‘A Casa da Isabel’ é onde a doçaria tem mais encanto

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Portimão Jornal


‘A Casa da Isabel’ data de 1998, mas, muito antes, já a atual proprietária fazia da doçaria uma arte de eleição, numa história de contornos engraçados e que vale a pena contar, nesta viagem às origens de um estabelecimento que é uma referência na cidade de Portimão e que também ultrapassou fronteiras.

Isabel Ramos trabalhava no ramo da pastelaria, ao balcão, quando a empresa fechou. “Fiquei desempregada e acabei por pensar, naturalmente, que tinha de fazer alguma coisa na vida”, conta a própria à Algarve Vivo, rebobinando um extenso rol de boas recordações.

“Resolvi avançar por conta própria, começando a trabalhar em casa, sobretudo, para revenda. Achava que o produto que fazia era bom e que precisava de ser mais divulgado, o que, em termos de revenda, se tornava, porém, mais difícil. O espaço era pequeno e arranjei então outras instalações, com melhores condições, só que não tardou muito a que se tornasse também diminuto”.

Certo dia, ao passar pela Rua Direita, deparou-se com uma casa que não tardou a recuperar e a avançar, abrindo-a ao público, para venda direta, para dar a conhecer, em primeira mão, o que o Algarve tem de bom. “Além do Dom Rodrigo e do Doce Fino há toda uma outra parte da doçaria, muito rica, que importava dar a conhecer”.

Lendo livros e pesquisando, porque não tem formação, Isabel Ramos dava assim continuidade ao talento e bom gosto que lhe corria e corre nas veias. “A formação que tenho é a de estragar e voltar a fazer, treinando as receitas, naquilo que é a minha teoria e a minha prática. Sempre li muitos livros e fui aproveitando receitas que me foram dadas e doadas por clientes, alguns que já não estão entre nós, mas que tiveram essa gentileza”. Isabel, obviamente, não hesitou em preservar essas relíquias até aos nossos dias.

A paixão pelos bolos e pela doçaria, está visto, é enorme. Sem formação académica ou tão pouco de hotelaria, a proprietária foi ensinando a arte aos filhos, que, ainda miúdos, lhe davam uma boa ajuda. “Trabalhava sozinha, mas os meus filhos, quando chegavam da escola, ajudavam-me a descascar produtos e a lavar a louça. O meu marido também, com as cenouras e as amêndoas”, realça, com um sorriso cúmplice dessas boas memórias. Depois, quando os filhos acabaram o liceu, juntaram-se à mãe, a Sara mais dedicada à parte administrativa e burocrática e o João na pastelaria, em plena cozinha.

A outra filha, a Joana, “só ajuda quando é preciso, não seguiu o ramo e se calhar até foi sacrificada nesse aspeto, porque era a mais novinha, a mãe já trabalhava nos doces e nem sempre lhe deu todos os miminhos”. O marido ainda hoje vai metendo a mão na massa, em especial “quando estamos mais sobrecarregados”.

Publicidade assente no ‘passa palavra’
‘A Casa da Isabel’ não parou de evoluir durante estes 26 anos de existência, mantendo sempre a tradição e as caraterísticas. “Nunca procedemos a grandes alterações e a doçaria apresenta a mesma qualidade, dirigida a todos os clientes ao longo dos anos. É esse o segredo, que tem levado as pessoas a aderirem e a serem fiéis. Hoje, aliás, as pessoas têm uma noção diferente do que é a doçaria e a gastronomia, vão à procura do que é melhor e isso, convenhamos, também ajudou a fidelizar clientela”.

Isabel Ramos tem quatro empregados, dois deles na cozinha, com o filho, preparando os aclamados bolos. “Temos de tudo um pouco, mas dentro do conceito conventual e regional, muito tradicionais. O que sai mais? É um tema complexo, porque hoje são uns, amanhã outros”, comenta a especialista, sem levantar o véu. “É como perguntar a um pai qual o filho de que gosta mais”, prossegue. “Depende do gosto de cada pessoa, não há assim um que saia e se venda mais. E depende ainda do dia, da ocasião. Saem os conventuais, os algarvios, é uma mistura”, assegura, revelando que em termos pessoais o enigma não muda. “Gosto um bocadinho de tudo. De figo, amêndoa, alfarroba… embora tenham sabores distintos e definidos, como a alfarroba e o figo, de sabores fortes. Veja, é preciso saber gostar de um ou de outro, mas casam muito bem e difícil é dizer que um é melhor do que o outro. Mas eu gosto de bolos, confesso, e, embora não seja gulosa, aprecio um bom bolo. E sou um bocado crítica, ou seja, tem de ser bom e o sabor tem de ficar na boca”.

