Aguardente de Medronho é tradição secular em Monchique
A aguardente de medronho faz parte da identidade cultural e gastronómica da vila de Monchique e representa uma tradição secular que tem vindo a passar, religiosamente, de geração em geração.
Texto: Marisa Avelino
Fotos: Paulo Arez e André Mota
Poucas são as pessoas que não conhecem o ex-líbris da serra algarvia e menos ainda são as que nunca o provaram. Segundo os entendidos, a apanha do medronho constitui a parte mais importante de todo o processo de fabrico da tão cobiçada aguardente.
Durante largos anos, bem antes de se falar em legalizar destilarias, a maioria das famílias monchiquenses, principalmente as mais antigas, fazia a sua própria aguardente de medronho, aproveitando o fruto, de forma esférica e cor avermelhada, que a serra ainda hoje dá em abundância. Era raro que alguém não tivesse em sua casa uma garrafa, daquele líquido suave à vista e forte ao paladar, para oferecer um copo às visitas, família e amigos, acompanhado com uns biscoitos que serviam para suavizar o sabor forte da aguardente
Ainda hoje isto se verifica. Sempre que se sobe à serra para visitar os familiares, ou em momentos de lazer entre amigos, o convívio é regado com aguardente de medronho ou, a não menos famosa, melosa. Mas lá iremos
Como se produz, então, este precioso néctar? Cada um tem a sua própria maneira de fazer a aguardente, mas a verdade é que o processo de fabrico é basicamente o mesmo, não se tendo alterado com as normas que obrigam à legalização das destilarias, nem com a passagem de testemunho entre gerações.
“O processo é artesanal e tem-se mantido. A legalização veio melhorar as condições de higiene da produção, o que permite um aumento da qualidade do produto”, explica José Paulo Nunes, presidente da Associação dos Produtores de Aguardente de Medronho do Barlavento Algarvio (APAGARBE), à Algarve Vivo
“Houve pessoas, mais antigas, que, de facto, deixaram de produzir mas também é verdade que muitas voltaram à produção”, afirma.
Apanha, fermentação e ‘estila’
A apanha do medronho acontece entre outubro e dezembro. O fruto deve estar maduro e ser apanhado sem pés nem folhas. Para muitos, esta é a parte essencial de todo o processo, pois vai influenciar a qualidade da bebida no fim. Depois, segue-se a fermentação que vai até março/abril. Neste período, o medronho é conservado em barris de plástico ou em tanques de madeira. Os reservatórios devem ser cobertos com frutos esmagados e estar bem vedados para evitar o contacto com o ar.
Deve haver, ainda, um pequeno respiradouro para o gás sair. Finalmente, segue-se a ‘estila’, o fabrico propriamente dito, da aguardente de medronho. Nesta fase, o fruto fermentado é lentamente destilado em alambiques de cobre, preferencialmente de cano direto porque é de fácil limpeza. A caldeira também deve estar sempre bem limpa antes de cada ‘estila’, pois só assim se evita que o cobre passe para a aguardente. Na fornalha é aconselhado o uso de madeira grossa de medronheiro ou de sobreiro.
O processo da ‘estila’ consiste no aquecimento feito em lume direto, seguindo-se o arrefecimento do líquido que acontece através de um tubo de cobre mergulhado em água fria corrente, contida num recipiente próprio, e, por fim, a recolha da aguardente num cântaro de barro.
Na recolha verifica-se inicialmente a chamada ‘cabeça’, que se deve rejeitar por conter excesso de gases indesejados, depois o ‘coração’, a aguardente bebível (que corresponde a cerca de 80% do destilado) e, por último, a ‘cauda’, ou a aguardente ‘frouxa’ que é utilizada para juntar à destilação seguinte.
“Há um provérbio escocês que explica como funciona a destila do ‘whisky’ e que também se aplica à aguardente. ‘Corta-se a cabeça e o rabo e fica-se com o coração’. Resumindo, é isto”, conta José Paulo Nunes.
Finda a recolha, a aguardente é engarrafada. Há quem a envelheça em barris durante aproximadamente oito anos para aumentar a sua qualidade. A aguardente de medronho tem um sabor característico e é muito apreciada junto dos conhecedores que a consideram de qualidade quando é transparente e com o cheiro e o gosto a fruta. Normalmente, a graduação da aguardente de medronho ronda os 50% de teor alcoólico, embora existam algumas que chegam a rondar os 56%. No entanto, a sua comercialização faz-se entre os 40 e os 50%.
Melosa, um segredo bem guardado
Um alambique típico do Algarve é constituído por uma caldeira em cobre, uma cabeça feita em aço inox, um tubo ou uma serpentina e um recipiente onde circula a água que vai refrigerar o sistema. Entre a caldeira e a cabeça é vulgar encontrar um filtro de carbonato de cálcio, se pretende atenuar a acidez, ou de carvão natural ativado, se há aromas a retirar ao destilado. O sistema de refrigeração pode ser um tubo retilíneo (usado em Monchique) ou uma serpentina (usado na Serra do Caldeirão). O tubo é indicado para se conseguir uma boa limpeza e, consequentemente, obter uma aguardente de medronho com menos teor em cobre. Por outro lado, o sistema da serpentina é o que permite uma refrigeração mais eficaz e com menos perda de aromas.
Outra das bebidas muito apreciada pelos residentes e turistas de Monchique, é a doce melosa, uma bebida espirituosa que deriva da aguardente de medronho.
Sabe-se que “o segredo é a alma do negócio” e, por isso, José Paulo Nunes apenas refere que à aguardente mistura-se, posteriormente, mel, limão e canela a gosto. Mais uma vez, cada um tem a sua maneira própria de a fazer, ou seja, o seu segredo que, tal como o fabrico da aguardente de medronho, vem sendo transmitido de geração em geração.
Loja do Mel e do Medronho
Isabel Cristino Medronho Silva está a dar os primeiros passos como produtora de aguardente e não descura os ensinamentos do sogro, Gil José Inácio, 56 anos, que é, afinal, o mentor de toda a produção. Durante alguns anos, produziram para consumo próprio e estão agora a comercializar aquele que é o ‘néctar’ mais cobiçado da região. Mais alguns passos na escolha e certificação do nome e têm a sua marca de aguardente na Loja do Mel e do Medronho, em Monchique, ao alcance de qualquer pessoa.
Neste espaço, onde todos os produtos são da região, estão representadas 25 marcas de aguardente de medronho, seis de melosa, duas de mel de multiflora, à base de rosmaninho, e várias compotas e geleias feitas por Júlia Inácio. Os doces são feitos com fruta da época, o que faz com que seja possível adquiri-los ao longo do ano.
A Loja do Mel e do Medronho abriu portas em Julho de 2011 e tem como principais objetivos a promoção e venda da aguardente de medronho de qualidade, e seus derivados, e de mel bem como a divulgação das marcas dos produtores. Este espaço veio dinamizar a economia da vila proporcionando, também, o escoamento dos produtos de alguns produtores que, por produzir em pequenas quantidades, não os conseguiriam vender no mercado.
Desta forma, a loja funciona como uma “mostra daquilo que se produz na vila através de produtos locais de tradição”. Para que os clientes estejam cientes da qualidade de cada artigo, todos os dias há um produtor em destaque e, por isso, o público tem a oportunidade de provar os seus produtos, adquirindo-os com algum desconto.