A rota do peixe desde o mar até ao prato

Texto: Jorge Eusébio


É durante a noite que se desenvolve o ‘dia’ de trabalho de Armando Francisco, no seu ‘escritório’, um pequeno barco de 9 metros, que divide com dois outros colegas de profissão.

Ao cruzar a porta de casa para ir à pesca de polvo procura, de imediato, com ansiedade, confirmar se o vento, que “é o maior inimigo dos pescadores,” não se faz sentir com grande intensidade. É que, quando ele sopra com força, a ondulação do mar é maior, o que aumenta o risco de quem anda naquele duro trabalho.

Um dos maiores sustos da longa vida que já leva a tentar enganar as ondas para trazer o sustento para terra deu-se exatamente numa altura em que se “levantou uma forte ventania e um mar de sudoeste que, às tantas, nos fez pensar que o barco não chegava a terra”. Se isso acontecesse, graceja, “a gente vinha a nado”.

A embarcação em que trabalha carrega mais de mil cofres, antigamente ‘artilhados’ com isco de caranguejo, o que, entretanto, foi proibido. Agora, ele e os seus colegas têm de usar pedaços de cavala ou sardinha, petiscos aparentemente menos do agrado dos polvos, lamenta.
Isso faz com que o barco tenha passado a vir mais leve da faina, o que tem consequências na remuneração mensal dos pescadores, pois “não temos salário fixo, recebemos em função do que pescamos”. No último mês, garante, “ganhei à volta de 800 euros” e desabafa que “por esse valor, mais vale ir trabalhar num supermercado, a repor produtos nas prateleiras”. É por essas e outras que já começa a pensar na reforma, depois de mais de 30 anos como pescador.

Uma ‘brincadeira’ que se tornou modo de vida
Começou a ir ao mar “por brincadeira e para ganhar mais uns cobres”. Na altura era nadador- salvador no Verão e resolveu ir para a pesca durante os outros meses, embora numa perspetiva de curto prazo, até arranjar outro emprego.

Foi ficando, mas mostra-se algo cansado, sobretudo porque “não dão valor ao trabalho dos pescadores”. Da sua parte tem feito o que é possível para ajudar a melhorar as condições de trabalho da classe, enquanto presidente da Associação de Pescadores de Alvor. Existente há cerca de década e meia, aquela entidade disponibiliza aos sócios, a troco do pagamento de alguns euros por mês, gelo, câmara frigorífica e uma carrinha que leva o peixe à Docapesca de Portimão.

Manter a atividade não é fácil, pois os custos são elevados. Todos os meses há que pagar aos dois funcionários, bem como “a renda das instalações que temos e a eletricidade, que nos custam os olhos da cara”. O que ajuda a compor o orçamento são os serviços que a associação presta a não-pescadores, em especial, o aluguer de espaço para deixarem os barcos na pequena doca existente na zona e a utilização de uma grua para quando é necessário fazer a manutenção das embarcações.

Armando Francisco começou a ir ao mar “por brincadeira
e para ganhar mais uns cobres”. Na altura era nadador-salvador
no Verão e foi para a pesca durante uns tempos. Entretanto
já se passaram 30 anos.

Outro dos problemas de que se queixa é a burocracia. De vez em quando “aparecem os governantes a falar em apoios, mas depois para os pescadores se candidatarem a qualquer centavo é preciso preencher tanta papelada que, normalmente, acabam por desistir”.

Armando Francisco mostra-se, igualmente, revoltado com as obras de desassoreamento que foram recentemente realizadas na ria de Alvor, pois “fizeram as dragagens onde não era preciso e não tiraram areia de onde era necessário”. Isso faz com que continue a haver zonas em que “ao mínimo descuido, os barcos ficam encalhados”, o que prejudica uma comunidade piscatória que, pelas suas contas, ainda deve envolver perto de uma centena de pessoas.


Sardinha vale 70% do volume de negócio
Uma vez arrancado o peixe ao mar e colocado no leilão diário, os pescadores saem de cena e entram em campo comerciantes como Henrique Luz, que funcionam como intermediários entre o homem do mar e o consumidor.

A sua empresa conta atualmente com 35 trabalhadores e seis pontos de venda nos concelhos de Lagoa e Portimão. O estabelecimento que esteve na origem de tudo situa-se na rua Infante D. Henrique, em Portimão, e existe desde 1976. Conta que “era da minha mãe e, em 1993, quando tinha 18 anos de idade, resolvi envolver-me no negócio e modernizei-o”.

Mas não é através da venda direta ao público que a Peixarias Luz mais fatura, pois “o grosso do nosso volume de negócios resulta da vertente grossista, uma vez que fornecemos duas cadeias de grande distribuição”.

Nesta altura, como seria de esperar, o peixe que mais vende é a sardinha, que apesar dos defesos de que tem sido alvo, “no volume global de negócios da empresa significa cerca de 70% da faturação”. A cavala também tem vindo a ganhar apreciadores e quota de mercado, nos últimos anos, depois de, durante muito tempo, ter sido considerada comida de pobre.

