Lagoense Jorge Soares é um dos poucos bonecreiros em atividade no país
Nasceu em Faro, por insistência da mãe, pois o seu médico estava de serviço nesse dia na capital algarvia, mas a origem é lagoense. Foi neste concelho que viveu até à universidade e onde regressou depois de ter desistido do curso, ter enveredado pela fotografia e entrado no mundo do teatro.
Há 25 anos que é um ‘cavaleiro do Teatro Dom Roberto’, como afirma com convicção ao Lagoa Informa, entre risos. Jorge Soares é um dos dois únicos bonecreiros do Algarve e um dos 14 existentes em todo o país.
A paixão por esta arte surgiu em Lisboa, nos tempos da universidade e foi ‘amor à primeira vista’. “Nesse ano, mais ou menos na altura em que me meti na fotografia, assisti a um espetáculo do João Paulo Cardoso, um ‘senhor’. Já faleceu, mas foi diretor do Teatro de Marionetes do Porto e um dos primeiros dos novos bonecreiros”, revela. Até essa data nunca tinha visto um espetáculo do Dom Roberto.
“Foi o primeiro que vi e apaixonei-me perdidamente. Bateu de uma maneira tal, que ainda hoje estou com eles. Mexeu comigo pela verdade, por uma verdade paralela. Representa-nos numa série de aspetos e diz-nos muito, a par de ter uma empatia com o público muito grande”, confidencia.
A magia inicial, fê-lo investigar, devagarinho. Estudou o tema, procurou outros bonecreiros, seguiu os que havia, que, naquela altura eram poucos. Hoje, continuam a não ser muitos, pois há apenas 14 em todo o país. E são ainda menos aqueles que se dedicam apenas a este teatro, pois alguns fazem, em paralelo, outras atividades ligadas a esta arte.
“Tento fazê-lo também. Por exemplo, um dos últimos em que participei foi o ‘Gilgamesh’, com sombras e música ao vivo, promovido pela Artis XXI e pela Questão Repetida”, atesta. Pela conversa, informal, sai-lhe um “foi muito fixe”, até porque assume que gosta também de trabalhar com aspetos mais contemporâneos.
Na atualidade, estes bonecos de madeira tradicionais já pertencem à listagem de Património Imaterial da Humanidade. A maior parte dos ‘primos, de origem espanhola, francesa, italiana já o eram. Faltavam apenas os portugueses Dom Roberto. “Esta é uma paixão de vida. Sinto-me responsável por manter esta arte viva. Quando comecei havia poucos e achava que devia manter-me também, com o resto do pessoal”, justifica.
De palheta na boca e bonecos na mão
Há algo único que diferencia os Dom Roberto de outros. Um deles é a voz, pois os bonecreiros utilizam uma palheta na boca e, ao falarem, o som sai alterado. Faz lembrar uma ‘gaitinha’, das que havia no passado. Já o boneco não usa mais do que madeira, pano e tinta.
“Tive uma formação com o Manuel Dias, que é quem digo que foi o meu mestre. Foi ele que me mostrou a palheta, que me ensinou a fazê-la… Já os bonecos, vi os outros e tentei fazer parecido”, conta. E já se passaram 25 anos, desde que este profissional se iniciou neste percurso.
“Dediquei-me à construção, porque vi que a maior parte dos bonecreiros os construía, mas não sou um artista plástico. Quem me dera! Tenho colegas que são muito uniformes e esteticamente mais potentes. No meu caso, foi muito na lógica de, se eles fizeram assim, eu também faço”, reconhece com humildade.
Identidade cultural
O espetáculo do Teatro Dom Roberto é apresentado ao público com o artista, que manipula os bonecos, ‘enfiado’ dentro de uma estrutura que se assemelha a uma barraca. Fica invisível aos olhos de quem assiste.
“Essa barraca tem a nossa altura. Quando nos juntamos, numa reunião de bonecreiros, é muito engraçado”, afirma. Isto porque, há uma variedade grande de tamanhos, de cores, de elementos que remetem para a identidade cultural e para a zona do país de cada um.
Por exemplo, Jorge Soares tem uma barraca azul e branca que remete para a cor do mar e do céu, numa alusão ao ambiente estival do Algarve, enquanto as chitas, as riscas floreadas, mostram um pouco da identidade de Barcelos, diferencia. “A riqueza disto é também a variedade”, assegura.
“A nível de origens, somos muito do género ‘cada um com o seu Dom Roberto’. Tanto assim, que alguns bonecreiros não tinham o Dom Roberto, mas o ‘Arturzinho’. Era o herói, mas se formos ver bem eram parecidos”, pois no fundo são os bonecos da ‘cachaporrada’, da ‘cachamorra’, explica.
Essência do espetáculo
No início, segundo o que Jorge Soares investigou, alguns bonecreiros construíam os ‘fantoches’ com a ajuda da família. Esta profissão, individual, com a barraca, está ligada aos ‘pavilhões de feiras’. “Era uma família grande, que fechava um recinto e as pessoas tinham de pagar para entrar. Lá dentro, à frente, havia umas janelas ou um biombo. Quando se zangavam ou havia uma querela profissional saiam e iam ao ‘migalho’. Não podiam cobrar entradas, por isso o público fazia uma ‘rodinha’, o que começou a alterar a forma de apresentar o espetáculo e entrou na lógica de rua. Era o tentar atrair o máximo de pessoas”, esclarece.
