu a ideia de travar o processo das demolições na Ilha do Farol, utilizando a defesa de uma espécie como o camaleão e que, pelos vistos, permitiu por decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé adiar os trabalhos da Sociedade Pólis Ria Formosa?

“Começo por esclarecer que não há ainda qualquer decisão do Tribunal de Loulé quanto à providência cautelar intentada. Nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, para um tipo de providência cautelar (suspensão de eficácia do acto), a simples citação da entidade que proferiu uma decisão que se perspetiva não estar em conformidade com a lei impede-a de praticar ou de prosseguir o acto que emana dessa decisão. Foi isso que aconteceu. A Polis Litoral Ria Formosa foi citada em 24 de abril de 2015 para responder a uma providência cautelar de suspensão da eficácia da decisão de tomada de posse administrativa e posterior demolição de construções nas Ilhas Barreira da Ria Formosa, o que iria acontecer a 27 de abril e em 4 de maio. Por força da citação efetuada, a Polis ficou impedida, legalmente, de praticar aqueles atos agendados”, explica o advogado.

E acrescenta: “Mesmo assim, funcionários da Polis e uma força da Polícia Marítima por aquela requisitada compareceram na Ilha do Farol, no referido dia 27, para a tomada de posse administrativa das habitações. Foi necessário, a partir do local da pretendida intervenção, requerer ao Tribunal, expondo a situação que decorria, que tomasse urgentes medidas para impedir aquela tomada de posse das habitações por parte da Polis, uma vez que já estava proibida de fazê-lo em virtude da citação ocorrida. O Tribunal prontamente comunicou por meios expeditos à Polis e à Polícia Marítima o despacho de que aquele acto administrativo não podia acontecer. Foi tão só isto que se passou”.

António Cabrita aproveita para reforçar as suas críticas: “O que é lamentável é que os dirigentes de uma entidade administrativa, que é suposto conhecerem a lei (ou ter juristas que os informem e aconselhem adequadamente), persistiram na prática de um acto, ainda por cima com a requisição de força policial, quando sabiam (ou tinham a obrigação de saber) não poder fazê-lo. Foi por isso – e depois de pedir ao comandante daquela força policial que confirmasse o recebimento do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal – que tive de avisar que se alguém da Polis, ou pessoas a seu mando, efetuasse um só auto de tomada de posse administrativa das habitações, deveria ser detido pelos membros dessa mesma força policial em flagrante delito por crime de desobediência. Só assim se retiraram do local”.

Camaleão está sujeito a proteção rigorosa por Diretiva Comunitária

Ao se debruçar sobre a defesa do camaleão em face da legislação existente, o causídico recorda diversos aspetos do Decreto-Lei nº. 140/99, transposto de uma Diretiva Comunitária, com vista à preservação desta espécie, quando o PS estava no Governo, e lança novas críticas em várias direções: “A proteção e salvaguarda do camaleão ilustram bem como actuam algumas entidades públicas (ou com poderes públicos) no nosso país. Em 1999, no âmbito de profusa legislação ambiental, foi publicado um Decreto-Lei (o 140/99) que transpôs uma Directiva Comunitária qualificando o camaleão comum (a espécie que existe no litoral algarvio) como um animal de interesse comunitário e sujeito a proteção rigorosa. Prevê esse Decreto-Lei que o camaleão nem sequer pode ser incomodado ou perturbado nos seus locais de repouso nem os seus ‘habitats’ podem ser danificados ou destruídos; qualquer intervenção em local onde existam camaleões e o seu ‘habitat’ fica sujeita a um plano rigoroso de defesa dos camaleões, seus ninhos e ovos, chegando-se ao ponto de se exigir um levantamento do número de animais existentes e uma indicação do número deles que poderá ser sacrificado com a intervenção pretendida. A elaboração e apresentação desse plano destina-se à obtenção de uma licença especial passada pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas. São as autoridades ambientais portuguesas, nos prospetos informativos que divulgam sobre a necessidade de proteção dos camaleões, que os situam no sotavento algarvio, e em particular na mata de Vila Real de Santo António/Monte Gordo e nas ilhas barreira da Ria Formosa. É a GNR do ‘Ambiente’ que autua quem captura, detém, destrói ou molesta os camaleões. Ora, a Polis Litoral fez barcaças de estudos e de planos de intervenção, muito rebuscados e cheios de lugares comuns, sempre invocando a necessidade de renaturalização das ilhas barreira e preservação dos seus ‘habitats’ e espécies naturais e, pelo que me foi dado constatar, ter-se-á “esquecido” da existência daquela lei que protege de forma especial os camaleões e dos indispensáveis plano de proteção e licença específica de intervenção no local”.

