Nuno Pires, sommelier ou escanção?

Texto e foto: José Garrancho
Nuno Pires define-se como escanção, a pessoa que recebe os vinhos, os prova e decide se estão, ou não, em condições de ser servidos. “E gosto muito da definição ‘escanção’, porque acho a palavra bonita e é o termo próprio português, não havendo necessidade de usar o termo francês”, confessa ao Portimão Jornal.
Como é que entrou no setor da restauração?
Profissionalmente, iniciei-me no Casino de Vilamoura, em 1994, já tinha cumprido o serviço militar e, devido às notas no curso e a ter o registo criminal em ordem, perguntaram-me se queria ir para lá. Aceitei de bom grado, porque o chefe de bar, José Luís Fernandes, tinha sido campeão do mundo em 1978. Comecei logo como barman, pois havia falta de pessoal. Havia vários bares e, no da sala de jogos, a equipa tinha de fazer também restaurante. Tinha uma equipa fantástica e foi lá que aprendi a arte cisória [consiste nas técnicas de preparar os alimentos à vista do cliente: despinhar, dividir e servir peixes; trinchar, desossar, dividir e servir aves; descascar, cortar e servir frutas]. Na altura, ainda não havia grande variedade de vinhos, mas apanhei-lhe logo o gosto, embora estivesse mais focado em bar.
E depois?
Fui abrir a Casa do Castelo, liderando as equipas de sala e de bar. Mais tarde, fui para Barcelona, regressei a Portugal, para o Casino do Estoril, onde estive pouco tempo, porque só queria saber como era o topo dos casinos em Portugal. Depois, fui para um campo de golfe privado em Inglaterra, regressei ao Algarve, para o Monte Rei, em Cacela. Fiz um interregno e fui para o Dubai, regressei ao Monte Rei e, de momento, estou no Palmares. E sou formador na Escola de Hotelaria e Turismo de Portimão.
Porquê esse gosto pelos vinhos?
Os vinhos acompanham-me desde sempre, porque eu morava, em criança, a cerca de 200 metros da Adega Cooperativa de Faro e ia sempre lá buscar os garrafões de cinco litros, com o meu avô ou o meu pai. A primeira recordação que tenho foi ter visto escrito a giz, numa ardósia, ‘marufo’. Nunca me esqueci daquilo e, uns anos mais tarde, vim a descobrir que é uma das castas mais antigas do mundo, que ainda se consegue encontrar em estado selvagem.
Fala-se dos vinhos como algo muito complexo, com sabores minerais, de frutos vermelhos…
Acho que se exagera.
Em termos práticos, quais são as características que distinguem uns vinhos dos outros?
Há características principais que podemos avaliar num vinho e não necessitam de ciência da NASA. Tentando esquecer aqui os nossos gostos pessoais, há regras de avaliação como a acidez, os taninos, o comprimento de boca, a secura. Os taninos encontram-se principalmente nos vinhos tintos. Não é que os brancos não os tenham, mas é uma coisa ínfima. E as pessoas confundem a acidez com os taninos e a secura. A acidez significa capacidade de envelhecimento, enquanto a secura é aquela sensação quase da boca seca. A acidez faz-nos salivar e a secura não; dá-nos a sensação de querer beber mais. Se as duas estiverem juntas, para mim, a secura sente-se mais no maxilar superior. Uma casta exemplar é a ‘malvasia fina’. A acidez, por norma, sente-se no maxilar inferior. É muito fácil sentir com os vinhos verdes.
Os provadores falam muito em vinhos minerais. O que significa?
A mineralidade é uma sensação difícil de descrever. Para quem já teve a oportunidade de entrar numa gruta, mineralidade será aquela sensação de frescura exacerbada que entra pela boca e pelo nariz, ao mesmo tempo, sem deixar qualquer gosto específico. É uma frescura natural, com ausência de sabores.
Podemos dizer que as sensações que cada um encontra estará relacionada com as suas experiências gustativas e o olfato?
Nem mais. Como posso explicar a um aluno o cheiro a chão encerado, se essa prática já não é usada? Ou as sensações dos condimentos que caíram em desuso? Muitos vinhos tintos têm um sabor a cravinho e tenho de ir buscar a especiaria para lhes mostrar o que é. Tudo é possível com treino.
Qual a influência dos copos no sabor?
Devemos usar copos diferentes para vinhos diferentes. Mas, a meu ver, não é necessário usar aquela panóplia toda de um copo para cada casta. Sabemos que é um negócio paralelo, em França; cada região tem o seu copo, porque têm de vender copos e a imagem da região. O copo faz a diferença, essencialmente numa primeira abordagem, pela espessura do vidro. A sensação tátil na boca é muito importante. O formato também ajuda o vinho a mostrar-se, mas acho que há demasiados tipos. Num restaurante com um mínimo de qualidade, é suficiente haver cinco copos – um ‘flute’, um copo tipo ‘Chardonais’, um mais fechado tipo ‘Riesling’, um mais aberto, tipo ‘Borgonha’, e um mais fechado, mas maior, estilo ‘Bordéus’.

