Professor Francisco Balancho: ‘Uma só língua, mil corações’

Texto e fotos: José Garrancho
Francisco Balancho nasceu na aldeia histórica de Santo Aleixo da Restauração, nos arredores de Moura, mas tornou-se um portimonense dos sete costados. Vive para a música e para os alunos, sendo um professor muito estimado pelos seus educandos e encarregados de educação. “Comecei a tocar banjo aos quatro anos e passei para o bandolim, pelas mãos do mestre José de Almeida, ferreiro. Todos tocavam de ouvido, mas eu quis sempre aprender a pauta”, recorda em entrevista ao Portimão Jornal.
Na aldeia não havia muitas oportunidades para aprender?
Não, mas eu só queria música e perguntei onde havia. No seminário de Beja. “Então é para aí que eu vou”. E fui, aos 12 anos. Sempre tive uma estrelinha a acompanhar-me e conheci o padre Cartageno, compositor muito conceituado em Portugal e no estrangeiro pelas suas músicas litúrgicas. Fiquei maravilhado com a sua imensa sabedoria em termos musicais e a sua simplicidade marcou-me muito, de tal modo que o convidei para meu padrinho de crisma.
Quer dizer que entrou no seminário pela música e não por vocação eclesiástica?
Foi mais pela música. Acabei por sair e fazer o 10º e o 11º ano em Moura. Depois, fui para o Conservatório de Évora. Perguntaram-me se tocava algum instrumento e disse que sim, bandolim. O professor Dinis, excelente mestre, era o único que sabia bandolim clássico. Disse-me para tocar algo e eu, armado em esperto, porque sempre me diziam que era bom, escolhi a música mais difícil do meu repertório. “Tu não vales nada!”, foi o seu comentário. Aquilo deu-me força. Comecei do zero e ainda tive de perder todos os vícios que tinha adquirido.
Ficou-se, então, pelo bandolim?
Mas não só. Estava em canto lírico e tinha tudo programado para ir estagiar na Holanda, quando a minha professora de canto adoeceu com cancro e não podia dar mais aulas noutro local, em Santa Clara. Pediu-me para a substituir. Tinha 18 anos e recusei, porque não queria seguir a via do ensino. O que queria era cantar! “Mas não tenho mais ninguém e faltam poucas aulas. Vai ver se gostas”, insistiu. Acabei por ceder. Deram-me uma turma de percurso alternativo. O ‘bichinho’ entrou e comecei a vacilar entre o que gostava mais, a via profissional ou o ensino.
Isso não obrigava a um recuo nos estudos?
Sim e foi o que os meus pais questionaram. Respondi que eles sempre me tinham ensinado que devia fazer aquilo com que me sentisse bem.
Como deu a volta à sua situação académica?
Enquanto continuava no Conservatório, comecei a fazer cursos de verão para jovens músicos, no Porto. Quantos mais fazia, por coincidência eram todos via ensino, mais o ‘bichinho’ crescia. Fiz um estágio em Paris, para ver outro mundo, muito diferente do nosso, com aquelas pedagogias, e o ‘bichinho’ ainda cresceu mais. Ao regressar, decidi que queria um curso muito didático e pedagógico, via ensino. Abriu nesse ano, em Beja, na Escola Superior de Educação, um curso que era exatamente o que queria, com a duração de quatro anos. Porém, enquanto tirei o curso, dava aulas, pois havia falta de professores de música.
E como veio parar ao Algarve?
Em 1999, acabado o curso, colocaram-me no Parchal, que nem sabia onde ficava, porque procurava no mapa e não o encontrava (risos). Diziam que era no Algarve, mas não o encontrava. Por coincidência, a minha afilhada de praxe, que era de Portimão, disse-me que ficava no outro lado do rio e que podia ficar na casa dela. Novamente, a estrelinha a proteger-me. Encontrei um grupo espetacular, do qual destaco outra alentejana de Moura, Rita Ruivinho, que foi minha madrinha de casamento e é madrinha dos meus filhos. Percebi logo que, aqui, a música estava muito adormecida e acabei por revolucionar aquela escola. Com o Parchal e Ferragudo, era um corpo de 500 alunos, incluindo o pré-escolar e os 1º e 2º ciclos. Os meus colegas tiveram uma intervenção estrondosa, porque perceberam o que queria. Deram-me carta branca e houve uma grande ajuda de todos. Comecei a dar aulas, em paralelo, na Che Lagoense, com um projeto grande, a Semana da Música, mas que durava mais de uma semana.
Nunca mais pensou em regressar ao Alentejo?
Ainda bem que pergunta. Não era para ficar no Parchal, mas os pais, nas minhas costas, fizeram um abaixo-assinado para eu ficar. Naquela altura, podia-se fazer isso. No entanto, acabei por ir parar à Buísel, onde estive 11 anos. Já tinha percebido que Portimão também estava sedento por música, mas cheguei à escola e os instrumentos estavam todos partidos.
