Miguel Maia é o portimonense que dá forma à Companhia Cepa Torta

Texto: José Garrancho | Foto: Sónia Godinho


Assistir à encenação d’O Principezinho, quando era mais novo, fê-lo ter vontade de experimentar o mundo do teatro, funcionando, na verdade, como uma espécie de gatilho para seguir este percurso. Hoje, passados tantos anos, está em Lisboa à frente de uma companhia, mas não esquece a sua terra natal, onde, aliás, apresentou ‘É ou não é’, no Teatro Municipal, no mês de maio. Se tudo correr de feição, no próximo ano estreia uma nova produção na cidade.

Embora nascido em Lisboa, a sua família paterna é de Portimão. Viveu nesta cidade, durante a infância e a adolescência. Considera-se um portimonense?
Cada vez me reconheço menos como alguém que pertence a alguma zona delimitada por fronteiras, porque as regiões e os países são feitos de pessoas e dos seus valores e esses, acredito, devem ser pautados por uma ideia universalista de respeito pelo próximo e pela diferença. E depois os últimos anos têm-me demonstrado que o apego dogmático a uma ideia de grupo ou identidade são, na maioria dos casos, mais prejudiciais do que benéficos. Mas entendo a pertinência da pergunta e devo dizer que sinto saudades de estar em Portimão, de sentir o cheiro do mar, o sorriso das gentes e de passear nas ruas ao final da tarde, acompanhando o fechar das lojas e o regresso a casa, e ir tomar um café com os amigos à praia ao final de um dia de trabalho. Já vivo fora há muitos anos, e só recentemente tive vontade de voltar ‘às origens’. Se isso é ser portimonense, então sou, entre outras coisas, portimonense.

A sua primeira escolha foi engenharia? Porquê? Influência paterna?
Acho que não nos podemos nunca esquivar do exemplo de vida que os nossos pais projetam em nós, e por isso esse fator terá contado. O facto do meu pai ser engenheiro juntou-se à minha curiosidade em saber “como as coisas funcionam”, e em como arranjar soluções criativas para os problemas, que no fundo é o que os engenheiros fazem. Mas há outro fator que me parece igualmente importante e que levou a essa decisão. Na minha juventude não havia muitos locais ou iniciativas ligadas à cultura que permitissem despertar a minha vontade criativa tão facilmente. Esse é aliás um problema de assimetria de acesso que ainda hoje se verifica em muitas zonas do país que não pertencem aos centros metropolitanos de Lisboa e do Porto, e que contribuem para a dificuldade no desenvolvimento de profissionais no setor da cultura. Maravilhar as crianças, dizer-lhes que a sua voz pode ser ouvida de muitas formas, mostrar-lhes mundo e dizer-lhes que há imensas formas de nos expressarmos e que isso pode convidar outros a compreender-nos melhor, devia ser uma prioridade política do país.

Como aparece o teatro na sua vida?
O teatro sempre esteve lá, tinha a ver com o meu feitio, em que uma personalidade tímida convivia com uma imensa vontade de chegar aos outros, de comunicar numa linguagem diferente da habitual, numa em que mostrar as emoções fosse sinal de força e não de fraqueza. Eu era um miúdo com sentido de humor, mas nem sempre me sentia enquadrado e realizado nos grupos em que me inseria. E depois, embora não houvesse tantas oportunidades de contacto com a cultura e com o teatro como nos grandes centros, os meus pais levavam-me ao que havia, concertos, cinema e teatro, o que fez com que desde cedo eu olhasse para aquilo com um enorme fascínio. Mas sempre com a sensação de que não era para mim. Aquele era um lugar de libertação a que eu não acederia, era como saber que havia um tesouro escondido mas no meu mapa não encontrar qualquer local marcado com um X. Há no entanto um momento importante, em que eu fui ver a encenação d’O Principezinho, no liceu (atual Escola Secundária Poeta António Aleixo), onde a minha mãe dava aulas – no final do espetáculo, quando vinham os atores, jovens alunos, cumprimentar o público, tive uma estranha sensação de que eles, mesmo depois de deixarem o palco, pertenciam ainda a um lugar liminar, eram seres feitos de uma matéria especial, emanavam uma luz estranha que eu não conseguia decifrar. Isso fez-me ter vontade de experimentar.

