José Luís Grosso, um vendedor de conservas ‘à moda antiga’

Texto e Foto: José Garrancho


Nasceu a 6 de novembro de 1951, em Ferragudo, e é um verdadeiro escorpião, como iremos ver ao longo desta entrevista. José Luís Grosso vive na Figueira desde 1968, mas nunca se tornou um verdadeiro habitante. “Para mim, isto é um dormitório. Não vou a cafés, nem frequento o clube. Se tivesse possibilidade financeira, mudava-me para a terra onde nasci e cresci e que está permanentemente no meu coração”, diz. Há 40 anos que labuta quase sem descanso, fornecendo as melhores conservas de peixe que se produzem em Portugal, este comerciante e diz não merecer o título de empresário, mas sim “o de Trabalhador” com ‘T’ maiúsculo, podendo ser designado também por Resistente.

Diz-se um resistente. Porquê essa designação? Tem sido assim tão mau?
Tenho procurado suprir o meu insuficiente coeficiente de inteligência para o exercício da espinhosa missão que tenho levado a cabo com determinação, fibra de lutador e a minha tenacidade. São estas as características essenciais para lograr atingir estes 40 anos de uma atividade tão absorvente. Os meus clientes não se dão conta do privilégio que é terem, a nível do Barlavento algarvio, um cidadão que faz os impossíveis para arranjar determinadas especialidades, que depois me pedem em quantidades diminutas, enquanto eu tenho de fazer encomendas grandes, porque as fábricas me impõem determinadas quantidades mínimas. Se calhar, só vão saber, quando eu entregar a pasta.

O que é, para si, um empresário?
É aquele cidadão que agarra numa empresa e consegue projetá-la e arranjar postos de trabalho. Logo, não me enquadro nessa categoria.

O seu pai era comerciante, em Ferragudo?
É verdade. Tinha uma mercearia no Largo Rainha D. Leonor que está representada no painel que existe na zona ribeirinha, em homenagem ao operário conserveiro. Viemos para a Figueira, porque a minha mãe era herdeira deste terreno, hoje urbanizado, mas que era rural, com figueiras, amendoeiras e alfarrobeiras. O meu pai abandonou Ferragudo, quando começaram a aparecer os primeiros estrangeiros e conservo a triste imagem da malta, de ‘pata descalça’, atrás dos turistas, a pedir dinheiro. Mas há recordações boas. Jogávamos à bola, sem as restrições que há hoje. A sociedade mudou completamente.

Como é que se meteu neste negócio das conservas de peixe?
Nunca me passou pela cabeça andar a ‘enganar’ o próximo. Mas não há indivíduo mais sério do que eu. Pode haver igual. Logo, não corro o risco de vir a enriquecer, porque também não jogo na lotaria, nem vou ao casino. E poucos enriquecem a trabalhar honestamente.

Então, como foi o seu início de vida profissional?
O primeiro emprego foi na farmácia da D. Hermínia Mergulhão, em Portimão, no célebre ano de 1966, marcado pela nossa primeira presença no Mundial de futebol, em Inglaterra, do qual guardo gratas recordações. Trabalhei lá três meses no Verão e o meu primeiro salário foram 100 escudos. Era o estafeta. Quando não havia um medicamento na farmácia, ia correndo a caminho da Sulfarma buscar o produto.

E depois?
A 17 de outubro de 1967, dois dias depois da feira de Ferragudo, que já não se realiza, assentei praça no Filipe Correia, Lda. Fui para a secção de peças, mas passados poucos dias já estava cá em baixo, como apontador e controlador. Era eu quem marcava o ponto dos operários e a folha de obra para os carros e tinha de estar atento quando eles iniciavam e terminavam o trabalho em cada viatura. Saí de lá no dia 31 de julho de 1971 e entrei logo no Jorge Alexandre, que era sobrinho do Filipe Correia, mas com quem se desentendeu e foi trabalhar por sua conta, no outro lado da rua. Estive lá até ir para a tropa, em 1972.

Então, era militar, quando se deu o 25 de Abril?
Era, mas passou-me ao lado. A minha especialidade era amanuense, estava em Faro, mas fora do quartel, no Comando Territorial do Algarve. Encontrava-me em casa, de licença, e continuei. Graças ao 25 de Abril terminei mais cedo o serviço militar obrigatório e voltei ao Jorge Alexandre. E saí de lá porque, entretanto, comecei a tomar consciência da minha cidadania, a participar e envolvi-me de tal maneira que passei a ser considerado subversivo, porque ia às reuniões do sindicato e, quando havia greves, tomava posição e ia falar com a malta. Passei a ser considerado uma espécie de agitador, embora não tenha peso nenhum na consciência. Fiz sempre o meu melhor, enquanto lá estive e nunca gostei de bandalhices. Nem naquele tempo, nem hoje. Mas fui marginalizado e, por três vezes, o patrão aumentou os vencimentos e deixou o Zé Luís na mesma. Às tantas, cansado da situação, e como era solteiro e não tinha família para sustentar, pedi a demissão.

O que se seguiu?
Tive de agarrar no que apareceu e estive cerca de dois meses na Sulfarma, a ajudar um amigo e meu antigo professor. Mas a empresa fechou e tive mais uns quantos empregos, até entrar nesta atividade.

