Maria João Raminhos transforma história local em internacional
Texto e Foto: José Garrancho
Cerca de uma centena de pessoas estiveram presentes, no dia 26 de janeiro, no Teatro Municipal de Portimão (TEMPO), no lançamento do livro ‘Os Judeus do Algarve e o Holocausto – do Paraíso ao Inferno’, da historiadora Maria João Raminhos Duarte. O modo como a autora apresentou a sua obra demonstrou o valor histórico da mesma e várias pessoas comentaram que, se for traduzida em inglês, poderá vir a ser um ‘best seller’.
Igualmente concorrida foi a apresentação do livro, na Casa do Alentejo, em Lisboa, no dia seguinte, na data em que são homenageadas as vítimas do holocausto.
“A investigação e a história são como as cerejas”
“Quando estudei os industriais conserveiros, apercebi-me de que o movimento operário, em Portimão, durante a Primeira República, foi fabuloso. Tivemos a corrente anarcossindicalista do José Buisel, que foi morrendo, após a revolução russa, quando começaram a chegar os elementos da linha comunista”, conta.
A historiadora também se apercebeu de que, em Faro, existira uma comunidade judaica extraordinária, que dominara a cidade. O Clube Farense e o Teatro Lethes são dois exemplos. E o terreno onde se encontra o hospital também foi doado à autarquia pela comunidade judaica. Faro era apelidada de ‘Pequena Jerusalém’.
“O que me encanta é o contributo único que a minha história dá, sendo local e regional, ainda considerada o parente pobre, por alguns. Porque ninguém sabe de onde vieram todos aqueles que se distinguiram. Ninguém percebe porque é que os judeus do Algarve chegam a Lisboa e imperam”, refere a historiadora.
“Imperam, porque o dirigente da sociedade israelita de Lisboa, Moses Amzalak, embora tivesse nascido na capital, provinha de uma família de Faro. E veio a casar com uma judia farense, Orovida Sequerra. Moses Amzalak era amigo de Salazar, diretor do Instituto Politécnico, membro da Academia das Ciências, uma figura do Estado Novo, figura conservadora que controlava uma comunidade de judeus assimilados que não queriam problemas, nem com a PIDE, nem com Salazar”, esclarece Maria João Raminhos.
Apercebeu-se também a historiadora que a crise que se sofreu, após a Primeira Guerra Mundial, a morte dos mais velhos e a migração das novas gerações para Lisboa, onde vão estudar, ou em busca do cosmopolitismo, levam ao desaparecimento de muitas famílias no Algarve.
Alguns judeus farenses ligados ao holocausto
O livro menciona, entre outros, a extraordinária ação de três judeus farenses: o grande médico e escritor Augusto d’Esaguy e os irmãos gémeos Samuel e Joel Sequerra, que salvaram do extermínio milhares de pessoas. Mas também membros das famílias Levy e Ruah tiveram ação meritória.
Também era farense o inspetor Paulo Justino Cúmano, diretor do Serviço de Fiscalização e Fronteiras, antissemita, fascista e espião alemão em Portugal. Enquanto os seus concidadãos judeus tentavam salvar os refugiados, ele fazia tudo para dificultar a sua entrada em Portugal.
Na verdade, as histórias neste livro são um verdadeiro contributo para a compreensão do papel de Portugal no holocausto.
A escolha do título do livro
Questionada pelo Portimão Jornal acerca do título do livro, a autora explica que “não se pode considerar como holocausto apenas os seis milhões de pessoas que morreram. Temos de considerar também as que fugiram, as que perderam as famílias, as que fugiram, foram recambiadas e acabaram lá e as que conseguiram escapar. Mais: Depois do extermínio, o holocausto acaba por se prolongar, porque há milhares de ‘displaced people’, gente desalojada, quando são abertos os campos de concentração”.
“Faro é o paraíso e alguns dos seus filhos, quando dão por si, estão na máquina do holocausto, o inferno, a salvar milhares de pessoas. Há histórias no livro de cortar o coração”, garante.
Aliás, a historiadora afirma que qualquer temática acaba sempre por ser apaixonante para o investigador, mas “qualquer investigador que se inicia nos estudos do holocausto fica completamente agarrado”, porque “tem coisas que, nem na ficção mais absurda, o homem consegue ser tão animalesco”.
“A temática apaixonou-me e, quando estava a estudar a Segunda Guerra Mundial, começo a ver que os nomes das pessoas que estavam nas comissões de refugiados em Lisboa e nas comissões internacionais eram os mesmos dos judeus de Faro. Comecei a fazer a ligação. Foi muito gratificante”, recorda.
A publicação agora lançada ao público é fruto de sete anos de investigação, com abundância de informação. “Trabalhei com arquivos de Washington, Nova Iorque, Barcelona e de todas as terras fronteiriças dos Pirenéus, 500 quilómetros, com refugiados, contrabandistas, subornos. Deu-me muito prazer em fazer e dar a conhecer”, conclui.
“A história não tem tempo”
Maria João Duarte conhecia a comunidade judaica em Faro, mas não a ligava ao holocausto. Em 2015, fez um curso em Israel no Centro Internacional de Memória do Holocausto (Memoshoá).
