António Romão, tripulante mais antigo do salva-vidas de Ferragudo

Texto e fotos: José Garrancho


As populações das localidades marítimas do Algarve vieram dos campos para o mar. Primeiro, vinham no Verão, quando havia pesca, regressando ao trabalho rural no Inverno. Depois, alguns acabavam por ficar pelas lides do mar e abandonavam definitivamente a agricultura. Porquê? Seria porque a vida de pescador, embora árdua, era melhor do que a de lavrador? Seria porque ‘a galinha da vizinha é mais gorda do que a minha’?

António Romão não foi exceção. “Toda a minha família era do campo, trabalhavam como quinteiros e jardineiros. O meu pai fazia trabalhos para as famílias todas de Ferragudo, um dia para uma, outro dia para outra. O máximo eram três dias seguidos. Chegava ao fim do dia, recebia a jorna. Naquele tempo, era assim”, recorda.

Viveu até aos dez anos na Torre do Vale da Lapa, zona rural encostada ao mar, onde o pai era quinteiro. “Era uma casa com dois quartos, uma cozinha pequena, um hall de entrada, um palheiro, onde havia uma junta de vacas, e uma alpendorada pequena para o burro, que era o meio de transporte de então”, afirma. A casa, embora abandonada, ainda existe.

António, ainda não tinha cinco anos, já vinha a Ferragudo buscar o pão. “Aprendi o caminho com um vizinho mais velho. Vim duas vezes com ele e, à terceira, sozinho. Mas perdi-me e, quando dei por mim, estava na zona do farol. Mas vi o pinheiro da Marques, que era o ponto de referência, fiz rumo a ele e encontrei o caminho. Não havia estradas, apenas veredas. E a gente atravessava as fazendas, para tornar o caminho o mais curto possível”, explica.

Aos sete anos, foi para a escola da Rocha, o nome da professora, que ficava perto de casa, onde ainda frequentou a terceira classe. O edifício, em ruínas, ainda lá está.

“Depois, foram construídas as escolas primárias em Ferragudo, os dois edifícios, mas só com rés-do-chão e quatro salas, as escolas pequenas tiveram de fechar e fomos obrigados a vir para a escola nova, onde repeti a terceira classe, porque a professora disse que eu vinha muito atrasado, e completei a quarta, indo fazer exame em Lagoa, no Convento de São José”, refere.

Não havia dinheiro para ir estudar na Escola Industrial e Comercial de Silves e o pai perguntou-lhe se queria ir para o mar, onde poderia encontrar futuro.

O cabo-de-mar Manuel Correia, que trabalhava na Capitania e era amigo do seu pai, passou-lhe a cédula marítima. Depois, disse-lhe para ir tirar a carta de motorista. “Fui ao Alfarrobeira, ele deu-me um bocado de chapa e mandou-me alisar, para ficar direita. Pronto, passei!”, conta.

Manuel Correia conseguiu arranjar-lhe lugar como ajudante de motorista numa enviada, a ‘Sãozinha’, do João Frederico. “Ganhava-se pouco, mas o mestre da enviada, quando metia peixe, pedia ao mestre da traineira um ‘xalavar’ de peixe para mim. Depois, metia numa caixa, vendia e trazia para casa. Mas andei pouco tempo, porque só entrei em agosto ou setembro e, no Inverno, as artes paravam para o defeso”, lembra.

No ano seguinte, foi para a ‘Maria José’, do António Bica. No terceiro ano, um pescador de Ferragudo, Alberto ‘Preto’, mandou fazer um barco com cerca de 10 metros e convidou-o para ir com ele ao aparelho.

Os arrastões espanhóis
“Íamos largar os aparelhos, aí pelas cinco da manhã, na baía de Pêra e aquilo estava cheio de arrastos espanhóis, a pescar na candonga, só com uma luzinha. Não havia dia nenhum que não perdêssemos um ou dois aparelhos. Depois, chegávamos ao pé deles e dizíamos que tinham o nosso aparelho na rede. Uns suspendiam e não se perdia tudo, outros não queriam saber. Mas ele era muito alvoraçado, chateava-se muito com tudo e eu deixei-o. Tinha um primo, o António Rocha, que andara na pesca do bacalhau e tinha comprado uma lancha com motor e fui andar com ele, porque, entretanto, consegui a carta de motorista de 25 cavalos. Íamos à sacada, ao aparelho, à lula e cheguei a ir ao peixe-espada, que veio à costa, na zona de Sagres, em quantidade nunca vista”, conta.

Mas o primo foi para África, para a marinha mercante, e António Romão entrou como ajudante de motorista para a ‘Maria Odete’, a traineira mais pequena de Portimão, propriedade do José Inácio, até ir para a tropa.

Fez o serviço militar em Tancos, como motorista de um barco usado para atravessar o rio, escapando à guerra no Ultramar, que começara. Regressou a casa a meio do Verão, os barcos tinham as tripulações completas, mas disseram-lhe que havia vagas nos arrastões, em Lisboa.

