OPINIÃO: Professor Evangelista
José Marreiros Nunes | Filho do professor Evangelista
O texto que escrevo surge na sequência do artigo de João Reis dedicado ao ‘Nosso Querido Amigo’ e insigne ‘Colega Evangelista’, publicado no Portimão Jornal, em novembro de 2023. Um sentimento indizível ao ler o seu testemunho sincero e vivido no início dos anos 1960 da vida do meu pai, que de forma emocionada agradeço.
A sua vida que não foi longa, 50 anos de 1912 a 62, pautou-se pelo inconformismo com as inequidades sociais e políticas e a rigidez institucional, inerentes a um regime ditatorial de partido único, e disso é exemplo o que tão bem nos conta o Colega João Reis. Mas não só no plano educativo assim foi. No plano político militou tanto no Movimento de Unidade Democrática – MUD como na campanha do General Humberto Delgado às presidenciais de 1958, movimentos de amplitude nacional correndo os riscos óbvios para um funcionário público do Ministério da Educação.
Da campanha de 1958, com os meus oito anos, perdura a curiosidade de ver as reuniões em nossa casa preparando os maços de votos sobre a secretária, cada voto com a fotografia do General fardado a rigor. Para serem distribuídos, ainda que sem o poder das artimanhas do regime que muito “justa e imparcialmente” usava a máquina de Estado e os carteiros a seu belo prazer.
Homem da cidade, Portimão e da aldeia Mexilhoeira Grande, em data que não sei precisar, o meu pai aceitou o convite para ser a autoridade local da Mexilhoeira Grande, regedor ao que suponho. Ser professor já era posição social de relevo.
A assistência aos cuidados de saúde era inexistente para quem não pudesse pagar a vinda de um médico à aldeia. O novel regedor, que tinha granjeado inúmeras amizades e contactos no Liceu de Faro, onde fez o secundário antes do Magistério Primário em Lisboa, e querendo que fossem prestados cuidados de saúde às pessoas da freguesia, reuniu-se com o Governador Civil, a quem pediu uma solução. O Governador sentenciou – para isso era preciso fazer uma manifestação! A resposta não tardou – à frente, no meio ou atrás eu vou, desde que vamos todos!
Certo é que, depois disso, conforme contemporâneos me disseram, o professor e regedor encheu uma camioneta com as pessoas a necessitar de consulta e levou-as ao hospital de Portimão. Não seria pela falta de transporte a falta de tratamentos (o diálogo com o G. Civil foi-me contado pelo prezado João Reis). Lá na terra vivia um Sr. o Álvaro barbeiro que adoeceu. A tuberculose não era rara nos anos 1950. Várias vezes lá fui bater à porta a entregar um envelope à senhora que o agradecia. Sem mais.
O Clube Instrução e Recreio da Mexilhoeira Grande – CIRM foi fundado em janeiro de 1950. Antes disso realizavam-se peças de teatro na antiga adega do meu avô ao lado da habitação, em que, segundo me contam, se destacavam os dotes teatrais do Sr. Cristino Nunes à data oficial de sapateiro, que mais tarde foi proprietário de uma sapataria em Portimão. O meu pai foi sócio fundador n.º 2 do CIRM e, poucos anos mais tarde, presidente da Direção. Também em 1950 foi fundador do Grupo Dramático Mexilhoeirense com mais uma dezena de conterrâneos.
No CIRM, bailes, televisão, que foi uma novidade em 1958, e festas várias, cimentavam o espírito de comunidade local. No período de presidência, levou à cena numa récita a peça de teatro ‘Sol na Floresta’ de Romeu Correia.
O meu pai encenou e do elenco faziam parte a minha mãe Maria José e tantos outros, infelizmente já não entre nós, o Sr. Marcelino Gorgulho e os mais jovens José Calado Moreira que também pintou os cenários, Edite Sousa, Hermano Silva, Batista Grade. Os trabalhosos ensaios eram na nossa casa, perto do CIRM.