Pessoas de todo o mundo e de todos os estratos sociais visitam o estabelecimento, com destaque para os muitos estrangeiros, que já têm a casa referenciada e aconselham-na aos amigos. “Trazem o nosso cartão e mostram algum conhecimento, mesmo que seja a primeira visita, o que lhes foi transmitido por familiares e amigos. Alguns estrangeiros são residentes e passam cá temporadas, tornando-se clientes com quem estabelecemos amizade. Temos igualmente muitos portugueses, incluindo emigrantes, sobretudo através do ‘passa palavra’, que é a nossa publicidade”, considera a anfitriã.

Bem no centro da cidade, no número 61 da Rua Direita, a pastelaria fecha às quartas-feiras e aos domingos a partir das 14 horas. A afluência diária é significativa, primando, além da qualidade do produto, pela simpatia de bem receber. “Tem de existir qualidade e bom serviço para o cliente ficar satisfeito. A casa é pequena e queremos agradar a todos”. Os bolos são pequenos e grandes, até à fatia, e todos se vendem, prova de bastante “equilíbrio nas opções”. Tanto se pode beber um café e comer um bolo pequeno como partilhar um bolo à fatia ou tomar um chá e degustar o que de tão apetitoso lhe é sugerido.

Receitas recuperadas de outros pontos do país
Isabel Ramos, como já se provou, não elege um bolo como favorito, nem para si nem para o cliente. Mas se lhe pedirem um bolo tradicional, e embora hesitante, lá divulga uma lista.

“Apresento várias sugestões, como a trilogia de figo, alfarroba e amêndoa, a tarte de alfarroba ou o Bolo Real da Isabel, que comporta amêndoa, limão e canela e com recheio de ovos moles e fios de ovos. Temos o Real de Aljezur, que recuperámos a receita, com amêndoa e gila, recheado de ovos moles e fios de ovos e uma glace de açúcar. E mais o de São Brás, o Toucinho do Céu de Espiche, a torta de amêndoa, enfim, uma panóplia de doces, sejam mais ou menos doce, é tudo uma questão de gosto, tipo fazer a seleção e ver o que se encaixa no gosto da pessoa”.

Curioso é o facto de ‘A Casa da Isabel’ ter recuperado e manter como apostas várias receitas de doces de outros pontos do Algarve, como de Espiche e Aljezur, e que, na maioria, foram transmitidas por pessoas dessas zonas. “Poucos conhecem o Bolo Real de Aljezur ou a Tigelinha de Alvor, que nós também recuperámos, feita a partir de amêndoas devidamente selecionadas, com um toque de canela. É muito bom. Da zona do Louriçal, por exemplo, uma senhora que já faleceu passou-me o pastel de Louriçal, que mantenho o fabrico, apesar de não ser da nossa região”.

Entre as solicitações que lhe são feitas, Isabel só participa na Feira de Alcobaça, como sucedeu em novembro passado, mantendo viva a tradição de estar presente “numa feira especial e importante para nós”, até porque se realiza num período mais fraco do ano em termos da assistência que é preciso dar em Portimão. “Feiras no verão é mais complicado, porque há alguma sobrecarga de trabalho. Nesta fase, antes do Natal, consigo ir a Alcobaça”. Na época do Natal, naturalmente, triplicam os pedidos e o fabrico, “pois toda a gente quer um miminho para ter na mesa”, numa mescla de encomendas para todos os gostos.

Contente e feliz com a sua opção de vida, a empresária garante que ‘A Casa da Isabel’ é para durar e durar. “Espero que sim e é isso que pretendo. Faço o que gosto, e, embora às vezes um pouco mais cansada, faço tudo com gosto, até para ter a cabeça ativa. É para durar enquanto puder e com ajuda dos filhos tudo se torna mais fácil”, vinca, referindo, mais uma vez, o teor autodidata de um projeto de tamanha referência.

Bolos algarvios deviam ter maior representatividade

“Podia haver mais representação da doçaria no Algarve”, assume Isabel Ramos, com enorme convicção. “Eu faço a minha parte, mas, em termos gerais, os bolos algarvios falham um bocadinho no que diz respeito a representatividade. Devia haver uma maior aposta e ‘agarrar-se’ mais na doçaria regional e tradicional, sobretudo porque as pessoas gostam imenso”, afirma a proprietária de ‘A Casa da Isabel’, de 65 anos, nascida em Setúbal e há mais de meio século a viver por cá. “Casei com um portimonense e hoje considero-me cidadã de Portimão”, sublinha, pronta a continuar a elevar a um patamar de excelência a cultura dos doces e dos bolos, a arte que abraçou há tantos e tantos anos.

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