Os tempos são outros e, no caso de Jorge Soares, o registo é o de vender um espetáculo. “O meu início é o de investigação, de alguém do teatro que é apaixonado por esta arte e que se dedica a ela. Apresento um espetáculo. Não vivo do ‘migalho’, do dia a dia. É instável, mas não tanto como era antigamente para estas pessoas, que andavam de feira em feira, e iam ao encontro do público”, argumenta.
Atua com maior frequência no Algarve, pois continua a residir na sua terra natal, quando contratado por entidades públicas ou privadas. Dá espetáculos onde o chamam. No ano passado, entrou num projeto da Câmara Municipal de Lagoa com um teatro destes bonecos, adaptado à Bandeira Azul e ao público mais novo das escolas de primeiro ciclo. Neste caso, o herói da história tenta passar a mensagem da importância de preservar a natureza.
A nível de contratação privada, Jorge Soares destaca o teatro que fez num casamento. A verdade é que as histórias que podem ser contadas são muitas como o ‘Barbeiro Diabólico’, a ‘Rita e os Três Namorados’, a ‘Tourada’ ou o ‘Castelo dos Fantasmas’. Passa, por isso, em alguns casos por adaptar ao público, consoante seja necessário. A essência, o movimento, com a ‘porrada’ e a ‘paulada’, continua sempre lá. É o que mantém o espírito deste teatro e o espetáculo vivo, garante.
Barraca e o peso da idade
A título de curiosidade, entre risos, conta que com os seus 54 anos, os elementos que transporta acabam por ser um bom indicador do ‘relógio biológico’. Ou seja, ‘carregar a barraquinha’ já não é tão fácil como antes.
“Lembro-me de, com pouco mais de 20 anos, carregar o material todo um quilómetro, sem carrinho, nem nada. Depois comecei a descansar uma vez, mais tarde, arranjei um carrinho com rodas. Por outro lado, parece que estou mais pequenino. Ainda não ajustei a altura da barraca, que é a original, de ferro ainda. Há colegas que já passaram para o alumínio, mas eu ainda tenho a mania que consigo”, revela. E, nestas coisas, dos adereços, há algo peculiar que utiliza e que se distingue. É uma mala de viagem, das antigas, que remete para a bagagem, para o deambular de um lado para o outro, para a investigação que o profissional fez. “Gosto de pôr ali à frente por causa disso. É a verdade e a nossa natureza. É difícil estar numa sala de espetáculos durante muito tempo. O normal é ir atrás do público”, conta.
Desconstruir o espetáculo
“É tudo adaptado à maneira de contar a história. Às vezes, as crianças perguntam como tenho três bonecos e só duas mãos. Aí mostro os truques. Perde a magia, mas é uma opção minha. Sou o contador, brinco com eles. Mas também rapidamente ganha a magia de novo. Eles são muito claros, sabem perfeitamente, que isto não é verdade. O Dom Roberto lida com a ‘morte’, com a ‘paulada’ e com o ‘matar’, mas sabem que é uma brincadeira, que é um boneco”, assegura.
Não há violência retratada, mas uma brincadeira pura. “Sempre foi assim e sempre há de ser. Há algo instintivo nosso em relação a confusões. É o ser humano, para o bem e para o mal. E podemos brincar com isso. É o que faço”, diz.
Ligação à Ideias do Levante
Apesar de, neste momento, não estar ligado a nenhuma associação em concreto, Jorge Soares foi um dos pioneiros da Ideias do Levante, a associação cultural nascida em Lagoa, há quase três décadas. Recorda, por isso, os primórdios deste coletivo, do qual foi um dos fundadores, com elementos como Paula Pina ou Helena Tapadinhas.
“Vim com a ideia de continuar ligado ao teatro, nem que fosse de forma amadora, ainda que viesse trabalhar noutro ramo. Fundámos a Ideias, com pessoal de várias áreas”, recorda.
A intenção era promover ações culturais no Algarve, com profissionais, como encenadores, coreógrafos ou músicos, ao mesmo tempo que incentivavam os artistas locais para que começassem a fazer algumas atividades também. “O projeto tinha muito essa essência”, reforça. Mais tarde, surgiu na sua vida a ACTA, o que não permitiu que continuasse na Ideias do Levante. Participou no projeto VATe e colaborou, há cerca de um ano, com a Artis XXI.
Origem incerta
Não há um registo efetivo de como surgiram estes bonecos, mas quem está na área desconfia que têm a sua base nos ‘Pulcinella’, da ‘Commedia dell’arte’ e seus ‘primos’. “Há uma névoa na história, pois é pouco documentado, porque, para já, é um teatro pobre”, explica Jorge Soares. O ‘Punch’, em inglês, que se refere a esta mesma terminologia, também poderá ter origem nos ‘Pulcinella’ e alguém os terá dado a conhecer em Portugal. “Não quer dizer que os bonecos de luva não existissem já. No tempo dos romanos, que vieram com os séquitos de profissões variadas, poderiam ter alguns. Acreditámos que ele é um ‘primo direito’ do ‘Pulcinella’ italiano e do francês, do ‘Punch e Judy’ inglês, do ‘Kasper’ alemão, e dos espanhóis como o ‘Don Cristobal’ e ‘Barriga Verde’”, enumera. Isto porque, na sua essência são fantoches de luva muito parecidos.