O fado e a guitarra portuguesa enchem a vida de Vítor do Carmo

Texto: Hélio Nascimento | Foto: Kátia Viola

in Portimão Jornal nº 26


Vítor do Carmo nasceu em Lagos, mas vive há muitos anos em Portimão, onde tem o seu nome associado, sobretudo, ao mundo artístico. Aos 70 anos continua a ser feliz de guitarra na mão e não vê mais nada no horizonte que o leve a trocar de paixão.

Reformado da Polícia Marítima, passou a dedicar-se ainda mais ao fado e à música. Já deu aulas, acompanhou artistas pelo país e pelo mundo, criou a fanfarra dos Bombeiros de Portimão, gravou quatro cd’s e fundou o Duo Trovadores. 

“Como é que isto começou? Andava na Escola Industrial e a dada altura houve um recital de finalistas. Não havia ninguém para tocar ou cantar fado. Eu até nem gostava muito, mas cheguei-me à frente e fui para o palco. E não é que comecei a gostar!”.

Já na Marinha, com o bichinho do fado bem vivo, aprendeu uns acordes com um colega, pediu a viola a outro e passou à prática estes parcos conhecimentos. “Acompanhava fado com a viola. O curso era em Lisboa, mas quando vinha de fim de semana ia tocar à Primitiva, à Caravela e à Cabaça, em Lagos. Refinei o gosto pela música, inclusive pela sul-americana, daquele tipo que era a imagem de marca do Trio Odemira”. 

Vítor do Carmo começou a participar em espetáculos, tocando viola, sempre com mais gosto em aprender. “No intervalo dos espetáculos, pedia a guitarra ao Fernando Anoia, que acompanhava o Fernando Farinha. Gostava daquele som, do timbre da guitarra portuguesa, que até me impressionava, embora não percebesse ainda muito do assunto. O Zé Gregório, pioneiro da guitarra portuguesa no Algarve, que vive no Parchal, começou a dar umas dicas. Ia a casa dele e tocávamos. Comecei a gostar cada vez mais”. 
  
Umas dicas de António Chainho 
Vítor é um bom conversador e sabe de cor e salteado todos os seus primeiros passos. “Aos 29 anos, o meu pai ofereceu-me uma guitarra e mais desenvolvi a prática. Pelo meio, estive em Lourenço Marques, levei a viola, lá toquei e ainda acompanhei o Carlos Macedo. Estive 11 meses em Moçambique, mas não me ambientei. Depois de nascer a minha filha, voltei ao Algarve”. 

A guitarra, entretanto, já não o largava e a dedicação aumentava a cada acorde. “Lembro-me que por volta de 1975 havia várias casas de fado em Lagos, a Caravela, Muralha, Jota 13, Cabaça, Janelas Verdes… e até às seis da manhã a música não parava”. Mais tarde, como na Marinha tinha a especialidade eletricista, esteve na manutenção do Hotel Golfinho, e, claro, sempre em ação. “Acompanhava muito a música sul-americana, que ainda hoje adoro”.

Como já deu para perceber, Vítor do Carmo é um verdadeiro autodidata, que se ‘formou’ à conta da tal paixão, em especial pela guitarra. “Uma certa vez veio cá o António Chainho, que esteve no Vila Vita, para o lançamento de um Mercedes. Vinha com ele o Pedro Nóbrega, mais um saxofonista da Ópera do São Carlos, e, durante o dia, confraternizávamos imenso. E lá vinha a guitarra. O Chainho ensinou-me a entrada do Mouraria. A minha formação foi esta. Umas dicas, via e observava e fui aprendendo. Se forem a Lisboa, nas casas do meio do fado, perguntam pelo Vítor do Carmo e todos me conhecem”. 
 
Um sheik na primeira fila 
Durante largos anos, o artista algarvio integrou o Duo Trovadores, que ele próprio fundou, “primeiro com o Emanuel de Lagos, depois com o meu cunhado Júlio Toscano e por fim, mais a sério, com o António Alfarrobinha”.

A dupla tocava, cantava e tinha sempre muitos espetáculos em agenda, sobretudo nos hotéis. “Éramos muito requisitados e íamos diversas vezes a Lisboa. Até a congressos de médicos”, prossegue Vítor do Carmo. 

Ao mesmo tempo que subia a sua cotação, mais vezes era convidado a acompanhar grandes nomes do fado, agora praticamente sempre com a guitarra, “um instrumento de eleição, para o qual, creio, é preciso um dote especial e imensa dedicação”.

