Trinta anos a fazer teatro e a formar jovens para a vida
Texto: hélio Nascimento | Fotos: Portimão Jornal
Tudo começou no ano letivo de 1993/94, com a peça ‘Gil Vicente a Sério e a Brincar’, uma adaptação do ‘Auto da Barca do Inferno’ e da ‘Farsa de Inês Pereira’, obras daquele autor. Trinta anos depois, ‘A Cor da Liberdade’, uma clara alusão às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril através das palavras de alguns poetas portugueses, deu sequência a um percurso notável do grupo ‘O Teatro da Caverna’, da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes.
O adjetivo notável, possivelmente, é até demasiado ‘curto’ para dar expressão ao que dois professores e um conjunto – sempre renovado – de alunos vêm produzindo naquele estabelecimento de ensino de Portimão, através da arte do teatro. De facto, são 30 anos a fazer teatro e a formar jovens para a vida, naquilo que começou por ser um projeto extracurricular (tal como hoje sucede), integrando alunos do Ensino Secundário, e que se tornou num importante elo de ligação entre escola, família e comunidade.
Os professores Nídia dos Santos e Alfredo Gomes são os pais do projeto, com a particularidade de este último estar presente desde a primeira hora. “Na escola já existia uma tradição teatral antes do professor ter sido aqui colocado, mas era algo embrionária. O professor trouxe o gosto pelo teatro, transformou a dinâmica dos alunos e da realização de eventos e animação de espaço”, conta Nídia dos Santos, no arranque da conversa com o Portimão Jornal.
A troca de impressões decorre numa espécie de anfiteatro da escola, um espaço bem mais apropriado do que aquele que em 93/94 marcou o arranque do grupo. “Este local data de 2001 e é uma conquista nossa. Queríamos um espaço próprio, com melhores condições, e, com a colaboração dos encarregados de educação, que cá vinham ajudar e trabalhar em horário pós-laboral, conseguimos os nossos propósitos. Desde então, a qualidade dos espetáculos deu um salto”, reconhece Alfredo Gomes.
O agrado do público e o orgulho dos alunos
A sala tem 90 lugares, o que, no dizer dos professores, acaba por ser uma vantagem, “porque apresentamos várias vezes o espetáculo e isso permite que os alunos atores cresçam e que a qualidade do trabalho final resulte melhor”. Ou seja, aquilo que começa por funcionar como um tubo de ensaio acaba por ser uma mais-valia para o grupo.
Nídia e Alfredo fazem tudo, dos textos à música, para além, claro, de ensinarem os jovens e levarem as peças ao palco. São professores de português e francês e também lecionam a disciplina de expressão corporal dramática. O grupo, formado no ano letivo de 1993/94, integra todos os ‘voluntários’ que frequentem o Ensino Secundário e que desejem experimentar a expressão teatral.
A tradição do teatro na escola vem pois de longe, embora a pandemia tenha desmobilizado um bocado. A professora lembra que, antes disso, “muitos jovens escolhiam a nossa escola porque havia teatro”. Os ensaios decorrem às quartas-feiras, que era um “dia livre, mas agora, com disciplinas de desporto, aulas de apoio e de espanhol, por exemplo, o que antes permita que qualquer aluno frequentasse o teatro é hoje uma limitação de tempo porque essas horas deixaram de ser livres e passaram a ser horas letivas”.
Nada disto, todavia, demove os nossos interlocutores, inclusive porque, face ao entusiasmo dos alunos atores, é sempre bom fazer teatro. “A poucas semanas da estreia das nossas peças também ensaiamos aos sábados e domingos e nas pausas do Carnaval e Páscoa”. A subida ao palco ocorre no final do ano letivo, no 3º período. “O mais importante é que seja do agrado do público e que os alunos se sintam orgulhosos do que fazem”. E é isto mesmo que tem sucedido ao longo de tantos e tantos anos, justificando uma nota alta e o reconhecimento geral.
Teatro muito a sério
Alfredo Gomes rejeita que o teatro escolar possa ser, às vezes, visto como teatro menor. “Nós levamos o teatro muito a sério! Até costumo dizer que fazemos teatro na escola, o que é diferente. Felizmente, os comentários dizem que se trata de trabalho profissional”, argumenta. E convém dizer que ambos os professores são autodidatas, sem formação específica, embora Alfredo tenha passado por algumas experiências enquanto estudante e que, em 2010, fez um mestrado em Faro.
“Vemos o teatro como arte muito séria e transmitimos isso mesmo aos alunos, que percebem o que pretendemos e a seriedade do que temos em mãos”. A qualidade dos textos “é muito razoável”, seja de autores que façam parte do plano curricular do aluno, ou, então, comemorativos, para assinalar qualquer data relevante do país. “O teatro é cultura e também por isso desejamos que os alunos cresçam a todos os níveis. A evolução, de resto, é espetacular! Nós trabalhamos com técnicas de teatro, dicção, atitude, trabalho de ator, de apoio psicológico, autoestima, autoconfiança e imenso respeito pelo grupo”.
O grupo, assinale-se, é composto geralmente por 15 alunos, de entre um lote que se inscreve, “continuando depois os que querem”. Frequentam o 10º, 11º e 12º ano e levam a palco uma peça por ano, com atuações em vários locais, do Teatro das Figuras em Faro a animações na Cadeia Municipal, em lares, na rua, e no Março Jovem. “Fomos também à Casa da Música no Porto, a Lagos, Lagoa, Loulé e, em Portimão, todos os anos no Teatro Municipal, para além da Biblioteca Municipal, Museu e na Casa Manuel Teixeira Gomes”.
