Amilcar Fonseca: “O futebol deu-me duas coisas sem preço: a família e os amigos”

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Kátia viola


Grande parte da vida de Amílcar Fonseca está umbilicalmente ligada a Portimão. Chegou para jogar futebol, construiu família, depois foi treinador e por cá ficou. Tem 66 anos, adora viver na cidade e encontrou no golfe mais motivos para se considerar uma pessoa feliz. À conversa com o nosso jornal, conta histórias e revela sentimentos.

Conte lá como começou esta sua ligação a Portimão. Chegou em 1981, mas não ficou logo por cá… 
Fiz duas épocas como jogador e fiquei quase, porque já namorava a minha mulher. Mas não fiquei logo definitivamente. Ainda fui jogar no Estoril, no Estrela da Amadora e depois é que vim para Portimão. Pensava que ia acabar no Estrela, mas o Bernardino Pedroto, que começou a carreira de treinador no Silves, convenceu-me a jogar mais um tempo. Estava na praia, já com uns quilos a mais, e lá tive de comer uns iogurtes. Acabei por ir ajudá-lo. Subimos de divisão, foi bom para ele e para a cidade.

Acabou até por ser treinador do Silves? 
Orientei a equipa do Silves, depois, nos últimos cinco jogos da outra época. Como treinador, ganhei em Olhão, na Cova da Piedade e ao Lusitânia dos Açores. Não pensei ser treinador, não estava nas minhas previsões, até porque às vezes sou radical: acaba e acaba mesmo, para mim acabou, cheguei mesmo a dizer à minha mulher, mas os jogadores do Silves pediram-me e acabei por ficar. Fui tirar o curso e a seguir estive no Quarteirense, o que me deu enorme prazer. É uma terra que ficou no meu coração e onde o trabalho foi excelente, com uma subida de divisão. E posso afirmar que só não subi à I Divisão porque não me deixaram. Foi na altura em que o presidente Manuel João me ‘engatou’ e vim treinar o Portimonense.

Começou então a treinar o Portimonense em 1991.
Sim, mas fiquei nove anos, embora de modo intercalado. Subimos duas vezes à Honra. Lembro-me que vim trabalhar com um argentino (Pablo Centrone), que passado pouco tempo se foi embora e prossegui eu. Felizmente, correu tudo bem. Foi gratificante ser treinador do Portimonense e tive a felicidade de trabalhar com uma pessoa que, tenho de o dizer, devia ser mais reconhecida. O trabalho do engenheiro Estevão, presidente de então, revelou-se fantástico. Confesso que não vejo muitas pessoas reconhecerem o seu mérito e darem valor ao que ele fez pelo clube, no período em que o nosso amigo Walter Gomes era vice-presidente.

Esteve quase a subir à I Divisão.
Esse é um facto que ficou na cabeça de todos. Aliás, abandonei a carreira também por causa dessa mágoa de não subir. Dizia em minha casa que se subisse à I Divisão nunca mais treinava, porque devemos ficar com o melhor e não com o pior. Fiquei imensamente aborrecido. Éramos a melhor equipa da Honra, e, por razões que não quero agora comentar, aconteceu. Lutávamos com Alverca, Rio Ave, Ovarense e Naval, também candidatos, mas, para mim, o Portimonense era a melhor equipa. Tenho dificuldade em aceitar algumas coisas, embora reconheça que também houve culpa própria. A mágoa, essa, ficou. Fiquei mais chateado do que todo o mundo. Era o mais chateado em Portimão.

Nessa altura já era um lisboeta radicado? 
Já, é verdade. Tive a felicidade de vir para cá numa época espetacular. Enquanto jogador, no plantel, tínhamos aí uns sete internacionais. Até me lembro de ir à Alemanha e havia quatro jogadores do Portimonense nessa seleção B. O grupo era muito forte e respeitado. O treinador era o Artur Jorge, que sucedeu ao Manuel Oliveira, e ele assumiu que íamos jogar para os primeiros lugares. Não saiu assim tão bem, creio que terminámos no sexto lugar, mas formávamos uma equipa grande, enorme mesmo. O clube, hoje, também está bem, mas nessa altura a equipa era fortíssima. Nesse período, aliás, o Portimonense não tinha de se preocupar em procurar jogadores…eram os jogadores que se ofereciam! As condições eram excelentes, tal como o valor da equipa.

