Mais do que livros, a Biblioteca é composta por pessoas
Há 28 anos, a Biblioteca Manuel Teixeira Gomes ganhou um novo edifício e deixou o Palácio Sárrea Prado. Amplo, funcional e central, o livre acesso aos livros em estantes foi uma das mudanças mais radicais, pois até esse momento estavam “fechados a sete chaves”.
Ao longo destes anos, acumularam-se histórias, aventuras, peripécias, que compiladas davam para compor um livro. Houve, porém, algo que se manteve ao longo dos tempos: os funcionários.
São eles o primeiro ponto de contacto e estão sempre disponíveis para ajudar a procurar aquele livro. Contam histórias aos mais novos e recebem todos numa ‘casa’, onde o livro e a cultura encontram o seu espaço.
Estela Belchior, responsável pela gestão da Biblioteca Municipal Manuel Teixeira Gomes, pelos dois polos, um em Alvor e outro na Mexilhoeira Grande, e pelo apoio às bibliotecas escolares, lidera uma equipa de quase 20 pessoas, onde todos têm autonomia e um papel a desempenhar. “Cada um é responsável pelas suas tarefas e todos têm uma voz neste serviço para a comunidade. Se todos pensarmos, conseguimos construir algo diferente e é a pensar em equipa que, muitas vezes, esta ‘casa’ tem dinâmicas ou projetos diferentes”, explica a responsável.
No espaço, de todos e para todos, são mais de 80 mil exemplares, 19 mil utilizadores, com um atendimento médio, no pós-covid, de 90 pessoas. Antes eram 170. São ainda cerca de 1000 requisições por mês. Números que mostram que a Biblioteca continua a ter uma importância relevante.
E é verdade que muitos dos que lá trabalham dedicaram a vida a este equipamento e abraçaram a missão “da promoção do livro, da leitura” e do combate “a algo que hoje está muito na moda e que se chama iliteracia”, detalha Estela Belchior.
Na opinião da responsável, “todas as bibliotecas são os centros mais democráticos, porque não importa o credo, cultura ou etnia”. Recebem todos de igual modo e, muitas vezes, são mais psicólogos que técnicos de biblioteca.
A pandemia trouxe novos desafios, pois, logo no início, tudo indicava que o vírus se transmitia através do papel. Foram por isso tomadas medidas no sentido de minimizar, como a desinfeção e quarentena dos livros.
Uma das novidades que avançou agora foi o ‘Pressreader’. “Foi um processo lento, mas ao mesmo tempo rápido, numa iniciativa da Rede de Bibliotecas Municipais do Algarve, a partir da AMAL. As pessoas podem consultar em casa os periódicos, bastando ser utilizadores da Biblioteca”, explica.
Neste espaço há, porém, computadores, com acesso wi-fi gratuito e disponibilização de tablets para quem não tem smartphones. No polo da Biblioteca na Mexilhoeira Grande, uma freguesia mais rural, onde nem todos têm acesso à televisão por cabo, o serviço foi implementado no espaço para que, quem queira, possa assistir, acrescenta ainda.
“As pessoas também já não se dirigem à Biblioteca para ver DVD ou VHS, por isso temos as plataformas online, através dos computadores”, justifica.
Mudam-se os tempos, mas ainda assim, a responsável acredita que o papel, ou melhor, o livro, não morrerá com as tecnologias digitais. “O ebook não teve sucesso, o DVD e o VHS acabou, mas o livro, se não acabou já, não acaba. É aquela motricidade fina, o fazer apontamentos ou, por via da escola, o auxílio nos estudos”, assegura.
São várias as iniciativas previstas para os próximos meses, como ‘Trago um Brinquedo no Bolso’, em maio, com Bru Junça, que contará histórias “tradicionais relacionadas com brinquedos como os carrinhos, piões, para contrastar com o que os miúdos têm hoje a nível de tecnologia”, avança Estela Belchior.
No Verão, em julho, voltará ao Jardim 1º de Dezembro, o ‘Verão Azul’, que à semelhança do ano passado convidará escritores de referência para um ambiente de proximidade com o público, desvenda ainda.
Um dos marcos da Biblioteca Municipal, o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes será outra iniciativa de destaque. “Este ano tivemos 76 obras a concurso, o que já revela alguma dimensão. Foi ganho por Tiago Feijó, um jovem brasileiro promissor na literatura”, conclui Estela Belchior.
Os rostos da Biblioteca
Há muito mais para além das ações e iniciativas. São as pessoas que dão vida à Biblioteca. Celeste Lopes, Rolando Rebelo, Virgínia Maio, Cristina Augusto, Isabel Jordão ou Piedade Jordão são apenas alguns dos funcionários que se mantêm quase há três décadas neste espaço, havendo alguns que transitaram ainda do antigo espaço, no Palácio Sárrea Prado.