E como se processou a passagem de amador a profissional?
A passagem foi gradual. Fui sempre fazendo diferentes formações na área da interpretação para teatro, desde que ainda estudava engenharia no Técnico. Quando comecei a trabalhar em engenharia, numa grande empresa portuguesa, mantive esse meu outro lado, entrando como ator em alguns projetos e ajudando a produzir outros. E depois a vida foi acontecendo, mais responsabilidades no trabalho, filhos, casa, e a dada altura era impossível manter duas atividades, pelo menos com o grau de exigência que me interessava. Eu não queria fazer teatro só por fazer, e só de vez em quando. Crescia em mim a necessidade de me envolver na criação artística, estar rodeado de pessoas com esse interesse, e tornar o teatro a ferramenta que eu usava para habitar o mundo. Um pouco como a garrafa de oxigénio do mergulhador quando vai para debaixo de água. Por isso, há pouco mais de dez anos, larguei a engenharia e comecei a trabalhar profissionalmente.

Está ligado ao Cepa Torta, desde 1999. Esta companhia já existia, ou o Miguel foi um dos fundadores? Qual o seu percurso na companhia, até chegar a diretor artístico?
Ainda em 1999, estava eu a estudar no Instituto Superior Técnico, participei num espetáculo final de um curso de teatro que fiz no Chapitô e um dos meus colegas conhecia pessoas daquele que era, nessa altura, um grupo a dar os primeiros passos no teatro amador. Entrei para o grupo e fui participando nas atividades, enquanto continuava a fazer formação noutros locais. Fizemos ou ajudámos a produzir vários espetáculos, alguns em que participei como ator, e com o andar do tempo, com a desistência de outras pessoas que foram investindo nas suas outras carreiras profissionais, acabei por ser eu a dinamizar a Companhia. Somos um grupo pequeno, mas temos feito muitas colaborações com outros profissionais e estruturas artísticas para realizar os nossos projetos.

Possui um mestrado em teatro e comunidade e é conhecido como encenador, ator, dramaturgo e programador. Trabalha em televisão, publicidade e cinema. Deve haver uma dessas áreas em que se sente melhor. Porquê?
Ultimamente o meu trabalho tem sido o de criar espetáculos e projetos artísticos com outros. Sinto-me melhor quando escrevo e enceno e por isso tenho abandonado o trabalho como ator em teatro ou televisão. Acho que isto tem a ver com sentir que tenho mais a dar na área da criação dramatúrgica do que como ator – e tal como a escolha entre a engenharia e o teatro, também aqui foi preciso escolher. O trabalho de ator é muito exigente e necessita de muito estudo, treino e tempo, que não consigo conciliar com ter ideias e desenvolvê-las em peças ou projetos para candidatar a este ou aquele financiamento. E depois sinto que foi por isso que vim “aqui” parar, ou seja, quero escrever histórias, sítios, situações, questões, e quero que outros venham comigo e embarquem nas aventuras que proponho. Nem sempre é fácil porque mesmo uma criação artística como a que eu proponho, que embora não seja de vanguarda na sua forma, pretende questionar o mundo e dizer-lhe que não está bem, está sempre em luta com uma sociedade sobre estimulada e dormente que tem pouco tempo para parar um pouco e pensar. Eu compreendo isso e quero muito que as pessoas venham ver os meus espetáculos, se divirtam e percebam que o que as afasta das salas é um preconceito infundado e que o teatro é um bem inestimável, democrático e dinâmico. Aliás com a invasão da Inteligência Artificial talvez seja das poucas atividades artísticas que nos restam em que nos confrontamos com a presença de outros como nós.