Assim, acompanhou Beatriz Conceição, Teresa Tapadas, João Chora, Ada de Castro, Fernando Maurício, esporadicamente, e, mais recentemente, Camané e Pedro Moutinho, que, quando vinham de férias ao Algarve, ‘exigiam’ a companhia de Vítor.  

Em digressão por muitos países, esteve na Alemanha, Itália, Luxemburgo, Espanha e até nas Bermudas e no Dubai, “sempre com vários fadistas que me contratavam para o efeito”. Nas Bermudas, curiosamente, com Raquel Peters e Paulo Feiteira, “um grande homem da viola”, até tocaram num clube português denominado Vasco da Gama.

“No Dubai, com a fadista Inês Gonçalves, atuámos num hotel, durante uma semana, e até tivemos o sheik na primeira fila. Eles adoram o timbre da guitarra portuguesa. E conhecem o fado”.  
 
Espetáculos em restaurantes e coletividades 
Os portimonenses gostam de fado, garante Vítor do Carmo, embora não existam casas típicas no concelho nem tão-pouco na região. “Que eu saiba, só a casa da Alexandra, em Almancil. De resto, são coisas esporádicas, sobretudo em restaurantes ou coletividades que promovem um espetáculo de fado de vez em quando. Porquê? Acho que não está ao alcance de todas as bolsas. Há locais que têm fado quase todas as semanas, por altura do Verão, como, por exemplo, em Chão das Donas. Ouvimos muito fado, mas com estas caraterísticas, não com a tradição das verdadeiras casas de fado”.

Vítor também deu aulas – agora já não sucede com tanta frequência – e sente orgulho, hoje em dia, quando vê Filipe Batista, Gonçalo Rosa, Cecílio Martins, João Cardoso, Rafael Pacheco, João Rocha e muitos outros em atuação.

Chama-lhes “os meus meninos”. “Queriam aprender, vinham ter comigo e eu tinha pachorra e prazer. Dava as aulas mesmo aqui, em minha casa”, conta à reportagem do Portimão Jornal, sem se esquecer que o Boa Esperança chegou a ter uma escola, que, entretanto, já passou à história. 

Sobre a geração nova, que tanto nos impressiona, Vítor sublinha que “cada vez há mais gente a adorar este instrumento de eleição, que, naturalmente, nem todos tocam”, seja por uma questão de talento ou de entrega total.

“É necessário ter um grande coração e muita sensibilidade para tocar guitarra portuguesa. O Ângelo Freire, que acompanha a Ana Moura, chegou a vir cá e tocava connosco. E olha, a Marina Mota tinha 11 anos, vinha passar férias e cantava, comigo a acompanhá-la. Felizmente, ainda hoje surge muita coisa e este Verão, quero acreditar nisso, vai ser muito bom”, remata o guitarrista, que de momento toca todas as segundas-feiras em Faro e é presença assídua no Caseiro, o restaurante de Arão da freguesia da Mexilhoeira Grande, no concelho portimonense.  
  
“Devia apostar mais no fado” 
Vítor anda há mais de meio século com a guitarra nas mãos. Uma paixão incontornável. “O fado nunca vai acabar, claro que não. Temos agora muitos jovens com imenso talento, tanto fadistas como guitarristas. Vejam a Luana, a Ana Marques, Adriana Marques, Teresa Viola, Cremilde, Inês Graça, todos algarvios, mais a Estrela Maria, Hélder Coelho, Mário Saraiva… um leque de enormes artistas”.

No caso dos estrangeiros, como bem sabemos, a aceitação não podia ser melhor, assegura Vítor do Carmo, com a sua longa experiência. “Reagem de forma calorosa. E às vezes até choram com os sons que nós tiramos”. Depois, com um lamento, reconhece que Portimão “devia apostar mais no fado”. E, prosseguindo, fala da ausência de projetos, citando como exemplo os “espetáculos de rua, o que se vê muito lá fora, inclusive para promover os artistas da terra”.

À despedida, um ponto assente: o fado vai sempre acompanhar o nosso artista! “É até morrer, como se costuma dizer. E estou cá para ajudar. Sou sensível a esta arte e sempre pronto para ajudar e transmitir aquilo que sei, de forma espontânea e sincera. Sei que às vezes há um certo cinismo e hipocrisia, mas temos de superar tudo isso. Há tanta coisa boa no fado e na guitarra portuguesa!…”.

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