Pode falar um pouco sobre a oxigenação dos vinhos?
Devemos decantar os vinhos, brancos incluídos, mas há que ter atenção, porque algumas castas não aguentam a oxigenação. Na Borgonha, não se decanta, porque o ‘pinot’ é uma casta muito delicada e uma grande oxigenação pode dar cabo do que procuramos lá dentro. Por exemplo, os vinhos da casta ‘ramisco’, da região de Colares, se forem decantados, perdem a qualidade. E foi considerado o mais francês dos vinhos portugueses, pela sua elegância e longevidade, até à década de 80 do século passado. Ainda se podem beber os ‘Colares’ de 67 ou 69.
Os vinhos e a comida? Os brancos para os peixes e os tintos para as carnes?
Os brancos para os peixes e os tintos para as carnes é um mito. Foi uma regra introduzida quando a produção era muito limitada e se resumia a meia dúzia de castas. Na realidade, há vinhos que alteram o sabor da comida, mas também há comidas que alteram os sabores dos vinhos. Existem regras básicas para as harmonizações, que podemos adotar para seguir como guia. No entanto, é aí que entra realmente o escanção. Mas a sensibilidade – e vou ser muito honesto – ou se tem, ou não se tem. Vamos dar um exemplo simples: um prato para harmonizar com a nossa ‘negra mole’ também harmoniza com um ‘bastardo’ ou um ‘rufete’. Mas, se conseguirmos discernir qual é a melhor, podemos intitular-nos escanção. Há um exemplo que dou nas aulas: se não provaram um ‘remexido’ branco com leitão, não sabem o que estão a perder, porque é uma daquelas combinações únicas na vida. Pode-se gostar ou não, mas dar o devido valor ao que foi criado é outra conversa. A nossa ‘negra mole’, que tem poucos taninos, bem fresca, com uma cataplana, não lhe altera minimamente o sabor e consegue ir ajudar os sabores mais fortes, como o tomate e o pimento e equilibrar a refeição.
As comidas com muito picante são o terror dos escansões?
As harmonizações são um trabalho conjunto entre o chefe de cozinha e o escanção. Este, tanto pode dar cabo do prato, como melhorá-lo. Não serve de nada andar em bicos dos pés a tentar mostrar que aquele vinho é XPTO, se ele for dar cabo da comida. A minha obrigação como escanção é dar o melhor vinho possível, mediante o gosto do cliente. No caso das harmonizações, dar o melhor vinho possível para equilibrar com a comida. O terror dos escanções são as comidas com muito picante. O picante altera tudo e só algo extremamente doce o consegue contrariar. Um dos maiores desafios que tive foi com um chef reconhecido, que tinha um prato extremamente picante. Tive de criar uma composição com um vinho generoso como base, para conseguir equilibrar o prato. Foi o meu maior desafio, mas funcionou. Mas, quando estamos a fazer uma harmonização, há que seguir uma lógica crescente. Não posso dar um vinho frutado, depois outro mais mineral e, de seguida, um outro mais frutado. A pessoa tem de atingir o auge. Mas cada um tem a sensibilidade que tem e faz as abordagens à sua maneira.
Por fim, qual a sua opinião sobre o espumante bruto tinto a acompanhar o leitão?
Pessoalmente, não consigo entender. Pode haver exceções, mas o espumante não acrescenta nada ao prato. Podem falar na gordura, mas, se vou comer leitão, é porque gosto de gordura (risos). E a laranja já lá está para equilibrar a gordura. Se, eventualmente, quiser equilibrar num pedaço mais gordo, consigo com um vinho branco com acidez. Nem todos os brancos têm capacidade para acompanhar o leitão; por isso dou o exemplo específico do ‘Remexido’. Como posso falar do branco especial da Quinta dos Carvalhais, os antigos Borges reserva brancos. Porque tudo é equilíbrio. Não é só a acidez. Depois, tenho de tentar ir buscar a doçura. Os tintos não servem, porque os taninos ultrapassam aquilo tudo, uma vez que é uma carne elegante. Gostos não se discutem, mas tem de haver sempre equilíbrio.
Que vinho acompanha a sardinha assada?