Na sua biografia, constam o teatro ‘de porta aberta’ e criações com não-atores. Poderia explicar aos leitores em que se baseiam estes princípios e quais os seus objetivos?
A ideia de ‘porta aberta’ tem a ver com a nossa visão de sermos uma Companhia que quer ter um espaço a funcionar a vários níveis, com criação autónoma e formação, e sempre de portas abertas para quem quiser espreitar, entusiasmar-se e participar. Acho que a melhor forma de trazermos público para o teatro é trabalharmos constantemente para desconstruir a ideia de que o teatro é uma linguagem artística para as elites, ou que tem um propósito que o ultrapassa, como por exemplo ser usado como mera ferramenta para conhecer autores portugueses. O teatro não pode ser refém desta ideia errada e desatualizada, que tem origem logo na escola e na forma como o teatro é usado sempre para alguma coisa, e não o de ser um fim em sim mesmo. O trabalho com não-atores é trabalho artístico realizado por um criador que recorre a pessoas que não fazem teatro de forma profissional, mas que têm essa vontade ou que são protagonistas dos temas que se vão explorar no espetáculo. Normalmente esses são processos em que a criação se alimenta diretamente da realidade e de problemáticas específicas da sociedade, como por exemplo histórias de grupos oprimidos ou em situação de discriminação, procurando através da arte dar-lhes outro tipo de voz. Nós temos criado alguns espetáculos deste género ao longo dos anos e tido a sorte de trabalhar com pessoas extraordinárias que tiveram a generosidade de partilhar as suas histórias.

Também existe um projeto com base no Alentejo profundo, na Mina de São Domingos. No que consiste e porquê São Domingos?
O projeto a que se refere é o Projeto Malacate, numa localidade chamada Mina de São Domingos, no concelho de Mértola. É um lugar extraordinário, temos estado a trabalhar lá continuamente desde 2021. O Malacate é um projeto de intervenção artística multidisciplinar, de programação e criação artísticas contemporâneas e que, com o recurso a artistas e à história da Mina de São Domingos e num continuado processo de mediação com a sua comunidade, se propõe a fazer uma reflexão sobre a memória do lugar e a criar novos olhares sobre o futuro. Os primeiros dois anos tiveram um financiamento de países do Espaço Económico Europeu, através do programa EEA Grants (apoios da Noruega, Islândia e Lichenstein) e do município de Mértola. Desenvolvemos aí atividades de criação em artes performativas e artes plásticas connosco e com artistas convidados, nacionais e internacionais, em projetos que tinham como pressuposto a participação da comunidade. Esses primeiros anos foram tão intensos e entusiasmantes que a comunidade quis muito que ficássemos, pelo que mantemos algum trabalho lá com residências artísticas e um novo espetáculo a estrear em 2026, entre outras coisas. Tudo começou com um convite da própria Câmara de Mértola, para que desenhássemos um projeto para aquela região que tivesse possibilidade de ganhar esse apoio internacional. Essa relação com aquele município vinha já de trás, quando em 2018 levámos uma série de jovens da região de Marvila a fazer uma residência artística em Mértola.

Que projetos tem em mão para um futuro próximo e quando poderemos ver o seu trabalho, novamente, em Portimão?
Estamos neste momento a trabalhar na preparação do nosso festival anual de leituras teatrais, ‘Esta noite grita-se’, que vai entrar na sua nona edição e que percorrerá uma série de espaços de Lisboa com textos teatrais lidos por atores e atrizes variados, alguns deles conhecidos do grande público. Levaremos essas leituras também a Faro e a Lagos. Continuaremos a trabalhar em mais de uma dezena de escolas onde decorre o nosso projeto Recomeçar, que leva a arte do teatro a crianças e jovens a partir dos dois anos, e andaremos em digressão por vários pontos do país com duas criações recentes da minha autoria, para crianças e jovens, ‘Konrad, ou o rapaz que saiu de uma lata de sardinhas’ e aquele que estreámos em Portimão, o ‘É e não é’, que agora irá a Lisboa, e visitará ainda Faro e Penafiel. Se tudo correr bem, e tem havido contactos nesse sentido, estrearemos no TEMPO, no ano que vem, a nossa próxima criação, o episódio final de um tríptico sobre a ideia de desejo – Estudos sobre o desejo – TOMO III – O Cyborg, e que procura perceber o que nos move, quando estamos cada vez mais interligados com a máquina. O que resta do nosso desejo se a fronteira entre humano e artificial se dilui? Irá basear-se na Tempestade do Shakespeare, cruzando-a com autores de ficção científica, e trazendo-nos a história de uma empresa de tecnologia cujos trabalhadores se veem isolados do resto do mundo por causa de uma tempestade. A forma como lidam com essa adversidade e a incapacidade de se conectarem com outros, fá-los-á virarem-se para si mesmos. Mas o que resta aí?

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