Na mesma linha de raciocínio, adianta: “E agora, confrontada com a providência cautelar, vem a Polis Litoral afirmar em comunicado que as casas que pretende demolir não constituem ‘habitats’ dos camaleões. Pois não; de facto, os camaleões não residem nessas casas nem são considerados animais domésticos. Mas uma vez mais se revela a falta de conhecimento científico e empírico daquela entidade. São vários os estudos, nacionais e estrangeiros, que localizam o ‘habitat’ dos camaleões nas árvores e nos arbustos juntos das habitações existentes nas ilhas barreira, árvores e arbustos que os seus proprietários e utilizadores aí plantaram; são também esses estudos que situam os seus ninhos e posturas na areia mole e sombreada que fica debaixo dessas árvores e arbustos, mais precisamente debaixo das folhas caídas. E, em visita aos locais, é precisamente isso que, com alguma atenção, se constata nas ilhas barreira, designadamente na Ilha do Farol. Ora, só quem desconhece a propriedade de mimetismo daqueles animais é que pode dizer que não vê nenhum camaleão naquelas ilhas”.

Insistindo num rol de críticas, o advogado do Município de Olhão destaca: “Ao tomar conhecimento que nas demolições anteriormente efetuadas nos ilhotes, vários cadáveres de camaleões foram vistos no arrastamento do entulho, que as vegetações junto das construções tinham sido também arrancadas e arrastadas, imagine os ninhos e os ovos que terão sido destruídos. E era isto que, sem o tal plano de proteção, iria com toda a probabilidade acontecer nas restantes demolições: o extermínio dos camaleões nas ilhas barreira da Ria Formosa. E a Polis não pode vir agora argumentar que a renaturalização pretendida com as demolições terá como consequência também o desenvolvimento e a proteção daquela espécie e do ‘habitat’ natural. Então, para garantir o desenvolvimento e a proteção dos camaleões é preciso, primeiro, dizimá-los? Porque é que a Polis não assume, pura e simplesmente, que errou e se esqueceu, ignorou, desvalorizou ou até mesmo que desconhecia a indispensabilidade de elaboração e aprovação de um plano específico para a proteção do camaleão na intervenção preconizada para as demolições das ilhas barreira? É que, ao que me foi dado ler na abundância de todos os estudos, planos de intervenção e projetos feitos, a questão do camaleão nunca foi sequer referida; e nem agora a Polis se atreve a afirmar ter então cuidado desse aspeto ou dá garantias que os empreiteiros a quem os trabalhos foram adjudicados irão observar escrupulosamente a proteção dos animais e dos seus ‘habitats’, o que não vem contemplado no caderno de encargos dessas adjudicações”.

António Cabrita lembra que a ideia da proteção dos camaleões até lhe foi dada “por um amigo que me referiu pensar ser uma espécie protegida por leis comunitárias”.

“Estudei o assunto e verifiquei que assim acontecia, efetivamente. E que, para além disso, havia lei nacional que até lhes dava mais atenção, cuidados e proteção do que às mães solteiras ou aos doentes terminais. Por isso se avançou com uma ação popular de defesa do ambiente. Como se ensina nas artes marciais, a maior parte das vezes derruba-se o adversário utilizando a própria força deste; neste caso, demonstra-se à Polis que, afinal, os seus abstratos e teóricos argumentos ambientais cedem perante um concreto argumento também ambiental”.

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“Não sei” que futuro para a Ria Formosa

 

Algarve Vivo – Que reação espera e quando por parte dos responsáveis da Sociedade Pólis Ria Formosa?

António Cabrita – Espero naturalmente uma reação processual, da qual irei ser notificado. Não sei quando, talvez em breve, atenta a natureza urgente do procedimento cautelar intentado.

AV – As casas estão condenadas a ser mesmo demolidas ou o camaleão é que irá salvá-las? E que outros argumentos poderá ainda utilizar para evitar o derrube de habitações?

AC – Não sei. O que posso dizer é que a providência cautelar pressupõe a existência de uma ação principal. Nessa discutir-se-á a essência das questões em causa, por exemplo, se a decisão da Polis de tomada de posse administrativa e demolições das habitações, sem aquele específico plano de proteção dos camaleões, é válida e legal; ou mesmo se a Polis reúne competências, ou observou todos os formalismos legais e administrativos necessários para a validade da decisão que tomou. É matéria a discutir nessa ação principal e, a final, o Tribunal decidirá. A providência cautelar é apenas o meio adequado para evitar que, praticados os actos contemplados na decisão da Polis, não se torne inútil uma futura decisão do Tribunal que julgue inválida a decisão administrativa de onde emanaram as demolições. E, depois delas efetuadas, pouca ou nenhuma utilidade teria a decisão que as julgasse ilegais.

 

AV – Como perspetiva o futuro da Ria Formosa?

