Uma viagem pela história de Lagos

Texto e foto: Rafael Duarte


A fachada moderna é o primeiro sinal de mudança no Museu de Lagos Dr. José Formosinho, que ganhou uma vida nova depois de quatro anos de trabalhos de reabilitação.

“Os visitantes vão encontrar algumas peças que antes passavam despercebidas ou nem sequer estavam expostas e algumas novidades que chegaram por empréstimos de longa duração ou doações”. Quem deixa o convite é Elena Moran, arqueóloga e responsável pela arqueologia urbana e pelo museu.

A reabilitação do espaço foi efetuada no âmbito do Programa Operacional CRESC Algarve 2020, representando um investimento total de 7,3 milhões de euros, financiados em 2,6 milhões pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.

“Queríamos dar condições aos visitantes porque o museu tinha muitos problemas estruturais e havia muitas carências na iluminação. Mesmo ao nível dos acervos era necessário manutenção e restauro”, conta Elena Moran.

“Os algarvios vão encontrar algumas peças que antes passavam despercebidas ou
nem sequer estavam expostas”

O processo de renovação começou em setembro de 2017 e terminou no dia 27 de outubro deste ano, quando o museu voltou a abrir. Durante estes quatro anos, a equipa aproveitou para estudar a coleção. “Interviemos em todas as peças, mas tivemos um trabalho ainda mais aplicado nas que já estão na exposição. Na fase de investigar fizemos muitos contactos e chegámos a falar com várias entidades só por causa de uma peça. Por outro lado, também era necessário fazer um trabalho de restauro e nesse sentido contratámos equipas próprias para o efeito porque eram muitas peças”.

A história
O museu recebeu autorização para ser construído em 1930 e um ano depois abriu portas ao público. Ao longo dos anos ganhou outros espaços até chegar ao atual.

O grande impulsionador doprojeto foi o Dr. José Formosinho, que fazia várias campanhas em Monchique, Portimão, Vila do Bispo ou Aljezur como arqueólogo e juntou diversas coleções com o intuito de as expor mais tarde. Agora o museu quis aproveitar esta remodelação para prestar uma homenagem ao seu fundador e esse tributo começa pelo novo nome: Museu de Lagos Dr. José Formosinho.

“Quando foi construído tinha um carácter regional que se nota pelas coleções arqueológicas de vários pontos do Algarve. Fizemos vários núcleos dentro do museu e vamos criar mais com a ideia de mostrar que não são núcleos independentes, mas é tudo o Museu de Lagos. Não é um edifício, são vários”, refere Elena Moran.

Mas as homenagens não ficam por aqui. Pela importância que assume, o Dr. José Formosinho também é quem nos “abre as portas”. Um retrato do próprio, condecorações, algumas pinturas, que era a faceta menos conhecida do arqueólogo, e um vídeo que nos mostra como era o museu na altura encontram-se na nova entrada. “Em 2021 a museografia é diferente, mas mesmo assim nós queríamos manter a essência do museu e manter a ligação que ele sempre teve com a comunidade”, explica a responsável.

“Queríamos dar condições aos visitantes porque o museu
tinha muitos problemas estruturais e havia muitas carências na iluminação”

Visita guiada
Um dos objetivos da equipa na renovação era dar espaço às peças para respirarem. Na entrada, onde está a sacristia que foi expandida e renovada, isso é percetível porque o portal que antes passava despercebido agora mostra bem os seus pormenores. “Remonta ao século XVI e corresponde ao primeiro edifício contruído fora das muralhas. Foi a primeira peça que o Dr. José Formosinho planeou trazer para o museu. Mas ele já tinha essa ideia desde 1928”, conta.

Passando o portal começa a viagem no tempo e o ponto de partida é o século XVI, quando a cidade era capital militar do Algarve. “Lagos era importante do ponto de vista político e económico, foi o momento de maior esplendor”, recorda a arqueóloga, e conseguimos perceber isso graças a algumas peças únicas do século XVI como azulejos ou quadros. “Este era um sítio fundamental, onde havia muitas trocas comerciais e circulava bastante dinheiro, pois era um dos principais portos. Também por isso chegaram ao museu peças que nem a equipa conseguiu ainda descobrir de onde vieram. Mas já detetámos algumas vindas da China, de Itália e do norte da Europa”. O terramoto de 1755 acabou por mudar este cenário de riqueza e a cidade não conseguiu voltar a ser esse ponto militar e cultural. A tecnologia entra em cena quando acompanha estas peças e ajuda-nos a perceber a sua história com esquemas e animações que simplificam a explicação.

A visita continua e chegamos a um dos pontos de referência deste museu. “Esta é a parte que faz a ligação mais direta com a comunidade”, conta a arqueóloga.