É uma coisa complicada, porque tem muitas nuances. Na brincadeira, comparo-a com o tremoço, pelas camadas de sabores que se experimenta na boca. É doce, é salgado, é tudo ao mesmo tempo. É quase aquilo que os japoneses definem como umami. Só não tem o picante. É por isso que não se bebe vinho com os tremoços; vai a cerveja. (risos). No entanto, falando mais a sério, o mais complicado na sardinha é a nuance da pele. A sua sensação ferrosa transporta-nos automaticamente para o tinto. E o tinto consegue equilibrar a sardinha na sua totalidade? Não! Mas podemos contornar com uma saladinha montanheira, para o pimento e o tomate irem harmonizar. E, nesse caso, recomendo um tinto ‘negra mole’. É perfeito? Não. Para ser muito honesto, para a sardinha consigo fazer cerca de 80% e nunca serei capaz de atingir os 100%”.
Agarrar o copo pelo pé
Qual a sua opinião sobre o famoso copo para o ‘Vinho do Porto’?
Não concordo com o nosso copo de ‘Porto’, o chamado ‘Siza Vieira’, que não é mais do que um copo de prova, que se encontra facilmente nas destilarias, principalmente nas destilarias de whisky, porque tem aquele formato que proporciona outras particularidades, aquando da prova. Até mesmo para o vinho, porque dá outras nuances, quando estamos a elaborar o vinho para o produtor. Sendo mais fechado e afunilado, conseguimos sentir melhor os primários (o que a uva dá), os secundários (obtidos durante a evolução) e os terciários (fruto do envelhecimento). O ‘Porto’, nas provas, é tratado como outro vinho qualquer. Quando estamos a beber um ‘Porto’, podemos usar um copo um pouco maior, mais largo, para ele se poder mostrar no seu máximo potencial.
E um copo tipo balão, que alguns defendem?
O problema do balão é o tamanho do pé. Ao entrarmos em contacto diretamente com o vinho, vamos aquecê-lo. O balão foi pensado para as aguardentes velhas e possui um pé mais curto, porque no passado aquecia-se o ‘brandy’ com a mão, ou aquecia-se primeiro com a lamparina e mantínhamos a temperatura com a mão. Hoje, já não se faz isso, porque se provou que a pessoa pagava o ‘brandy’ e metade do álcool evaporava-se por ação da chama. Não vale a pena ter copos bons, se o vinho não prestar, ou se as pessoas continuarem a agarrar o vinho pelo topo do copo.
Devemos, então, agarrar sempre o copo pelo pé?
Exatamente. Para manter a temperatura. Pela mesma razão se despeja pouco vinho, de cada vez. Também por isso, faz sentido a garrafa de 50 centilitros, usada por alguns produtores. É beber aquele momento, porque depois o vinho começa a perder qualidades. No caso do champanhe, substituiu-se a taça pelo ‘flute’. Contudo, no caso dos champanhes envelhecidos, deveria ser usada a taça, para os aquecer ligeiramente. Quem teve a felicidade de os provar, conhece bem a diferença.
Temperatura para cada vinho
Outro tema que levanta muitas questões é a temperatura a que devem ser servidos os vinhos?
Há regras básicas, mas há questões que temos de levar em conta, como a casta. E aí entra o escanção, porque há castas que necessitam de uma temperatura mais alta ou mais baixa, para mostrarem algo. Por exemplo, a ‘códega dolarinho’ tem uma especificidade única, a sensação de crocante, que sentimos na parte traseira da face. É tão leve que, se servirmos à temperatura de um vinho novo, deixa de existir. Temos de o deixar um pouco mais quente, para transmitir a sensação ao cliente.
E os espumantes e champanhes, que os portugueses bebem a baixíssima temperatura?
Devem ser servidos entre os 6º e os 10º, mas, uma vez mais, depende das castas. Um ‘Moet Chandon’ e um ‘Bollinger la Grande Année’, são coisas distintas. O segundo já envelheceu, tem o sabor das borras finas e deve ser servido a uma temperatura um pouco mais elevada.
Os brancos… também são servidos muito frescos?
Se quiser disfarçar um mau vinho branco, serve-o bem gelado (risos). Os brancos novos, entre os 9º e os 10º. Felizmente, as pessoas começam a apreciar os brancos velhos, que devem ser bebidos a uma temperatura aproximada aos tintos, os 12º a 13º. Se forem muito velhos, poderemos ir aos 14º, que é a temperatura de alguns tintos novos, como o ‘Beaujolais’ ou a nossa ‘negra mole’.
E os tintos?
Entre os 15º e os 18º, se for um vinho já envelhecido. Por exemplo, um ‘aragonês’ envelhecido já requer alguma elegância e um pouco mais de temperatura melhora-o. Quando os nórdicos nos pedem o ‘Porto’ à temperatura ambiente, eu pergunto: “à tua ou à minha?” (risos). Temos de ter a noção de que o controlo da temperatura serve para evitar potenciar a sensação de álcool no vinho, que se torna mais agradável com a temperatura mais baixa. Para usar uma palavra bem algarvia, ‘amansa’ o vinho e torna-o mais agradável. Mas depende das castas e da longevidade.