100 anos de histórias do ‘Tio João das Laranjas’

Texto e foto: José Garrancho


Nascido em Vale d’el Rei, tinha apenas oito meses quando o pai faleceu. A mãe voltou a casar e ele foi enviado para casa dos avós maternos, quando tinha ano e meio, e por eles foi criado. “O meu avô vivia da agricultura, mas tinha uns bens bons, fazendas grandes. E levava-me sempre atrás, para qualquer lado. Quando ia fazer qualquer coisa nas fazendas, enxertar árvores ou receber as rendas de duas casinhas térreas que tinha em Lagoa, lá ia eu com ele”, recorda.

Nesta entrevista, o ‘Tio João das Laranjas’, como é conhecido, conta o seu percurso e 100 anos cheios de histórias, com imensas vitórias, mas também de algumas grandes perdas. Perdeu quatro filhos em acidentes de viação e tem duas filhas ainda vivas. A 12 de dezembro celebra o seu centésimo aniversário, reunindo familiares e amigos.

Aprendeu muito com o seu avô?
É verdade. Olhe, foi por andar sempre com ele que aprendi a não gostar de habitações para ganhar dinheiro. Tenho várias casas, mas não me dá para as arrendar.

Porquê?
Ia com o meu avô e um inquilino pagava dez escudos e o outro doze e quinhentos. Faziam uma lamúria e era raro quando davam o dinheiro à conta. O que pagava doze e quinhentos raramente dava mais do que dez escudos. O outro, passavam-se meses sem pagar.

Chegou a frequentar a escola?
Sim, quando tinha seis anos. E ainda sei várias lições daquele livro muito bom, que ensinava os moços que tinham posses de apanhar aquelas palavras. Eu tinha. Com seis anos, já lia o livro todo.

Fez a quarta classe?
Fiz. Nessa altura, o Salazar abriu escolas por todo o lado com as regentes. Fiz a primeira e a segunda classe na escola da Prazeres. Depois, havia outra mais perto, nos Lombos, mudei para lá e fiz o exame da 3ª classe. Elas andavam às guerras umas com as outras, porque tinham de ter X alunos para ganhar o ordenado. As escolas para a 4ª classe já não eram essas, eram as escolas oficiais. A minha avó levou-me a uma e o professor disse que não me podia aceitar, porque não tinha mais carteiras. Entretanto, a professora da 3ª classe veio dizer ao meu avô que havia uma vaga na 4ª classe em Lagoa. Ele ainda foi a horas, mas apanhei um professor terrível, que dava 25 reguadas em cada mão.

Como foi esse ano da quarta classe?
Aconteceu um caso interessante. Comecei logo a ter alcance na aprendizagem. O professor ditou um problema a um aluno no quadro. O moço não soube fazer e foi mandado para um canto. Foram mais três, com o mesmo resultado. Mas eu, mal ele ditou o problema, dei logo com a resolução. Quando me chamou, resolvi logo, sem dificuldade. O homem desatou à pancada com os quatro moços, que eles até se meteram debaixo das carteiras para não apanhar. Aquilo era terrível. Naquele tempo, os professores podiam fazer aquilo, porque não eram condenados. Hoje, são os moços, ou os pais, que dão pancada nos professores. Mas, três meses antes do exame, o professor abandonou a escola e abriu uma loja de roupa em Lagoa. Os meus colegas apoiaram-se em mim para ditar os ditados e eu ensinava-os. Quando fomos a exame, eu estava com medo de ficar mal. Então a mãe de outro aluno ensinou-me uma oração, eu rezei-a e não me custou nada. Tinha as respostas todas na ponta da língua. E ainda sei a oração toda.

PASSAGEM POR LISBOA
O que se seguiu quando saiu da escola?

Com 10 ou 12 anos, já era atrevido a fazer negócios. Comprava bicicletas velhas e vendia-as aos moços. Tinha uma tia casada, que vivia em Lisboa. O marido vendia frutas e legumes na praça 24 de Julho. Quando já tinha 15 anos, chamaram-me para ir para uma escola profissional. Ficava com eles e não pagava cama nem mesa. Mas fui um mês antes da escola abrir e comecei a andar por lá.