“Estou muito contente e muito grata ao meu editor, o doutor Fernando Mão de Ferro. Tinha o livro praticamente acabado, há cerca de três meses, conversámos e ele teve a inteligência de não ser politicamente correto, porque entendeu que a história não tem tempo, é uma ciência do passado. E a história do que se está a passar hoje, em Gaza, será contada daqui a muitos anos, quando tivermos acesso a todas as fontes, por muito que elas nos toquem no presente. Agora, não se faz história, faz-se jornalismo”, distingue a investigadora.
“As pessoas têm de entender que o que vou contar é a história dos judeus de Faro e, sobretudo, na salvação de milhares de pessoas. Que, ao menos, isso seja inspirador. Mas nunca aprendemos nada com a história e, por isso, ela se repete”, argumenta.
‘O Algarve em Transe’
Maria João já tem outro livro terminado. Foi proposto à autarquia de Portimão, há dois anos, já com a investigação feita, mas com o trabalho ainda não redigido.
“O Algarve em transe é um conceito de Medeiros Ferreira, que diz que o final da década de 60 e início da década de 70, com o Estado Novo já caduco, acontece a permeabilização do transe da sociedade com o que vinha lá de fora, com a guerra colonial… E acho que o Algarve, Portimão em especial, é um paradigma nacional dessa mudança, por causa do turismo”, revela.
“O doutor Mão de Ferro chama-lhe uma nova tese de doutoramento e eu tenho essa noção. Fala-se de Portimão nos anos 40 e 50, faço a inventariação toda das famílias da oposição, em Portimão, com a biografia de todos os seus elementos”, afirma.
Os anos 70, a parte política do 25 de Abril, a comissão administrativa, o ‘Verão Quente’, as ‘pancadarias’, os cartazes, o MRPP são exemplos.
“Depois, a evolução do turismo, como este foi o motor de ascensão social, a formação hoteleira dos filhos das gentes do mar, o turismo sexual, que também tem uma parte engraçada. A parte final é uma cartografia mental, como eram os portimonenses nos anos 60 e 70, a vida social, o vestuário, quem eram os principais comerciantes”, adianta ainda. Apesar de ainda não ter data certa para publicação, talvez seja lançado na primavera.
Conflito Israel-Hamas
O Portimão Jornal não podia deixar de questionar a historiadora sobre a situação atual na Faixa de Gaza. Maria João Raminhos Duarte é perentória neste tema. “Nunca confundo o meu papel de historiadora com o meu papel de cidadã. A história tem de ter o seu tempo e os historiadores, não. Temos uma vida limitada. Não há ninguém de bom senso e que defenda os direitos humanos que não fique com o coração partido com este conflito e com o que se está a passar na Ucrânia, no Paquistão, na Palestina. Este conflito em Israel é muito antigo e sobre o qual oiço muita gente opinar, mas por vezes sem o conhecer”, diz. Por esta razão, como cidadã, pensa que devem ser criadas criar pontes, sem truques. “Agora, havendo fracos e fortes, é sempre uma luta desigual, mas o que é facto é que, com uma guerra, todos têm a perder”, acrescenta. E reforça: “Uma guerra é uma guerra e nós estamos sempre muito centrados no nosso umbigo, a nível da Europa, dos seis milhões, dos 20 milhões de russos que morreram na Segunda Guerra Mundial. Se recuarmos aos séculos XIV e XV, o que aconteceu aos africanos que foram levados para a América? No Oriente, os milhões de pessoas deslocadas e em escravatura? Estes conflitos têm de ser resolvidos politicamente. Mas também reconheço que, muitas vezes, é difícil, quando há um desequilíbrio de forças e uma das partes se tornou uma organização terrorista. É muito complicado de gerir”.
Quem é Maria João Raminhos Duarte?
Filha de pais silvenses, nasceu em Moçambique em 1959. É doutorada em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem publicado ‘Portimão, industriais conserveiros na 1ª metade do séc. XX’; ‘João Rosa Beatriz. Esboço de uma biografia política’; ‘José Rodrigues Vitoriano: o operário construído’; ‘Presos políticos algarvios em Angra do Heroísmo e no Tarrafal’ e a sua tese de doutoramento ‘Silves e o Algarve, uma História da Oposição à Ditadura’. No âmbito das Comemorações do Centenário da República e do 150º aniversário de Manuel Teixeira Gomes, colaborou em ‘Portimão e a Revolução Republicana’, obra coordenada por José Tengarrinha. Em 2016, no âmbito do 75º aniversário do Lar da Criança de Portimão, publicou ‘Lar da Criança de Portimão: a utopia de um colo’. Tem um vasto currículo, com artigos publicados e conferências no âmbito da história local e regional algarvia contemporânea, sobre os industriais conserveiros, o movimento operário corticeiro e conserveiro, o regionalismo algarvio, a instituição do Estado Novo, a oposição ao Estado Novo, os movimentos femininos, a educação e assistência, a implantação do regime democrático, além de diversos contributos biográficos da história contemporânea algarvia. Investiga, na atualidade, a comunidade judaica do Algarve, o seu êxodo e relevância no holocausto. Integrou o Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais, como doutorada integrada no Instituto de História Contemporânea/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Faz parte do grupo ‘Usos do Passado’, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e é formadora acreditada pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua da Universidade do Minho. É docente na Escola Básica 2,3 Engenheiro Nuno Mergulhão, em Portimão.
