Refood Portimão salvou meia tonelada de alimentos em seis meses
in Portimão Jornal, nº 36
Ajudam como podem e tentam fazer a diferença na vida dos mais carenciados. Falta um espaço onde possam instalar o núcleo da Refood de Portimão, mas aos poucos têm vindo a conseguir algumas conquistas. Andam no ‘terreno’ há seis meses e já conseguiram evitar que cerca de meia tonelada de alimentos fosse parar ao lixo e chegasse às mãos de quem mais precisa. Apenas servindo de intermediário.
O processo até é simples. “Estupidamente simples”, exclama Catarina Martins, coordenadora temporária do núcleo, com outra voluntária. “Ir recolher a comida e entregá-la”, reforça. E foi numa destas noites de outubro que o Portimão Jornal acompanhou a ação dos voluntários que prescindem do tempo livre para este projeto com duplo objetivo de ajudar quem precisa e combater o desperdício.
Enquanto esperam que a porta do armazém do Continente no Cabeço do Mocho abra para entregar os produtos em fim de validade, dados para ‘quebra’ ou as refeições prontas que sobraram, Mónica Silva, acompanhada pelo filho Manuel Paiva, afirma ‘sem papas na língua’ que resolveu integrar a Refood, porque ouve “constantemente as pessoas a queixarem-se de tudo, mas não fazem nada em contrário sem ser queixarem-se”.
Quis, por isso, agir e levou o filho consigo para ir tomando contacto com esta realidade. Conheceu o conceito através de uma amiga que era voluntária em Lisboa e que lhe contou que estava a abrir um núcleo em Portimão. “Na altura dei o nome e passei a integrar o grupo”, diz.
À porta distribuem tarefas, verificam quais os alimentos doados e tentam selecionar por critérios. Se a pessoa auxiliada vive sozinha, se é uma família com crianças ou se o beneficiário tem restrições alimentares. Das prateleiras para os sacos seguem carne, legumes, pão e até frango assado.
Na outra ponta da cidade, Ricardo Jesus, que ficou sem emprego no setor do turismo devido à pandemia, diz que esta ajuda chegou em boa hora.
“Acho este projeto muito bom, porque está a ajudar várias pessoas que, devido à covid-19, passaram ou ainda estão a passar por necessidades. Eu estou incluído e esta é uma grande ajuda”, afirma.
Vive com a esposa e dois filhos pequenos e, de repente, viu os rendimentos reduzidos e as contas para pagar. “Estamos a receber uma ajuda da Segurança Social relacionada com a pandemia, mas temos a casa para pagar, muitas despesas e dois meninos… Temos que aguentar e suportar”, confidencia ao Portimão Jornal. E todas as semanas este reforço alimentar ajuda o agregado a ter acesso ao básico.
Os voluntários, que são cerca de 30, revezam-se nos turnos. Todos os sábados e domingos, quer de manhã, quer à tarde, vão buscar os alimentos. Estes são entregues às famílias, por exemplo, ao domingo à noite. Na parte da manhã são entregues às instituições como a ‘Soup Kitchen’.
Dar a mão a quem precisa
Chegam, por agora, a 11 famílias, mas os números têm tendência para crescer de semana para semana. Para já, atuam em zonas como o Bairro Pontal, a Avenida 25 de Abril e Mercado.
Ainda não há uma escala maior, porque não têm forma de acondicionar e guardar os produtos. Assim, tudo o que recolhem é entregue de imediato.
António Ambrósio é outro dos beneficiários. Nessa noite leva a comida para ele e para outro amigo que não conseguiu ir buscá-la. “Há muita gente a passar necessidade. Os salários são baixos e as rendas são altas. Com as despesas de água e luz, há muitas pessoas a precisarem de recorrer a instituições como esta”, sublinha. Vive em Portugal há cinco anos, desde que deixou o Brasil, mas o último ano e meio tem sido difícil por causa da falta de trabalho. “Conheci este projeto há um mês e é uma iniciativa excelente que está a ajudar muitas famílias”, assegura. No final, agradece com um sorriso a disponibilidade das voluntárias.
Aliás, são esses momentos que lhes dão força para disponibilizar o seu tempo. Lúcia Matos era professora de educação física. Aposentou-se há cerca de um ano, passou a ter mais tempo livre e decidiu aderir a esta iniciativa. “Estou desejosa de termos um espaço nosso, porque será totalmente diferente. O projeto é importante, porque temos conhecimento de pessoas que, entretanto, ficaram em situação muito precária por termos entrado na pandemia”, ressalva.
Falta de um espaço impede novas dinâmicas
Apesar dos contactos com a Câmara Municipal, a Refood ainda não conseguiu um espaço. Estão a tentar de outras formas que alguém lhes ceda um local onde possam acomodar os alimentos e começar a pensar em alargar esta atuação.
“Pode ser qualquer espaço. Alguém que o ceda durante algum tempo, até porque a questão da interajuda comunitária é uma das grandes mais valias da Refood. Aos poucos, as etapas vão sendo superadas. Uma empresa de Portimão já nos ofereceu as t-shirts”, descreve.
Por ainda não terem condições, não conseguem dar corpo ao conceito desta instituição, que é o de recolher refeições confecionadas que são os excedentes dos restaurantes para entregar aos mais carenciados.