Gerações foram passando pela Biblioteca e cruzaram-se com estes rostos que, até as ‘ramelas lavaram a alguns dos mais novos’ e lhes deram os lanches nos tempos em que ainda eram escassos os ATL, brinca Rolando Rebelo.
Celeste Lopes é uma das funcionárias mais antigas e, após 44 anos a trabalhar na Biblioteca, está bem perto da reforma. “Há 40 anos, o serviço de biblioteca era um pouco diferente, pois era mais utilizado por estudantes. A comunidade não estava muito focada no ‘vir à Biblioteca’ e a primeira bibliotecária que houve em Portimão era muito fechada a nível de compras, o que se enquadrava na época, por isso a aquisição de documentos também era muito selecionada”, descreve. Os livros estavam fechados à chave e o registo era manual, com fichas.
A passagem para o novo espaço foi “uma revolução cultural, em espaço, em aquisições, formações”, defende.
Frequentava a Biblioteca antiga e sempre teve um grande amor pelos livros. No entanto, “não podia ler certas obras, porque a bibliotecária dizia que não tinha idade. Quando ela não estava, tirava o livro para ninguém requisitar, e lia”, confidencia.
Houve então um Verão em que, pela primeira vez, colocaram uma barraca de madeira com livros no jardim em frente e Celeste Lopes foi para lá trabalhar. Foi o início da sua vida profissional.
“Entretanto, uma colega estava grávida e acabei por ficar, porque precisavam de pessoas. As vagas eram muito selecionadas. Abriu um curso de técnico em Lisboa que fui frequentar. Nessa altura já era auxiliar”, conta Celeste Lopes. Abraçou a profissão e já lá vão 44 anos.
Evolução com ‘prata da casa’
Já Cristina Augusto era funcionária do comércio e decidiu arriscar a mudança para a Biblioteca, quando aquele setor começou a exigir que os funcionários trabalhassem ao domingo. Com um filho pequeno e o desafio lançado por Celeste Lopes decidiu mudar e, nessa altura, fez as formações necessárias para se tornar técnica bibliotecária profissional, seguindo-se uma licenciatura e pós-graduação.
Nessa altura, estava em voga o conceito de auto-aprendizagem e era à Biblioteca que as pessoas recorriam. “Quem iniciou este processo, quem teve os primeiros computadores disponíveis ao público, os primeiros CD com cursos foi a Biblioteca”, recorda.
Quando começaram, a catalogação era manual, mas pouco depois, com os meios tecnológicos, foram informatizando o acervo.
“Tivemos um primeiro programa informático através de um consórcio nacional de leitura pública… Fomos pioneiros e com a informática foram-se abrindo outras possibilidades de recuperação da informação”, afirma.
Entretanto, esse programa, do tempo em que João Ventura era o responsável pela Biblioteca, já não tinha capacidade para catalogar nem mais cinco livros. “Na altura, com a doutora Dora Pereira, investigámos o mercado e implementámos um software ‘open source’ usado a nível internacional por milhares de bibliotecas, em que o utilizador pode consultar a sua conta, reservar, fazer sugestões sem sair de casa”, compara.
Foi desenvolvido com a ‘prata da casa’, com a informática da autarquia, e compila todos os dados possíveis e úteis. “Tivemos de mudar algumas práticas, mas foi tudo direcionado para as nossas necessidades e não estamos dependentes de empresas exteriores”, explica Cristina Augusto.
Apesar de toda a informatização, trabalham em dois mundos paralelos. Há quem já receba toda a informação por email, mas há ainda quem receba a carta e se desloque à Biblioteca.
De pessoas para pessoas
“As bibliotecas na atualidade já não são só livros, são as pessoas, porque todos os nossos serviços são orientados para o utilizador. Direcionamos o que compramos, os nossos serviços, o que desenvolvemos para o que a comunidade necessita neste momento”, esclarece Cristina Augusto.
A pandemia alterou alguns aspetos ao nível do utilizador. “Trouxe um público diferente, mais interessado, que não vem só ver os livros numa estante, mas que utiliza o espaço como centro de trabalho com colegas. A biblioteca, neste momento, a nível mundial está a criar um novo perfil com outras necessidades que se baseiam na vertente humana”, considera, por sua vez, Vírginia Maio.
Uma parte deste público chega à Biblioteca porque precisa de conversar, porque se sente em paz, descreve. “Se analisarmos a nível mundial e, sobretudo, nos países nórdicos, as bibliotecas estão viradas para o humano. Na Dinamarca têm algo que consiste em dar uma ou duas horas do nosso tempo para ouvir alguém que necessite de conversar. A verdade é que a Biblioteca é um espaço essencial na cultura e na união das pessoas”, defende.
Um serviço educativo dinâmico
Se antes, na biblioteca antiga, “estava fora de questão existir sequer um setor infantil, quanto mais um espaço aberto com histórias e atividades”, neste novo equipamento esse é um dos serviços mais dinâmicos. Vinda de Sintra, depois de ter tratado de todo o espólio de Ferreira de Castro, Isabel Jordão, que frequentou o curso de Arquivo, quando chegou à Biblioteca Manuel Teixeira Gomes começou a questionar porque não se contavam histórias ou não se faziam ações para os mais novos.