A estudar a vida da cidade grande, não era?
Mais ou menos. E um dia vi um indivíduo a lavar garrafas. Que garrafas eram essas? Era no tempo da guerra, não havia matéria-prima para fazer garrafas e eles lavavam para usar outra vez, com vinho ou outras bebidas. Perguntei a quanto comprava e respondeu que era a 24 tostões cada uma. “E se eu arranjasse algumas, o senhor comprava?”, perguntei. Ele disse que sim. Arranjei um saco, fui Lisboa fora e consegui 10 garrafas, a 10 tostões cada uma. Fui lá levar e ele comprou e pagou. Ganhei logo 14 escudos, enquanto um homem a trabalhar de enxada ganhava para aí 15 ou 20 escudos diários. Fui logo comprar mais.

Um ‘moço’ de Lagoa, com 15 anos, a fazer negócio em Lisboa…
Depois, a escola abriu, mas só lá fui cinco dias. No primeiro até aprendi a regra de três simples. Mas, em vez de ir à escola, ia comprar garrafas, para ganhar dinheiro. Foi quando o meu tio me disse: “Queres ir para a escola ou para o Algarve? Tens de decidir”. Respondi que queria voltar.

Voltou então às origens?
Trazia uns tostões, mas apanhei uma tarefa! A guerra ainda estava forte e não havia pão, não havia nada. O meu avô já tinha morrido e a avó era velhota. Falei com ela e pedi-lhe licença para cozer pão no forno dela. Fui falar com o António Aleixo, que tinha os moinhos de maré junto ao rio, por baixo de Estômbar. Ele ia buscar o trigo e levava a farinha a casa dos fregueses. Eu já o conhecia e perguntei-lhe se me vendia duas sacas de farinha, 10 arrobas. Disse que lhe pagava logo, mas ele tinha de ir levá-las a minha casa, porque eu não tinha via. E assim aconteceu.

Não me diga que, aos 15 anos, se tornou padeiro?
É verdade. Sozinho! Desde fazer o fermento, a massa para levedar, peneirar a farinha, amassar, tender e cozer, fazia tudo. Tinha aprendido à do meu avô como se fazia, porque todas as semanas se cozia pão. Tinha lá uma burra, albardava-a, colocava o pão no seirão e ia vender por todo o lado. Havia um indivíduo em Ferragudo que vendia pão e, quando soube disto, disse ao meu tio que comprava, se eu quisesse. Comecei então a levar-lhe uma carga de pão todas as semanas. A estrada para Ferragudo era de chão batido. Quando chovia muito, eram covas cheias de água, que parecia gelo. Tinha de ir a pé.

Isso era um trabalho pesado…
Se era! A minha avó não tinha relógio. O meu relógio era uma estrela. Ia vender o pão a Ferragudo e vinha ver nascer o sol a Lagoa. Naquele cruzamento para Carvoeiro, havia uma venda de um indivíduo chamado Pinto Rocha. Eu comprava sempre uma batata-doce cozida e um copo de aguardente e ficava pronto para o dia.

A sua vida era só trabalho?
Comecei a namorar as moças e casei com 21 anos. Casei a 6 de dezembro e fiz os 22 anos a 12. E armei-me logo em lavrador. Já tinha já uns bens, porque o meu avô da parte do meu pai também tinha fazendas, uma em Vale d’el Rei e outra nos Salicos. Aos 21 anos, tomei posse, mas aquilo era coisa pouca. Então, arrendei uma fazenda nos Lombos e combinei com um vizinho para fazer o que se chamava ‘torna-boi’. Comprei uma vaca e ele outra e, depois, um fazia três dias de lavoura com os dois animais e o outro fazia os outros três. Já era uma moda antiga.