Resolveu esse problema?
Fiz um protocolo com a Câmara Municipal. Por cada concerto, davam-me um instrumento. Quando saí, deixei a sala de música recheada.
E foi logo para a Nuno Mergulhão, onde se encontra?
Não. Entretanto, fui parar à Bemposta, por convite da professora Fernanda Rosa. Depois, estive um ano em Lagos, mas sempre a fazer projetos. De seguida, vim aqui parar e percebi que tinha nas mãos um diamante em bruto. São crianças muito especiais. E também encontrei e gostei da grande união entre colegas. Nos primeiros anos, andei a ver onde me poderia encaixar. Entretanto, muda de diretora. A professora Teresa Mendes foi para a Câmara Municipal e veio a professora Ana Alves, com um projeto completamente diferente. Percebi que ela valorizava muito as expressões e lancei este projeto. O primeiro foi ‘Mergulhar na voz de Amália’, que fizemos no pátio exterior da escola. Foi a minha experiência para criar um musical.
O vosso primeiro musical foi ‘A História de Portugal’. Porquê?
Porque quis aproveitar o vasto conhecimento da professora Maria João Duarte, alguém sublime que nós temos, uma grande historiadora. Foi a diretora científica do projeto. E como também gosto muito de história, fiz do berço ao século XV, porque vi que os alunos desconheciam o nosso passado histórico.

A escola tem uma grande percentagem de alunos de outros países, não tem?
É verdade. E, porque vêm de fora, não conhecem a nossa história. Tive alguns receios, mostrei o projeto a várias pessoas e todos me disseram para avançar. Modéstia à parte, foi muito positivo. Foi um trabalho diferente. Envolveu 1100 crianças, mais professores, auxiliares de ação educativa e alguns encarregados de educação. A seguir, tínhamos de fazer a continuação, que foram ‘Portugal 1’ e ‘Portugal 2’.
No último ano letivo, voltou a criar outro sucesso…
É verdade. Fomos às nossas raízes, à cultura, às músicas tradicionais, às belezas, à gastronomia. Entendi que deviam saber isso, porque é muito importante. Acima de tudo, a minha função é ensinar e, quando vejo essas lacunas, tenho esse dever de abrir os horizontes, não só para os nossos alunos, mas também para quem vem de fora para assistir. O melhor que me disseram, no final da apresentação do ano passado, foi que já não se lembravam de algumas coisas e que aprenderam muito com o musical. É isso que se pretende. Todos os musicais estão no YouTube e sei que há colegas que os colocam para dar as aulas.
Não é tarefa fácil?
Pois não, mas tenho uma base boa na retaguarda, a família. A minha mulher Ana Balancho é a letrista e faz um trabalho profundo. Depois, tenho a colega Maria João, que também me dá uma grande ajuda na investigação histórica. E um núcleo duro de colegas, uma equipa de trabalho.
O próximo musical já tem o casting em andamento?
É uma história engraçada. Estávamos à mesa e, em conversa, o meu filho (15 anos) disse-me que não simpatizava muito com a música portuguesa; preferia a inglesa. Entende-se, mas custou-me ouvir, pois temos tão bons poetas, letristas, compositores e cantores. E mostrei-lhe, dando ênfase à sua riqueza. E, como professor de educação musical, é meu dever transmitir esse conhecimento.
É tendência dos portugueses ir buscar coisas lá fora…
Pois é, quando temos tantas coisas tão boas. Dentro do musical, fiz questão de que fossem pessoas de Portimão a fazer os trabalhos em tela e outros, porque o concelho tem grandes profissionais, em todos os campos. A professora de dança não é, mas é como se fosse. É como eu, que nasci no Alentejo, mas já cá estou há mais anos do que os que vivi lá.

Então o próximo musical é sobre música portuguesa?
É sobre a língua portuguesa e já tem título: ‘Uma só língua, mil corações’. E, a partir de agora, é voar. Ao mesmo tempo, dou aulas ao segundo ciclo e faço uma perninha no primeiro. E também dou ações de formação musical e expressão musical para os professores, desde o pré-escolar até ao sexto ano.
É gratificante fazer estes sucessos com os alunos?
É, mas também é uma grande responsabilidade. O prémio ‘O Professor das nossas Vidas’, que me deram o ano passado, obriga a um grande respeito da minha parte para com os docentes, os alunos, os auxiliares de educação e encarregados de educação. Um prémio destes acarreta uma grande responsabilidade, porque difícil não é obtê-lo, mas mantê-lo. Assim, quando faço qualquer coisa, penso sempre nestas pessoas todas e encaro isto com muita humildade, mas sentindo a grande carga de responsabilidade inerente.
Com toda esta azáfama, a família não fica para trás?