O grupo é aberto a todos os interessados, adianta o professor, especificando que “trabalhamos com pessoas, que são todas diferentes, aconselhadas pelos diretores de turma, que acham que frequentar as aulas de teatro faz bem, em termos de socialização”. Relevante é que os alunos, “mesmo com algumas diferenças, se sintam importantes e iguais aos outros, ao jeito deles, potenciando as caraterísticas de cada um, e que, ao serviço do trabalho do grupo, se sintam satisfeitos e recompensados”.
Comemorando os 30 anos de atividade, foi realizada uma exposição, sobretudo fotográfica, que levam o visitante a ‘entrar’ pelos meandros do que foi o percurso do grupo, sempre em prol da educação pela arte.
Vem aí Camões!
Entre as muitas peças já levadas a cena, Nídia dos Santos destaca ‘Inês de Portugal’ como aquela que mais satisfação lhe deu, sobretudo “pela beleza dos textos e da música, que me tocou profundamente”. Para Alfredo Gomes, a de melhor recordação “é sempre a última, no caso a ‘Cor da Liberdade’, precisamente por ser a última. “Todas as peças são uma aventura, porque partimos para o desconhecido, sem saber ao certo o que vai acontecer. Curiosamente, os enganos que acontecem nos ensaios são aproveitados depois na peça, visto que há sempre coisas que é necessário mudar e uma panóplia de problemas que é preciso resolver”.
O trabalho de equipa tudo resolve e os professores aludem a uma peça sobre os migrantes no Mediterrâneo, com “imagens reais, da televisão e de cortar a respiração, que passaram em silêncio absoluto”. As memórias são muitas e boas e é nesse contexto que chegamos ao próximo trabalho, uma curiosidade do Portimão Jornal que é prontamente satisfeita.
“Em 2025? Camões! Porque nos queremos associar à comemoração dos 500 anos do seu nascimento e porque Camões é Camões”. Para trás já ficaram textos com imensa história, de “grandes escritores, de Saramago a Gil Vicente e autores da literatura portuguesa clássica”. Algumas peças são feitas de raiz, fruto da pesquisa de textos e autores, interligados de modo lógico e estético pelos professores, numa pesquisa catalogada de morosa e complicada.
Às vezes é mesmo difícil levar uma peça ao palco, mas a vontade e o amor pelos miúdos e pelo teatro tudo supera. “Estamos sempre dispostos a ajudar os alunos a evoluir e crescer. E eles não se chateiam, nunca ninguém se queixou. Negociamos as coisas com eles, não fazemos nada que os contrarie e eles confiam em nós, inclusive porque a relação é ótima”, garante Nídia.
A beleza do todo num aperfeiçoar sucessivo
No entender do professor Alfredo, “o teatro tem de ser feito com grandes textos, com critério de qualidade, o que é um elemento fundamental para que o trabalho vá em frente”. Uma eventual resistência inicial da parte dos alunos é facilmente ultrapassada. “Eles acabam depois por aderir de forma espetacular, até pela música. Já introduzimos fado, nos ‘Amores Imperfeitos’, e a reação foi tal que até chegou a ser o hino daquele grupo no jantar de final do ano”.
A peça Camões está a dar os primeiros passos, as inscrições sucedem-se a bom ritmo e o trabalho de atores não tardará. “Vamos ensinar técnicas e formar o grupo, de modo a que os alunos confiem uns nos outros, com dinâmica, treinando a projeção da voz, dicção, pausas certas, a expressividade, a improvisação e até a aceitação do erro. Importa que eles se permitam errar, sem se preocuparem em demasia, pois é algo natural”. Depois vem a introdução de alguns textos, na antecâmara dos ensaios.
A criação não cai do céu e é através das ideias que vão surgindo, dos ajustes, debates e decorar dos papéis que a obra nasce, com muito trabalho de pesquisa a nível de texto e de música. “Vamos evoluindo, vamos escolhendo e procurando acertar, de forma a que no final haja uma simbiose perfeita entre atores, luz, texto e música, exponenciando a beleza do todo, num aperfeiçoar sucessivo até à estreia”.
Os professores estão sempre recetivos às opiniões de fora, inclusive de amigos de alunos que assistem aos ensaios. “Às vezes ainda alteramos. Já mudámos atores a 15 dias da estreia, o que é complicado, mas eles confiam em nós. São alunos que estão a ter uma experiência de teatro e para nós é um trabalho de recomeço constante. Depois, ganham asas e voam”.
Teatro da Caverna: o mistério do nome
‘Teatro da Caverna’ porquê? Alfredo Gomes desfaz o mistério do nome do grupo num ápice. “É uma história engaçada. Normalmente, a cor do palco é o preto, porque concentra a luz, e, assim sendo, pedimos para que a nossa sala fosse pintada de preto. Os alunos diziam que parecia uma caverna… Com associação à caverna de Platão, porque havia excertos disso no nosso trabalho, achámos que era um nome forte e com o qual nos identificávamos”. A denominação ficou e persiste, quiçá ‘ajudando’ os jovens atores a ensaiar e ensaiar, decorando os textos e ultrapassando obstáculos que à partida pareciam impossíveis.
Do palco para o triunfo no Masterchef
Na satisfação crescente de verem muitos jovens enveredar pela carreira, Nídia e Alfredo destacam Carlos Oliveira, que se tornou profissional, e deixam uma palavra especial a Teresa Colaço, que ganhou recentemente o Masterchef (um ‘talent show’ de culinária transmitido pela televisão). “Se não tivesse passado pelo nosso teatro, a Teresa não teria coragem para esta experiência, tão tímida que era”. As saudades são constantes e a ligação mantém-se. “Todos os anos se cria uma família e o bichinho nunca desaparece. E alcançamos outro objetivo, que é a formação do público. Os alunos que passem pelo ‘Teatro da Caverna’ veem esta arte de forma diferente e serão espetadores na idade adulta”.