E foi assim que se lançou como agricultor?
Foi, mas a fazenda era de um tio meu, que foi arrendar uma horta do capitão Jesuíno, para os lados da Mexilhoeira Grande. Mas a mulher era de Lagoa, de famílias com padarias e mercearias, não sabia nada de agricultura e ele disse-me que eu tinha de arranjar outra coisa, porque ele ia voltar para a fazenda. Eu tinha uma casa velha nas terras do meu avô, mandei um pedreiro aconchegar aquilo e mudei-me para lá. Pela herança, tinha sido dividida para dois: uma parte para mim e outra para um tio meu, que já tinha falecido. Vivia lá a viúva com os filhos. Combinei logo fazer ‘torna-boi’ com essa senhora. Um dia, fui ao mercado do Algoz e comprei 12 porcos. Mas avisei logo em casa para guardarem os bicos de favas, que eles adoram. Vim desde o Algoz atrás dos porcos e cheguei ali com eles todos. Com a fome que traziam, atiraram-se aos bicos das favas e até roubavam uns aos outros.

O senhor João não parava. Atirava-se a todos os negócios!
Pois não! E essa senhora, que ia ser minha sócia na agricultura, apontou para um porco e perguntou-me quanto queria por ele. Pedi um preço, ela ofereceu-me outro e eu disse que não vendia. Mas depois comecei a pensar que já ganhava dinheiro pelo valor que ela me oferecia e, para não perder de fazer o ‘torna-boi’, vendi. Ela levou-o para a pocilga dela, mas o porco, sozinho, não comia nada. Veio dizer-me que não queria o porco e que tinha de lhe devolver o dinheiro. E eu disse-lhe que não. Que o fosse ela vender a quem quisesse. Aí começou a guerra. Era vésperas da feira de Silves e um primo da minha mulher veio dizer-me que tinha duas vacas para vender e que eu as podia levar, que logo lhe pagava, evitando o ‘torna-boi’ e obtendo maior lucro. Com a ‘marafação’ dos porcos, comprei as vacas. Logo a seguir, veio a feira de Lagoa, vendi a vaca que já tinha, e não me fazia falta, por dois contos e setecentos e paguei logo três contos, ficando só a faltar 500 escudos, que paguei pouco tempo depois.

ARTE DE NEGOCIAR
Sempre foi bom negociante…

Pois fui e deixava tudo desnorteado. Ainda me fizeram uma, que nunca contei a ninguém e lhe vou contar agora. Havia um pocilgo rente à estrada, vinha para casa com as vaquinhas da lavoura, não sei se foi ela ou algum dos filhos, jogaram-me um ‘rabolo’ que me passou rente à cabeça. Se me acerta, caía logo ali. Não quis saber de mais nada e fui logo à busca de uma fazenda noutro sítio e arrendei uma ao pé de Ferragudo e ali comecei. Era uma terra fraca, mas eu já tinha grandes conhecimentos e fiz aquilo dar tudo e mais alguma coisa. Estive lá uns três ou quatro anos e criei uma grande fama. Havia em Ferragudo um comandante da marinha mercante e a senhora dele era dona de várias fazendas. Pedi a um quinteiro dela – os quinteiros convidavam os patrões para padrinhos dos filhos – que pedisse à comadre para pedir ao marido um lugar para mim na marinha mercante. Ela disse-lhe para eu lá ir a casa. Fui e ela perguntou-me: ‘Então você é que é o Zé João?’. Disse-lhe que sim e perguntou-me se eu queria ir para a má vida. “Você tem aí um nome e uma admiração e quer deixar. Eu não peço nada ao meu marido.

Ficou desiludido?
Não! Comecei a arrendar fazendas. Peguei numa ao pé de Alfanzina, outra ao pé de Carvoeiro, outra do mesmo dono no Mato Serrão e não larguei a de Ferragudo. E ainda arrendei outra, muito grande, que ia da estrada velha para Ferragudo até ao Poço dos Pardais, quase em Estômbar. Cheguei a ter três arados de vacas e já tinha dois homens a trabalhar para mim. Era um grande entusiasmo, mas trabalhei muito, sozinho a limpar a terra para as novas sementeiras. Ia apanhar erva azeda, punha um seirão por cima, a erva azeda a deixar correr a água, chegava a casa todo molhado. Uma vez apanhei uma broncopneumonia. Foram chamar o doutor Grade quando eu já estava de cama e ele disse-me que eu estava muito mal, que a casa era ruim e que eu morria ali e levou-me para o hospital velho de Lagoa. Ele ia lá todos os dias, tratou-me e, ao fim de oito dias, estava fino.