AC – Não sei. Diria, fazendo alguma piada, que depende principalmente das marés e dos ventos. Já o meu pai me dizia que os recortes das ilhas e dos ilhotes e a configuração da Ria modificavam-se e variava ao longo dos tempos. Veja as fortalezas (por exemplo, o forte de São Lourenço) que desapareceram por submersão; veja areais que aumentaram e outros que encolheram; veja cabeços de areia que emergiram e outros que submergiram. E eu, desde que conheço a Ria Formosa e dela tenho uma noção precisa, já verifiquei muita mudança. A Ria Formosa e os seus ilhotes, ilhas, cabeços, regatos e canais de navegação já não são os mesmos que me lembro existirem quando criança.

Mas dependerá também da ação humana, em segundo grau; a riqueza da ria (sal, algas, peixe, marisco, bivalves, etc.) pode perigar com descargas nocivas, com despejos não tratados, e até com definição de políticas aparentemente protetoras. Desta última situação, dou-lhe o exemplo dos Pinheiros de Marim. Sempre os conheci como local de piqueniques e de passeio dos olhanenses; não havia vedações e o local estava limpo e minimamente cuidado. Alguém entendeu que não, que era preciso preservar aquele espaço natural da perturbação humana. Tudo sempre em nome da proteção do ambiente e da natureza. Vai daí, vedaram-se os Pinheiros de Marim e construi-se aquilo a que se chama agora a sede do Parque Natural da Ria Formosa, em local onde já não era permitido construir.

E, com a pretensa proteção do ambiente e da natureza, limitou-se e controlou-se o acesso e o contacto dos cidadãos com aquele espaço que os olhanenses sempre consideraram e desfrutaram e usufruíram. Temo que possa repetir-se esta situação com a Ria Formosa e com os seus encantos e recantos.

 

Presidente da Pólis Litoral “parece mero comissário e executor de ordens e decisões superiores”

 

AV – Como comenta o facto de a Câmara Municipal de Faro, por maioria, ter pedido a demissão do presidente da Sociedade Polis Ria Formosa, Sebastião Teixeira? E de um vereador considerar que aquele responsável “perdeu o controlo da situação” e revela “falta de controlo psicológico” no processo de demolições nas ilhas barreira?

AC – Não comento. São questões que me ultrapassam e que nem me interessam diretamente. Não tenho nada de pessoal contra o presidente da Polis Litoral, nem sequer o conhecia e só contactei com ele, direta e pessoalmente, cerca de 30 minutos no episódio da tentativa de tomada de posse administrativa das habitações da Ilha do Farol. É muito pouco para pronunciar-me sobre o seu “controlo psicológico”. Até nem sei se é dele a responsabilidade da omissão de apresentação de um plano de proteção e salvaguarda dos camaleões…

E como não deponho por ouvir dizer, não comento nem refiro o que outros me possam ter dito sobre o comportamento do senhor engenheiro Sebastião Teixeira em todo este processo.

 

AV – Qual é a avaliação que faz sobre a conduta do presidente da Sociedade Polis Ria Formosa?

AC – Como já respondi, não avalio. Tenho a opinião pessoal que o chamado processo de demolições poderia ter ocorrido com maior transparência e mais diálogo. Mas não sei se é o presidente da Polis o responsável por isso, parecendo-me antes ser um mero comissário e executor de ordens e decisões superiores. Mas posso muito bem estar equivocado.

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Estudos indicam que “não é o fator humano (nem as construções) o principal responsável pelo estado da ria e dos ilhotes”

 

AV – Como avalia todo este processo em torno das demolições de habitações, que se arrasta há anos por parte de sucessivos governos?

AC – Julgo que nunca terão sido devidamente ponderados, equacionados e equilibrados os interesse em causa, designadamente os conflituantes. Parece-me que sempre pontuou a falta de diálogo e, sobretudo, convenientes e convincentes explicações sobre o assunto e sobre as pretendidas intervenções. E quando não se sabe explicar, não se consegue explicar ou não se quer explicar, o diálogo ou não acontece ou, acontecendo, não gera resultados.

Acho que se perdem (e fazem outros perder) energias demasiadas com pseudo problemas, quando há verdadeiros e graves problemas que este país tem de enfrentar e resolver. Não sei se as demolições são ou não necessárias para a renaturalização das ilhas e ilhotes da Ria Formosa.

Confesso que o que pude colher pelas atentas leituras do Plano Estratégico da Parquexpo, dos vários estudos efetuados e dos projetos de intervenção nas ilhas e ilhotes foram explicações vagas, genéricas e sem consistência, que tanto se aplicarão à Ria Formosa como à Ria de Aveiro como ao Rio Gilão; basta adaptá-los.

Mas o que ressalta desses estudos é que até se afirma, com alguma enfâse, que não é o fator humano (nem as construções) o principal responsável pelo estado da ria e dos ilhotes e pela situação que se diz querer corrigir com as demolições. E, se há outras medidas a tomar, porquê começar logo com esta, a que levanta maior celeuma? E quando as explicações não são bem dadas é difícil aceitar as medidas que não se logrou compreender.

 

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