“No Algarve canta-se muito fado, mas ouve-se pouco fado”
Há muita gente a cantar fado, mas faltam condições para transmitir a magia e o sentimento desta arte tão portuguesa. A Algarve Vivo visitou alguns restaurantes da região e falou com fadistas e guitarristas. O fado está na moda, garante receita à restauração, embora continue a não receber o devido respeito por parte de algum público e dos empresários, que não asseguram as condições ideais aos protagonistas.
Texto: Rui Pires Santos
Fotos: Kátia Viola
Sexta-feira, restaurante São Gonçalo, em Lagos. Sala cheia. À chegada, nas mesas, encontramos apenas pessoas de pele e olhos claros e de faixa etárias acima 40/50 anos. São todos estrangeiros. Portugueses só nós, além do fadista e dos dois guitarristas. Pedro Viola, uma das melhores vozes do Algarve, acompanhado na viola por Vítor do Carmo e na guitarra por José Santana, canta com sentimento e provoca forte impacto na audiência. Consegue mesmo pôr os estrangeiros, em uníssono, a cantar “cheira bem, cheira a Lisboa”, com um sotaque que despoleta um rasgado sorriso em todos.
Parece que estamos mesmo numa casa de fado! A luz está ‘baixa’ e o silêncio é absoluto. Enquanto se canta não há serviço de mesa, não há pratos ou talheres a bater na cozinha, que trabalha silenciosamente. Apenas no intervalo, após uma série de quatro fados, é que o serviço de mesa volta ao ativo e algum cliente aproveita para ir à casa de banho ou sair para fumar um cigarro. E este ritual sucede a cada bloco de quatro fados.
Esta devia ser a realidade quando se canta fado em qualquer restaurante, mas não é o que acontece na maior parte dos estabelecimentos algarvios. Pelo contrário. O importante é ter a casa cheia, servir refeições e o fado é apenas um complemento à refeição. Nunca o prato principal.
“É uma coisa que está na moda e no Algarve canta-se muito fado, mas ouve-se pouco fado”, afirma Valentim Filipe, guitarrista e presidente da Associação de Fado do Algarve. “Há pouco respeito por esta arte e pelos fadistas. A maior parte dos empresários entende que durante a atuação devem continuar a servir às mesas, o que provoca inúmeros ruídos, o público vai na onda e ouve-se muito burburinho. Muitas vezes, chegamos ao ponto de, quando o fadista está a cantar, os empregados passarem mesmo à sua frente ou o ‘staff’ servir uma mesa a meio metro do fadista. Ora, isto anula o ambiente, a magia e o sentimento que se pretende transmitir e é uma falta de respeito para o público que verdadeiramente ama o fado”, lamenta.
“Os restaurantes não criam condições, nem estão preocupados com isso. É certo que os fadistas e os guitarristas têm a sua quota-parte de culpa por não exigirem melhores condições para atuar. Submetem-se a tudo com receio de que depois não voltarão a ser contratados por serem exigentes com as condições”, explica.
Também Vítor do Carmo, guitarrista há mais de 40 anos, se queixa de alguma falta de condições. “O público nem sempre está em silêncio e o serviço de mesa complica a tarefa de fadistas e guitarristas. E o resultado final não é o melhor, quebrando a atmosfera de magia que se deveria ter na sala. Sinto saudade dos tempos das casas ‘à moda antiga’, só para apreciadores e onde se respirava fado”, recorda.
O roteiro…
Ainda assim, apesar de muitas vezes não estarem reunidas as melhores condições, o lado positivo é que nunca foi tão fácil ouvir cantar fado no Algarve. De Sagres a Vila Real de Santo António, são inúmeros os restaurantes que têm semanalmente uma noite de fado. Há cada vez mais fadistas e o número de público tem crescido exponencialmente, acompanhado pelo acentuado aumento dos estabelecimentos.
Os que reúnem as melhores condições para os verdadeiros e exigentes apreciadores são o São Gonçalo e o Cangalho, em Lagos. O ambiente, o público e a primazia que é dada ao fado, garantem uma noite intensa, agradável e com aquele sentimento especial que só este género musical transmite.
Mas há mais, muitos mais espaços onde podemos apreciar fado e perceber também como existem tantas boas vozes na nossa região. Em Portimão, o Bacalhoada é um deles, a que se junta a Casa Grande (Ferragudo), a Paleta (Lagoa), o Real Picadeiro (Pêra), o Franguinho de Albufeira, Dallas (Quarteira), o Centenário (Faro) e a Casa do Polvo (Santa Luzia), entre outros.
Agenda lotada
Pedro Viola é uma das melhores vozes do Algarve. Canta desde 1994 e venceu a Grande Noite de Fado de Lisboa, em 2006. Irmão de Teresa Viola, também ela considerada uma das excelentes vozes que o Algarve tem, o fadista destaca o bom momento que esta arte vive na região. “Por cá, o fado está com qualidade e recomenda-se. Julgo que se equipara com o que se canta em Lisboa, mas com uma diferença: Lisboa tem casas de fado, o Algarve tem restaurantes que dão fado”, salienta, reconhecendo que “as condições podiam ser melhores e existir um maior respeito”.