Como se iniciou nas vendas?
A minha primeira experiência foi em 1981 com máquinas e ferramentas. Andava com uma carrinha carregada de rebarbadoras, berbequins e outras máquinas do género. Tinha um vencimento muito escasso e três por cento de comissões sobre as vendas. Para tirar um vencimento digno desse nome, tinha de suar as estopinhas. E nem me pagavam as refeições. Nos primeiros três dias só andei a consumir combustível, porque estava com um medo terrível de encarar os clientes. Não percebia nada daquilo, para poder responder às perguntas que me faziam sobre o funcionamento das máquinas.

Mas deu a volta à situação?
Sim, comecei a dizer, quando me faziam as perguntas, que estava ali para vender e não para dar explicações. Mas, brincando, comecei a vender ao nível do vendedor antigo da firma. E só podiam comprar com dinheiro. Apenas as Câmaras Municipais tinham crédito. O patrão não queria saber de reclamações, quando alguma máquina não estava a trabalhar em condições e eu é que ficava mal perante as pessoas. Pedi a demissão. Na empresa seguinte, ainda foi pior, pois ficaram a dever-me as comissões, cerca de 170 contos. O meu último emprego foram os últimos seis meses de 1983, como encarregado do armazém da manutenção do Hotel Alvor Praia, onde também havia falcatruas com as quais não concordava. E despedi-me, porque eles não gostavam de gente séria.

Considera-se – e repete-o constantemente – um homem honesto?
As coisas são para se cumprir. Não é por acaso que as fábricas do Norte me enviam mercadoria. Para mim, 30 dias de crédito podem ser 29, 28 ou 27. Mas, para certa gente, podem ser 60, 90 ou 120. Essa é a parte mais dolorosa da minha missão. Embora eu esteja todo escanastrado, em termos da coluna, a parte mais ingrata que tenho, na minha atividade, é ter de chamar a atenção do meu cliente para me pagar, porque não tenho outra fonte de rendimento, além do meu trabalho. E quando deteto um engano, seja a meu favor, seja contra mim, chamo sempre a atenção do meu cliente. Nunca me aproveitei dos erros dos outros.

Já vimos que não se conseguiu adaptar bem como trabalhar por conta de outrem. Como se iniciou por conta própria?
Comecei com o meu irmão mais velho. Mas aquilo foi uma coisa feita em cima do joelho e só trabalhámos juntos pouco mais de três meses, porque ele era um pouco autoritário. Punha-me as coisas no armazém e dizia-me “vende isto a x e aquilo a y e o outro a z”. Eu não sabia nada de nada, às vezes ia às compras e queria dinheiro para pagar as faturas, mas ele é que punha e dispunha. Era uma situação insustentável e, entretanto, os meus 300 contos já estavam empatados em mercadoria. Quando nos separámos, ficaram lá. Tive de recomeçar da estaca zero. A única facilidade que tive foi o meu pai me facultar um armazém inacabado e comecei a vender de tudo um pouco, no ramo das mercearias. Nem uma percentagem eu sabia fazer, mas depois aprendi.

As conservas sempre foram uma das suas imagens de marca…
Sim, entretanto as grandes superfícies, os tubarões, foram tomando conta disto e vi que não podia continuar com o negócio dos chamados produtos essenciais. Sempre tive as conservas como cartão de visita, mas iniciei-me na pior altura, quando as fábricas começaram a fechar no Algarve. Então, tive de ir ao Norte dar-me a conhecer. Havia determinadas especialidades que o meu o pai e os meus irmãos nunca sonharam vender, porque não se fabricavam no Algarve, onde se abasteciam. A primeira compra por minha conta ocorreu no dia seguinte à Festa do Avante de 1984, nos armazéns da Coresa, em Camarate. Comprei atum em lata, ‘Ás do Mar’ para a restauração.

Hoje, há imensas variedades de conservas de peixe, não há?
Sim e o fabrico também é diferente. Já vendi lampreia, vendo lingueirão, salmão, atum com laranja e canela, atum em azeite, em posta e em filetes, atum à algarvia, atum com azeite virgem extra e endro bio, para as lojas gourmet, atum com feijão frade, atum com tomilho, raia com molho pitau, sardinha de caldeirada e de escabeche, bacalhau com grão, etc., etc.

E qual é a sua zona de atividade?
Faço o Barlavento algarvio, de Aljezur a Albufeira. Mas quando vou para o concelho de Aljezur, entro no litoral alentejano e vou até à Zambujeira do Mar e, por vezes, até Almograve. Mas é um problema, porque, como é longe, levo a carrinha carregada e a mesma não está preparada para auto venda. Aqui mais próximo, faço primeiro a venda e depois vou fazer a entrega.

E quem são os clientes?
Supermercados e restaurantes, mas estes são poucos e compram principalmente as latas grandes de atum, ou as pastas de atum e sardinha. Existem algumas, poucas, exceções, como o ‘Luar da Foia’, um restaurante de referência nesta zona, que começou a fazer uns petiscos com sardinha sem pele e sem espinha, que está a resultar perfeitamente. E assim vou labutando com horários acima da média, como comprador, vendedor, fiel de armazém e empregado de escritório. E ainda dizer aos clientes que não tenho outro rendimento, além do meu trabalho. Para resumir a minha vida e dar-lhe um título, seria ‘Confesso que não vivi’, porque a minha falta de aptidão para ser gestor de empresa e os meus fracos conhecimentos informáticos obrigam-me a trabalhar muito mais. E é ser, como se pode ver, um indivíduo autêntico e espontâneo, que não aprendeu nada com o poeta António Aleixo, que disse: “Para não fazeres ofensas / E teres dias felizes, / Não digas tudo o que pensas / Mas pensa tudo o que dizes”.

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