Na parte de variedades o espetáculo incluiu fados. Recordo-me da participação do Alex a cantar o ‘Sempre que a tristeza me invade canto o Fado’ e o ‘Fado do Cavador’ em que simulava a faina campestre segurando uma enxada claramente só para compor imagem. O espetáculo foi um sucesso, com casa cheia por várias noites.
A par do ensino, além da música canto coral escolar, da atividade política e associativa, do teatro, da fotografia, as apetências culturais da época convergiam para o cinema. Foi um dos subscritores do documento fundador do Cine-Clube de Portimão, em 6 de abril de 1959, a par de ilustres portimonenses e não só, como Dr. Fernandes Lopes Júnior, Julião Serrano, Júlio Bernardo, João Cantinho de Andrade, Milton de Brito, Luís Bordas Marimon e muitos mais.
Amor por livros sem limites. Desde o ‘Bichos Bichinhos e Bicharocos’ para crianças, de Sidónio Muralha, até ao ‘Guerra e Paz’, de Tolstoi, passando pela coleção ‘Cosmos’ completa, revista ‘Vértice’, teatro de Gil Vicente, Ibsen, Becket, Llorca ou Ionescu, edições de bolso ou em fascículos para encadernar são centenas. Um amigo poeta disse-me surpreendido depois de percorrer os títulos nas estantes e ler uma boa parte deles – Está aqui o neorrealismo todo!
O filho mais velho pô-lo em 1957 a estudar no Colégio Moderno, Lisboa, que como diz o prospeto, não é um colégio barato – é um colégio sério nos seus processos de trabalho. Fotografias são uma centena com colegas, alunos, amigos com a mesma força de viver e algum destemor como a alusiva ao batismo de voo sobrevoando o Tejo e arredores de Lisboa num aeroplano monomotor em 1935.
O gosto pela criatividade artística levava-o a encontrar talento e vocações que os próprios não se davam conta. Mas lá estava o incentivo, continuem, exercitem a criatividade, tal como se estimula a aprendizagem da geografia e história fazendo um mapa do país no recreio da Escola.
Recordo o David Lopes, que morava ao lado do então Liceu de Portimão, que veio a ser professor e crítico de cinema em Lisboa, uma enorme habilidade para desenhos e pinturas que me deslumbravam ali ao alcance da mão no cavalete. Ou o José Calado Moreira, uma habilidade extraordinária para as artes plásticas, que projetou belos edifícios sem curso de arquitetura feito. Daí a me incentivarem a participar no ‘Construções na Areia’, patrocinado pelo Diário de Notícias e organizado pelo ator Eurico Braga foi um passo.
Sem pretensões de maior lá me esforcei em treinos na praia aos 6 anos. E não é que no dia da prova saí do casino da Praia da Rocha montado numa bicicleta Java azul! Felizmente que concorri no campeonato dos mais novos, porque nas categorias seguintes dos irmãos Sérgio e Manuela Bernardo, com as suas magníficas esculturas em areia, não teria qualquer hipótese, eles que me perdoem esta amistosa referência.
Amigos sem fim compareceram na despedida do Professor Evangelista, em outubro de 1962. Que foi também um ato de significado político pela liberdade e vida, avessas a uma ditadura em queda que sucumbiria dez anos depois.
Logo após o 25 de Abril de 74, um objetivo de vida que não pôde festejar, os mexilhoeirenses atribuíram a uma rua central da hoje vila o nome Professor Evangelista Rosado Nunes. Homenagem que a família não esquece sobretudo pela genuína gratidão que a motivou. Muito mais se poderia dizer. Quando vem a assunto, todo o amigo tem sempre uma estória para contar.
Coisas simples da vida, partidas, alegres momentos de boa convivência. Outras mais dolorosas como a eminência de prisão por delito de opinião, que a situação vigente era implacável para quem ousasse levantar dois dedos quanto mais a cabeça, essas afortunadamente não tiveram consequência, estão enterradas nos arquivos da história vai fazer 50 anos.
Uma herança, como uma árvore que cobre de sombra tutelar e conforto os que se lhe seguem? Creio antes que os ventos e passarinhos se encarregam de espalhar as sementes de que nascem outras árvores plenas de nova vida e autonomia. Muitas. Era assim que ele desejaria.