Para conseguir manter toda esta engrenagem em funcionamento, sobretudo no Verão, está em permanente movimento entre as lojas e os armazéns que tem não só no Algarve, mas também em Sines, os quais servem sobretudo para ‘alimentar’ a vertente grossista.

E como é humanamente impossível estar em todo o lado ao mesmo tempo, dá graças a quem inventou o telemóvel que “praticamente só não toca entre as 2 a as 5 horas da manhã” e que acaba por revelar-se uma ferramenta de gestão absolutamente indispensável.

Todo este stress não lhe tira a ambição de ir mais além e de avançar com outros projetos, tendo muitas vezes de “ser a minha mulher a pôr-me um travão”. Outra razão que o leva a não tentar mais rapidamente colocar em prática novas ideias é a dificuldade em encontrar bons reforços para a sua equipa.

Garante que os trabalhadores da sua empresa “são excelentes, tenho muita sorte em tê-los connosco, muitos deles há bastante tempo”. Contudo, acrescenta “o problema é que esta é uma atividade com características muito específicas e não é fácil encontrar outras pessoas que nos deem as mesmas garantias”.

A arte de bem assar sardinhas
Para quem não tem grandes dotes culinários ou tempo para ficar enfiado na cozinha, a alternativa que resta para comer um peixinho bem confecionado é ir a um restaurante. E, no que toca à sardinha assada, muito consumida nesta altura do ano, uma das opções que se coloca são os estabelecimentos situados na zona entre pontes de Portimão, com larga experiência e fama na matéria.

E, entre eles, pelo menos em termos de longevidade, destaca-se a Casa Bica. Abriu do outro lado da ponte ‘velha’, no longínquo ano de 1946, mas, “inicialmente, funcionava como tasca” contam dois dos atuais proprietários, João Agrela e Carlos Vicente – o outro sócio é José Barreira.

Começou a ser um local muito frequentado pelos pescadores que vinham da faina. O fundador do estabelecimento, António Bica, alugava-lhes o fogareiro para assarem o peixe que traziam e vendia-lhes pão e vinho.

Com a chegada do boom do turismo, aquela zona passou a ser a mais concorrida e fotografada de Portimão, para isso muito contribuindo o facto de ficar em frente ao local onde os homens do mar descarregavam, à mão, as canastras de peixe. A sardinha assada tornou-se a imagem de marca da cidade, pode mesmo dizer-se que se transformou na “rainha de Portimão”, título que nunca mais perdeu.

João Agrela recorda com alguma nostalgia “aquele cenário pitoresco e muito característico”, que se perdeu quando a descarga do pescado passou a ser feita na nova Docapesca, situada no Parchal. Entretanto, os restaurantes foram transferidos para a zona entre pontes, para edifícios construídos de raiz e que dão outro tipo de condições a quem ali se desloca.

Uma longa jornada de trabalho
Ele e os seus sócios agarraram no negócio em 1980 e têm continuado a honrar a tradição da boa sardinha na brasa, que é muito procurada por gente de todas as nacionalidades, línguas e sotaques.

Assar sardinhas à algarvia parece fácil, mas tem muito que se lhe diga. Este empresário explica que “há que fazer uma boa moura, depois preparar a brasa e sobre a grelha colocar as sardinhas no momento certo”. Um restaurante deste género vive muito de “quem está no fogareiro e neste como noutros aspetos, a nossa casa tem funcionado como uma escola, ao longo destes anos”.

Atualmente, diz Carlos Vicente, devido ao período atípico que vivemos, “estamos a funcionar apenas a cerca de 50% do que era hábito no mês de agosto”, o que faz com que o número de funcionários seja de 15, menos do que num ano normal.

Pelas contas destes empresários, quem ali se desloca faz uma refeição por um valor médio de “17 a 20 euros”, dependendo, obviamente do que escolher. Sendo a sardinha assada o grande cartão de visita do restaurante, é esse o prato mais apreciado e pedido pelos clientes. Mas há muitas outras opções, como robalo, dourada, choco ou polvo à lagareiro.

O peixe, acabado de pescar, é entregue a partir das 7 horas da manhã por uma empresa externa que foi comprá-lo à lota. A partir de cerca das 10 horas, os funcionários começam a azáfama diária de compor os cerca de 200 lugares existentes, colocar o peixe na vitrina e a preparar mil e um pequenos pormenores, de forma a que tudo esteja perfeito para receber os clientes, que começam a chegar por volta do meio-dia.

Os almoços não têm hora certa para acabar, dependendo da afluência que, em cada dia, o restaurante registe. Uma vez servido o último cliente, há umas horas para descomprimir e depois é preciso recomeçar a labuta e preparar tudo outra vez, agora para receber quem aparecer para jantar.

A jornada de trabalho é longa, não sendo raro os sócios saírem dali por volta da uma hora da madrugada, já depois de terem começado a planear o dia seguinte.

Tal como a generalidade dos negócios no Algarve que dependem do turismo, também este sofre os efeitos da sazonalidade. Apesar de manter as suas portas abertas ao longo de cerca de metade do ano, basicamente “vivemos do lucro dos três meses do Verão”, dizem os empresários.

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