Cresce a pobreza envergonhada
A pandemia da covid-19 afetou sobretudo as famílias da classe média, o que leva a que haja cada vez mais pobreza envergonhada. São diversas as pessoas que sofreram uma grande quebra de rendimentos por trabalharem nas áreas que foram mais afetadas por esta doença, com os sucessivos confinamentos e restrições. “Há pessoas que não pedem ajuda e estão mesmo a precisar. Não devem ter vergonha, porque, eventualmente, nalgum ponto da nossa vida, precisamos de auxílio, seja de que tipo for. Neste caso, o que podemos prestar é a nível alimentar”, sublinha Catarina Martins.
Covid-19 atrasou os planos, mas não os destruiu
Os dois confinamentos e as sucessivas restrições de circulação não levaram a que o novo núcleo deixasse de funcionar ou que os planos fossem deitados por terra.
“A ideia surgiu há dois anos. Havia um senhor de nacionalidade inglesa que estava à frente do projeto. Ele estava a tentar juntar voluntários. Eram essencialmente ingleses que moravam cá”, começa por explicar Catarina Martins.
Despertou-lhe a atenção. A vontade de ajudar os outros já estava na sua natureza, mas não é de Portimão e não conhecia quase ninguém. Quando viu a página de Facebook, enviou mensagem. Já conhecia o conceito e quis integrá-lo. Os primeiros tempos foram para angariar voluntários e, só no final de 2019, tinham conseguido o suficiente para criar um núcleo na cidade.
Ainda foram a tempo de realizar as primeiras reuniões em janeiro de 2020 e tudo estava a correr de feição. Tinham a primeira reunião geral marcada para 11 de março e a reunião sementeira, de apresentação à comunidade, agendada para 11 de abril.
“Com a pandemia foi tudo suspenso, durante um ano. Só em março de 2021 conseguimos ativar. No entanto, não estivemos parados, pois estabelecemos protocolos e estivemos a perceber como poderíamos avançar”, relata a responsável.
A Refood tem um protocolo a seguir quando há a criação de um núcleo. Essas regras tiveram, porém, de ser adaptadas. Foram apadrinhados pelo núcleo de Faro, que tem no grupo os embaixadores do Algarve.
“Têm-nos ajudado nesta questão de estabelecer o núcleo”, conta ainda a técnica de farmácia. Apesar da boa vontade e das pequenas conquistas, falta ainda um local que sirva de base a todo o procedimento.
Sociedade necessita de repensar desperdício
Apesar deste ser um projeto que ajuda pessoas em dificuldades, há outra mensagem muito importante que está por detrás deste conceito. O combate ao desperdício alimentar terá de ser uma prioridade para todos, para bem da sustentabilidade do planeta, defende a coordenadora. “Não se justifica, na atualidade, existir desperdício alimentar. Porque há pessoas que necessitam, mas também pela questão ambiental e da sustentabilidade”, evidencia. “Pensar que, muitas vezes, comida embalada vai para o aterro, do ponto de vista das emissões… Isto não faz sentido nenhum nos dias que correm”, argumenta. Há por isso uma mensagem a passar às gerações mais jovens, que até estão mais atentas para estas questões, mas também às intermédias, nas faixas dos 40 e 50 anos, refere. “Temos excedente, porque é que tem de ir para o lixo. Não! Arranjamos um intermediário que possa levar a comida onde ela faz falta. É uma ideia tão incrivelmente simples. E acho que por isso é que funciona. Sem burocracias”, constata Catarina Martins.
BREVES
Sinalização
A Refood tem a sinalização de cerca de dez famílias e a coordenadora tem esse registo mas evita usar nomes. “Só os contactos e as moradas para manter o anonimato o mais possível”, garante. Há pessoas mais fechadas e há outras que desabafam e falam mais connosco, diz.
Coordenação temporária
Catarina Martins é uma das coordenadoras temporárias do núcleo indicada pelos embaixadores da Refood no Algarve. Terá esta função até que haja eleições internas. Para já, diz que a função não lhe custa nada, porque acredita mesmo no projeto. Há, ainda assim, dificuldades que têm de ser superadas. “Ainda nos juntamos poucas vezes e a maioria dos contactos são online. Temos gestores de pastas, voluntários, beneficiários, fontes de alimento. Temos um grupo no WhatsApp com 40 pessoas a trocar mensagens, mas é uma ferramenta que nos ajuda imenso e agiliza a comunicação”, afirma.
Protocolos
O grupo já conseguiu estabelecer protocolos com o Continente, o Aldi e o ‘Mel e Canela’. Conta com o apoio esporádico do ‘Overseas’ e estão disponíveis para mais ajudas. O Auchan mostrou-se disponível para ajudar com voluntários, pois já dá a comida não comprada a outras instituições e direciona outros produtos para a ‘Too good to go’, que Catarina Martins considera positivo porque também combate o desperdício. Para já, a satisfação de recolher cerca de meia tonelada de alimentos, em pouco mais de seis meses e a funcionar apenas ao fim de semana dá alento ao grupo e incentiva-os a continuar.
Formação para educar
“De momento ainda não temos a pasta da formação, mas também existe e é algo que gosto, porque também sou formadora. As pessoas não foram educadas para poupar ou não tiveram de o fazer como os nossos avós. Estamos agora a começar a entender que é vital para a nossa sobrevivência e temos que o fazer todos os dias”, acrescenta. Aqui entra também o consumo consciente e a economia doméstica. Ações de formação para as escolas e para a comunidade podem ser uma opção para breve em Portimão.