A experiência nas enviadas
“Meti-me no comboio, fui lá e aquilo estava cheio de malta daqui. Tinha acabado de me inscrever, veio um e perguntou-me se queria ir já para o mar, porque havia vaga para um ajudante de motorista. Só tinha levado uma muda de roupa, mas decidi experimentar. Não gostei, porque o barco era o mais reles que andava na costa e tinha de fazer quartos de seis horas fechado lá em baixo, naquele ar saturado. No final do mês, despedi-me e regressei a Ferragudo. Nesse Verão, já não consegui encontrar trabalho”, afirma.

No ano seguinte, foi para uma enviada do Agostinho da Tabaqueira, a ‘Bendito Sejas’. “Era uma maravilha, pois era só pôr o motor a trabalhar e pará-lo, porque foi dos primeiros barcos em Portimão a ter o sistema em que as manobras eram feitas na ponte. Andei lá vários anos”, declara.

À pesca em Marrocos
No início da década de 70 do século passado, os industriais de conservas de Portimão alugaram um navio francês, o ‘Donibane’, para pescar sardinha em Marrocos, devido à escassez das capturas pelas traineiras, na nossa costa.

“Era um navio em ferro, com comandante e imediato, e pescava pelo método de cerco, alava rede pela popa bastante alta e era despejado com ‘xalavares’ para umas cubas com salmoura, a 21 graus centígrados. As sardinhas caíam ali e ficavam tesas, morriam logo, sem perder as escamas. Depois de uma hora, seguiam num tapete rolante, eram metidas em caixas de papelão e armazenadas no porão frigorífico”, segundo o nosso entrevistado, que embarcou, durante mais de dois anos, como um dos seis motoristas, “necessários, porque o barco trabalhava 24 horas por dia”. Em dezembro de 1972, cortou um dedo e o comandante não o deixou embarcar, porque não havia enfermeiro a bordo.

Do mar ao comércio
António Romão, de baixa, foi a Portimão e encontrou o Isidoro, que tinha comprado a mercearia e taberna ao Alberto Grosso, que se mudara para a Mexilhoeira, mas que a queria vender, porque a mulher se tinha matado lá. Fizeram negócio por 15 contos, incluindo prateleiras, balança e máquina de medir o petróleo.

“A 8 de janeiro abri a porta e, quando o navio chegou, despedi-me. Fui à Abastecedora, na Rua do Comércio, e gastei seis contos e quinhentos em mercadorias. Tinha uma bicicleta a motor e não tinha carta de automóvel. Disse à mulher para ir tirar a carta, porque tinha mais tempo do que eu. Comprámos um Volkswagen daqueles compridos e baixei os bancos para transportar as coisas. Mas o início ainda foi ir às compras com a motorizada. Mais tarde, comecei a conduzir o carro e, logo a seguir, veio o 25 de Abril”, recorda.

Uma altura em que a vida no salva-vidas era um descanso
Em 1975, foi para o salva-vidas de Ferragudo, como motorista, tendo o António ‘dos Cações’ como patrão (reformou-se com quase 90 anos) e o Zé Casimiro como sota-patrão.

“Éramos só os três e eu mantinha o meu negócio, sendo chamado, se houvesse necessidade de sair, o que era raro. Não fiz nenhum salvamento, nos anos em que lá estive. Uma vez por mês, fazíamos umas manobras fora da barra, para treinar. Saímos algumas noites, com mar alterado, como meio de prevenção, mas não houve nada de maior. Só uma noite tivemos uma chamada para salvar um indivíduo que estava numa rocha, na zona do Miradouro dos Três Castelos. Mas, quando lá chegámos, já os bombeiros o tinham retirado, por terra, com cordas”, assevera.

Mas, para manter essa regalia de gerir o seu comércio nas horas de serviço, levava diariamente géneros para cozinhar o almoço, e vinho, e almoçavam na estação.

“Quando o António ‘dos Cações’ se reformou e o Zé Casimiro foi promovido, mudou completamente. Começou a exigir a minha presença na estação, embora eu continuasse a levar os géneros para o almoço. Isso começou a afetar o negócio, a haver faltas no ‘stock’, porque não tinha tempo para reabastecer. Despedi-me, ao fim de cinco anos de serviço, e dediquei-me à mercearia”, conclui.

A Pedra do Valado

A Pedra do Valado e a proteção ambiental de que tanto se fala agora é alvo de uma opinião muito própria de António Romão. “Andei tantos anos ao mar e nunca ouvi falar na Pedra do Valado. Ouvi, sim, foi na ‘covada da serra’ com a torre de Vale da Lapa. X braças tinha pedra, Y braças também tinha pedras, era o que se ouvia falar. O que eu acho da Pedra do Valado é que é para tapar os olhos ao povo. O Governo não tem coragem para fazer um defeso a sério, ou mandar os arrastos mais para fora, das seis para as doze milhas, porque são os arrastos que destroem o fundo, todos os dias. Têm o nome com eles. Se tivessem coragem para o fazer, não dava mais de cinco ou seis anos para termos peixe com fartura na rocha”, garante, prosseguindo: “Fixe-se nesta que lhe vou dizer: a Pedra do Valado vai ser para os oportunistas que, às tantas da noite, vão e largam lá e, no outro dia, apresentam-se na lota com peixe de qualidade. Porque há sempre espertos. Não vai resolver o problema da falta de pescado”, finaliza.

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