São peças que as pessoas ofereceram ao longo dos anos porque achavam que tinham algo importante ou curioso e queriam partilhar com outros. Desde peças africanas a outras curiosas ou coleção de fósseis e história natural. Entre as aberrações estão um burro que morreu com 15 dias, um gato com dois focinhos, um cão com três olhos, um gato que não tem olhos e boca, uma sardinha gigante, um pinto com quatro patas, um borrego com um olho ou a famosa cabra de oito patas.

“A cabra é uma aberração total. A equipa de biólogos, do Museu Nacional de História Natural, que trabalha com estas coleções para as limpar, achou que era uma peça curiosa não só pela aberração, mas pela forma como foi conservada”, refere Elena Moran.

E nem tudo é feito de doações do povo. Também está nesta parte do museu uma coleção científica. “As peças que têm um pau no meio foram preparadas como coleção científica. E as peles dos pássaros também. Ainda não sabemos como chegaram ao museu, mas esperemos ter uma resposta, até porque o museu quando abriu portas houve muita gente a dizer-nos que tínhamos peças que pertenciam às famílias delas”.

Por entre pinturas e esculturas, encontramos depois uma árvore que chega ao telhado e reúne das mais diversas peças de artesanato. Mesmo com a máscara o ‘cheiro’ a Algarve invade-nos.

“São peças fabricadas, mas não usadas. É importante lembrarmo-nos da relação entre a escola industrial de Lagos e os professores. O ensino doméstico passou para um ensino formal com a perspetiva de levar os alunos a saberem criar peças que possam ir ao encontro da moda. A própria escola tinha o cuidado de saber o que estava em voga em todas as partes do mundo e trazer catálogos. Apostar muito na formação e no desenho”, explica a responsável.

Quer isto dizer que aquilo que vemos hoje não vem necessariamente da atualidade: “Na década de 2000 os artistas começaram a querer trabalhar com os artesãos, mas esta moda já estava a ser produzida em Lagos na década de 30”. E nos ramos desta árvore encontramos ainda peças que foram fabricadas para os oleiros de Lagoa mostrarem as suas capacidades e as primeiras produções do doce D. Rodrigo, da família Taquelim, de Lagos.
Segue-se uma maquete sobre uma cidade imaginária e peças que remontam aos tempos militares. E daí passamos para o final da visita onde se encontra a igreja, também ela renovada.

“Em 2021 a museografia é diferente, mas mesmo assim nós queríamos manter a essência do museu e manter a ligação que ele sempre teve com a comunidade”

“Foi necessário fazer a limpeza da talha com algumas consolidações pontuais. Ao reconfigurar todo o retábulo identificámos um frontal de altar que estava escondido. É um duplo frontal de altar que está pintado sobre tela a imitar um tecido de damasco. De um lado vermelho e do outro verde. Mas o grande investimento na igreja foi o projeto eletrotérmico porque a igreja não estava bem iluminada. Neste momento podemos ver tudo, todos os pormenores arquitetónicos, na talha, os azulejos, a própria pintura”, descreve.

O próximo passo
Boa parte do trabalho de renovação já está feito, mas ainda falta dar o próximo passo. O museu vai ser ampliado para o outro lado da estrada onde funcionava antigamente a esquadra da PSP.

Os dois edifícios, separados por uma curta rua, remontam a duas torres que pertencem ao recinto fortificado medieval e que protegiam a porta Norte, que era a porta da Vila.

“Com esta ampliação e remodelação o que se pretende é valorizar a porta da Vila porque ela está associada ao Infante D. Henrique, o Navegador. Temos um episódio de Lagos que nos fala da primeira grande venda de escravos no porto de Lagos que sabemos que até ao momento foi a primeira grande venda que se fez na Europa. Foi nesse porto e aconteceu nas portas da Vila. Por isso queremos que as pessoas se identifiquem com este ponto”, explica Elena Moran.

Este novo espaço que está a ser preparado vai funcionar como uma prequela em relação ao renovado museu porque vão estar expostas peças desde a pré-história até à morte do Infante D. Henrique, em 1460, sendo que o núcleo atual reúne objetos depois da sua morte e conta ainda com coleções especiais.

Junto à antiga esquadra da PSP encontra-se outro edifício que será utilizado para exposições temporárias. O projeto não vai ser feito apenas das obras do passado e pretende trazer várias atividades.

“O museu quando abre tem um trabalho feito dentro de portas. A atividade prende-se com a investigação e partilha de conhecimentos. Até ao fecho havia conferências, exposições e concertos. A ideia é dar continuidade e ampliar isso”, garante a responsável, que analisa estes dias desde a reabertura e fala de um feedback muito positivo.

“As pessoas que passam por cá parecem satisfeitas e sorridentes. O que nos chega é que os visitantes gostam muito do resultado final”.

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