E como mudou do sequeiro para o regadio?
Havia um indivíduo em Estômbar que tinha uma horta nova e pequena e perguntou se eu a queria arrendar. Fui ver e ele pediu-me cinco contos e nem menos um tostão. Aceitei e, no dia seguinte, apanhei logo as laranjas todas, porque estava na altura de as apanhar, e vendi-as por dez contos. E disse-me: “Isto é que é bom, depois de tantos anos no sequeiro”. Comecei a arrendar hortas, à carta fechada. Mas a primeira foi dura. Foi uma horta de tangerinas setubalenses, rente à ribeira de Silves, que era de um homem de Lagoa, dono de uma adega com um vinho famoso. Soube que ia ser arrendada e fui. Era à carta fechada e quem pusesse mais dinheiro é que ficava. Eu ainda não percebia nada daquilo e pus 15 contos a mais do que os outros. O homem, quando abriu as cartas, perguntou-me onde é que eu ia vender as tangerinas. “No Canadá, senhor José Cândido”, respondi-lhe. “Ah! Em dólares? Está bem”, disse ele, a rir.

Quer dizer que perdeu dinheiro?
Não perdi. O contrato era pagar metade na altura e o resto no fim de abril. Eu já tinha um pé-de-meia e paguei tudo antes de começar a apanhar a fruta, deixando-o boquiaberto. Comecei a colheita a 6 de janeiro, dia de Reis, e ganhei dinheiro. No outro ano, houve um concurso muito forte desse Zé Cândido, de Lagoa para o lado da Canada. Uma horta enorme, com alguns 40 hectares. Era à carta fechada, mas havia uma multidão de gente, aí umas 40 pessoas. Andava lá um tipo de Lisboa, que veio numa carrinha e que percorria as ruas e depois parava e começava a escrever, a fazer contas. Estávamos um grupo de três amigos e um disse que o tipo da carrinha iria ficar com a horta. Eu não disse nada, mas pensei se não seria eu a ganhar o concurso. A horta tinha sido arrendada no ano anterior por três mil contos. Mas eu tinha lá ido no dia anterior, tinha contado muito bem as árvores, avaliado a produção e já sabia mais ou menos quanto podia oferecer. O que tinha arrendado no ano anterior fez uma proposta de três mil e dez contos. Eu ofereci três mil e onze contos e duzentos e cinquenta e sete escudos e cinquenta centavos.

E continuou?
Sim, comecei a arrendar outras, mais e mais e duas ao pé do Algoz. Uma delas, que era da irmã do Zé Cândido. Já era tarde quando soube que ia a concurso, só tinha para aí uma hora de sol. Ia um homem comigo, que depois ficou muito tempo a trabalhar para mim. Ele tinha uma bicicleta a motor e levei-o para o meio da horta. Mandei-o ir na motorizada contar metade da horta e fiquei com a outra metade. O processo era contar as árvores de uma fileira e o número de fileiras. Ganhei, mas fui aselha e deixei outro indivíduo ficar com o arrendamento, para evitar discussões.

Depois começou a comprar as propriedades, em vez de as arrendar?
Sim, mas só depois do 25 de Abril, quando os ricos começaram a vender as fazendas. As que tenho, para cima de 100 hectares, eram todas dos ricos. E são quase todas aqui ao redor. Só tenho uma mais longe, que pensei que vendia aos turistas, mas nunca vendi.

Só laranjeiras e tangerineiras?
As tangerineiras já desapareceram, porque as tangerinas tinham caroços e as senhoras não as queriam. Tenho clementinas e limoeiros. E também figueiras.

Como tudo tem um fim, teve de passar o leme do barco a outros mais novos…
Quando tinha 93 anos, tive um grave acidente na passagem de nível de Estômbar. Encandeei-me com o sol, não vi que a cancela estava fechada, entrei com o jipe e fui apanhado pelo comboio. Pensei que já não recuperava e arrendei as hortas aos meus netos, Miguel e Nuno. Eles, agora, é que mandam.

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