Tanto questionou que foi convidada a implementar essas ideias. “A pouco e pouco peguei num livro e comecei a tentar. Entretanto, uma colega simpatizou com estas ideias e juntou-se a mim. Iniciámos um trabalho ligeiramente diferente, sempre para as escolas, mais teatralizado. Fomos às escolas, aos polos, aos centros de dia e lares, à prisão”, descreve Isabel Jordão.
Sem formação específica na área, procuraram aprender, ir buscar ideias a outros projetos.
Durante a pandemia reinventaram-se, gravaram contos e teatros e transmitiram nas redes sociais. Agora, com o projeto ‘Escola na Biblioteca’, voltaram “as visitas guiadas, onde mostramos aos meninos onde os livros estão arrumados e terminamos com um conto lido. Temos ateliês, atividades onde trabalhamos o conto, os sábados para as famílias e assinalamos algumas efemérides como o Dia do Pijama”, exemplifica.
É também a este propósito, de que as bibliotecas podem ser divertidas e diversificadas que Rolando Rebelo, durante muitos anos ‘a cara do audiovisual’, acredita que a passagem da Biblioteca para o novo espaço, junto ao Tribunal, desmistificou a ideia de que estes equipamentos eram quase como “conventos, onde não se podia fazer barulho”.
“Claro que não se deve fazer muito barulho e é uma questão de respeito, mas mudámos muito. O setor audiovisual e o infanto-juvenil foi pioneiro e atraiu muita gente nova. Isso fez com que a Biblioteca ganhasse um novo público, que ainda hoje se mantém connosco, por onde já passaram miúdos que hoje são pais e alguns já são avós. São várias gerações…”, afirma.
“Faz todo o sentido haver bibliotecas, porque de alguma forma são o depósito da atividade humana. O que têm de fazer é adaptarem-se aos novos tempos, aos novos suportes, aos meios digitais e tecnologias, sem deixar de parte os suportes antigos”, defende.
A ‘Omelete do Xico Pires’
A verdade é que nem sempre é fácil perceber o que o utilizador pretende. Nos bastidores há histórias e peripécias que já davam para escrever um livro.
Desde alguém que um dia abordou uma funcionária da limpeza a perguntar pelo Victor Hugo, ao que esta respondeu que não sabia, porque estavam muitas pessoas na Biblioteca, ao utilizador que procurava a ‘Omelete do Xico Pires’, numa alusão à obra ‘Hamlet’ de William Shakespeare.
Há ainda destaque para o incêndio, a pouco tempo da chegada de Mário Soares para uma conferência, à pessoa que ficou fechada na Biblioteca, àquele que procurava o livro da Sophia, filha do Nicolau Breyner, quando afinal a escritora até nasceu umas boas duas décadas antes do ator.
Há quem tenha adormecido por uma vez no setor infantil e até houve a história de uma funcionária que ao ler ‘Desconhecido nesta morada’, título do livro requisitado por um professor, insistia que este tinha de atualizar a morada. Numa risota, o professor lá lhe explicou que devia estar a fazer confusão com o título da obra.
Números
⇨ 2 polos nas freguesias
⇨ Mais de 19 mil utilizadores
⇨ Base de dados com mais de 80 mil exemplares
⇨ Média que ascende os 1000 empréstimos mensais
⇨ Média de 90 atendimentos por dia
“Nem sei quantos livros me passaram pelas mãos”
Maria Manuela Monteiro é uma das peças deste equipamento cultural que, apesar de trabalhar nos bastidores, é fundamental. Isto porque, depois de informatizados os dados sobre o livro que ‘chega’ à Biblioteca, é esta funcionária que carimba, cola a etiqueta, coloca a fita de alarme e restaura. A maioria dos utilizadores desconhece que este processo é realizado todos os dias. “Os livros passam todos por mim e é garantido que todos os que aqui estão me passaram pelas mãos, mas nem consigo saber quantos já foram ao certo”, confidencia Manuela Monteiro, que está há 28 anos neste espaço.
Uma cabine que esgota todos os dias
Junto ao Largo da Mó, a Cabine da Leitura é mais uma das marcas da Biblioteca Municipal Manuel Teixeira Gomes, num projeto da autarquia com a Altice. Com capacidade para 150 volumes, além de livros, passou também a comportar DVD, conta Piedade Bartolomeu. “Todos os dias, carregamos com mais títulos e, quando lá voltamos, está praticamente vazio, com apenas dez ou quinze livros. O lema é ‘doar, levar e ler’ e a pessoa até pode devolvê-los à cabine, mas o objetivo é que leve, fique com o livro ou o dê a outra pessoa”, explica a funcionária.