Contudo, sublinha o aumento de público. “Temos cada vez mais pessoas a ouvir e os estrangeiros residentes estão cada vez mais rendidos. E os holandeses adoram, do muito público estrangeiro que temos nas nossas atuações são aqueles que mais apreciam e são assíduos. Alguns já conhecemos e, sempre que possível, seguem os fadistas pelos diferentes restaurantes”, sublinha, ele que é um dos mais solicitados, contando com uma agenda cheia no Verão, mas também em muitos períodos do Inverno.
Argentina Freire é outra das vozes mais requisitadas. Tem pronúncia do norte, mas é no Algarve que trabalha e canta fado há sete anos. Apesar de nos restaurantes não estarem reunidas muitas vezes as melhores condições para atuar, revela que “nos hotéis é ainda pior”. Diz ter vários restaurantes onde se sente bem a cantar, destacando o São Gonçalo como “um dos que melhores condições” apresenta.
“Com tantas e boas vozes na região, já era altura de surgir as tradicionais casas de fado, como acontece em Lisboa”, refere.
Tal como a maior parte das boas fadistas do Algarve, Argentina tem uma agenda lotada no Verão, período em que canta “quase todas as noites” em diferentes restaurantes. No Inverno, as coisas acalmam, mas ainda assim costuma ter uma ou duas atuações por semana.
E quanto ganham os fadistas e os guitarristas por cada noite? “60 euros para cada elemento é o valor mínimo estipulado pela Associação de Fado do Algarve. É baixo, devido à muita concorrência existente no mercado, principalmente da gente mais nova que sai dos concursos de fado amador e que cantam a baixo valor. Mas há fadistas mais conceituados que cobram outros valores”, revela Valentim Filipe.
Casa cheia
Certo é que esta é uma receita de sucesso. Uma noite com fado é quase sempre sinónimo de casa cheia. Luís Alberto, proprietário da Casa Grande, em Ferragudo, tem quase sempre o restaurante composto à quinta-feira. Servindo só petiscos e produtos regionais, alia a tradição e o vinho ao fado. “As coisas têm corrido bem e no Verão vamos apostar em mais uma noite de fado, se bem que com um género diferente. Esta é uma aposta ganha, temos mais clientes e o restaurante ganha projeção”, afirma.
Todos querem cantar fado
Os concursos de fado amador contribuíram para o aparecimento de muitas vozes na região, algumas delas são hoje fadistas de créditos firmados. Contudo, nem sempre o talento existe, como faz questão de salientar o guitarrista José Santana, habituado a tocar com muitas vozes.
“Dentro dos fadistas mais amadores, que também vão circulando pelos restaurantes a cantar fado, há aqueles que cantam bem, os que cantam assim-assim e outros que nem na casa de banho deviam cantar. Mas agora é moda, todos querem cantar o fado!”, afirma.
A qualidade
O número de fadistas no Algarve nunca foi tão grande como é atualmente. E, como em qualquer área, nem todos apresentam a mesma qualidade e talento. Mas, de forma unânime, Pedro Viola, Teresa Viola, Isa de Brito, Sara Gonçalves, Ana Marques e Argentina Freire são algumas das melhores vozes. Mas há mais. Cremilde é a referência e uma das preferidas do público. Raquel Peters, Filipa Sousa, Inês Graça, Hélder Coelho, Adriana Marques e Marta Alves, uma jovem de 15 anos, estão também entre as vozes de excelência e são das mais requisitadas. Mas existem mais algumas que aqui não estão mencionadas. É uma questão de o leitor percorrer alguns dos restaurantes que por toda a região propõem fado. Sentirá mais emoção, fascínio ou sedução em alguns locais do que noutros, mas vai encontrar, seguramente, muito talento e sedução.
São Gonçalo, uma das poucas exceções
Paulo Martinho é o proprietário do restaurante São Gonçalo, em Lagos, um dos espaços de maior agrado dos fadistas e dos maiores apreciadores de fado. Aqui, a prioridade é o espetáculo e para ele essa é uma opção natural.
“Gosto muito de fado e a minha mulher, a partir de agora. Essa foi uma das principais razões para termos todas as semanas fado no nosso restaurante. E como gostamos, foi uma preocupação nossa, desde o princípio, que aqui se ouvisse e sentisse o fado. Enquanto se canta, não há serviço de mesa. Isso só acontece nos intervalos de 10 ou 15 minutos que vamos combinando com os fadistas. Aí aproveitamos para fazer todo o serviço de mesa. Nada é afetado. Queremos que nesta casa se sinta esta arte e já é tradição o São Gonçalo ter fado todas as sextas-feiras, tanto no Inverno como no Verão”, sublinha.