Às vezes, fica um bocadinho. Mas o que me estimula são os meus três filhos a dizerem-me: “Pai, não pares, porque gostamos muito disto que fazes. És um modelo para nós”. E, para mim, não é só abrir os horizontes, para que as pessoas possam fazer mais e melhor do que eu, e mostrar que as escolas podem fazer este trabalho, mas é também para os meus filhos, a quem digo que “com coragem e esforço, consegue-se tudo. Mas, acima de tudo, com integridade e respeito pelos outros”.
Aulas também no privado
Francisco Balancho é também professor no Externato Menino Jesus (Vila Pinto), um colégio privado em Faro, há 18 anos, além do ‘Ti-Té’, em Portimão, onde a diretora Lurdes lhe dá ‘carta branca’. Também já ensinou na Flor, no Colégio do Rio e na Universidade da Criança, que, entretanto, já não existe.
Alunos do Agrupamento foram ‘diamante em bruto’
Para o docente, os alunos do Agrupamento Nuno Mergulhão foram um ‘diamante em bruto’. Sobretudo, porque os alunos com carências são crianças sedentas, defende. “Há mais de 14 anos que faço um protocolo com o ‘La Féria’ e vamos a Lisboa ver os musicais dele. Visitamos sempre um museu. Há quatro anos, tive aqui 200 alunos que nunca tinham saído de Portimão. Isto mostra bem” esta realidade. A verdade é que, segundo o docente, estas crianças quando recebem algo, aceitam-no de “mãos abertas”. “Sabe o que é chegar à escola e ter um abraço apertado, porque as crianças abraçam-me? Sinto-me muito acarinhado, não só pelos colegas e pelos auxiliares, mas pelos alunos. Isso faz a diferença, porque o aluno que tem tudo perde interesse. E estes alunos começam a perceber que eles até têm importância. Começam a notar que as outras escolas vão ver o nosso musical e gostam. Isto enche-os de orgulho. E quanto mais os estimulamos, mais eles querem dar. E é isso que faz estas crianças muito especiais, porque eles, nas aulas, dão-me tudo”, confidencia o professor. “Isto é uma escola de intervenção. A Câmara e Junta já o entenderam e ajudam-me muito, quando faço estes musicais. Começa a haver um olhar diferente, porque já mostrámos trabalho. Tenho muitos patrocinadores atrás, para fazer os musicais. Temos de mostrar, para os outros confiarem, apoiarem e acreditarem que vale a pena investir em nós. Porque a cultura é sempre uma mais-valia, abre-nos os horizontes para outras áreas”, acrescenta.
Vencer sem saber
Durante a entrevista, Francisco Balancho partilha com o Portimão Jornal um episódio caricato. “Também já concorri a algumas edições da ‘Chaminé de Ouro’. E, quando estava na Buísel, participámos com uma canção num evento, sem saber que era um concurso. Acabámos por ganhar e tinha de ir a Montenegro e à Sérvia com os miúdos. Não havia dinheiro e pensei em fazer rifas, mas o dinheiro não chegava. Eram 500 contos cada passagem e éramos dez. A Câmara deu 500 contos, o Governo Civil também deu dinheiro e convidámos os pais para contribuírem”, recorda. Foram ainda todos para a Feira de Velharias de Ferragudo para vender algumas coisas. Nessa altura, as Barbies tinham saído de moda e quase todas as meninas tinham estas bonecas para vender. “Não tínhamos noção de que eram muito requisitadas, por isso só levámos quatro. Venderam-se bem e percebemos que havia procura. Aumentámos o preço e explicámos o porquê da venda”, lembra. “Um dos miúdos era filho de uma juíza e o marido dela levou os sapatos e apregoava: ‘Quem quer os sapatos da juíza?’ (risos). Conclusão, arranjámos dinheiro para ir lá por uma semana”, conta. Quando chegaram não perceberam que havia um novo concurso, porque “eles só falavam francês”, diz. Tinham de tocar pelas ruas, com os espanhóis ao lado, mas quando se aperceberam os concorrentes do país vizinho tinham desaparecido. “Pensámos que tinham ido para outras ruas. Perguntei a um senhor da organização se eles tinham alguma canção sobre um santo de sua devoção, como nós temos da Nossa Senhora de Fátima. Ele respondeu que sim e que se a cantássemos caiam-nos todos aos pés. E para aprendermos aquilo? Nunca me senti tão burro. E tinha de aprender para ensinar aos alunos. Não sei o que estávamos a cantar, mas as pessoas choravam, quando nos escutavam”. Não sabiam que o voto era feito pela população e que estavam no TOP. Na final, pediram-lhes para cantar essa canção, num auditório onde tinham estado os ‘Madre Deus’, na semana anterior. Mais tarde, chamaram o grupo portimonense para receber o prémio e foi quando se aperceberam de que era um concurso e que eram os vencedores.