Socialmente, como eram esses tempos? 
Em termos sociais, Portimão está agora muito diferente. Nesse tempo todos podíamos deixar o carro aberto, embora o Marinho do Vau, uma figura que me adorava, ficasse sempre ao pé do meu carro… Não era preciso perguntar se eras de Portimão, porque todos se conheciam. A Casa Inglesa e o Paquito, na Praia da Rocha, eram os locais mais emblemáticos e mais procurados pelas pessoas para conviver. As pessoas eram boas. Hoje também são, mas somos muitos…

E esse ambiente transmitia-se aos jogadores? 
Creio que os jogadores do meu tempo ainda hoje são acarinhados. Ao invés, acho que os que jogaram cá na época passada e se foram embora já ninguém se lembra deles. O peso social é agora bastante diferente. Em várias conversas com amigos sempre disse que os jogadores deviam ter também um compromisso social e não só desportivo. A afluência aos estádios, por exemplo, tem a ver com relações de aproximação dos atletas com os sócios e adeptos. Isto é muito, muito importante, mesmo que nem todos o vejam assim. Conhecer e identificar é primordial e é através destes pormenores que se constroem famílias, no caso desportivas. O calor de um jogo pode ser o reflexo desse ambiente. Toda a gente nos conhecia e falávamos com todos. Vou mesmo ao ponto de dizer que não havia ninguém na cidade que não conhecesse os jogadores do Portimonense.

É por tudo isto que é uma pessoa muito respeitada na cidade? 
Dizem que sou respeitado, mas eu acho que não faço mais do que a minha obrigação. Sempre fui bem recebido e bem tratado, por isso é minha obrigação proceder da mesma maneira. Hoje é tudo diferente, como já disse, mas é uma pena. O futebol ganhava mais com o carinho de quem vivia o clube a toda a hora. Lembro-me de ouvir dizer ‘estive com este jogador, falei com aquele outro esta tarde’, enfim, tudo isto trazia o tal calor e falava-se muito mais do Portimonense. E iam sempre à bola. Por isso é que eu digo que vim para a cidade numa altura muito boa e é igualmente por isso que me considero feliz.

Depois do Portimonense ainda treinou outros clubes? 
É verdade. Treinei o Louletano, o Imortal e fiz dez jogos no Lagoa. O Zé Teodósio pediu-me. Ganhámos nove e depois ele disse-me para não ganhar o último jogo porque não tinha mais dinheiro para pagar prémios de vitórias.

Veio então o adeus. Porquê? 
Toda a gente me faz essa pergunta, inclusive os meus amigos. Sou uma pessoa romântica e frontal, só faço as coisas por amor e carinho. E em tudo. Quando me empenho, seja até em algum trabalho em casa, tem de ser feito com carinho, senão, não faço. Confesso que perdi um bocado esse espírito dos relvados, e, então, resolvi não treinar mais. Não foi fácil, mas a minha imagem era boa e vou ficar com ela. Ponderei a decisão, falei com a minha mulher, podia até treinar fora de Portimão, mas tinha a vida familiar estável e ponto final. Continuo adepto do futebol e associado do Portimonense, isso sim.

A carreira como jogador teve muitos pontos altos… 
Sim, no Belenenses e no Estoril, antes de chegar a Portimão. Um dado engraçado, o Facebook tem-me dado coisas extraordinárias. Não tinha a noção do valor que me davam. Hoje, vejo pessoas a escrever sobre mim, que não conheço, mas que acompanharam a minha carreira e deixam elogios, de tal modo que já me convenci que fui um bom jogador. Essas pessoas não me conhecem pessoalmente, mas acho que não é por favor que o dizem. Aliás, tenho amizades espalhadas em todos os pontos do país. O futebol deu-me duas coisas sem preço: a família e os amigos.

“Os jogadores deviam ter
também um compromisso
social e não só desportivo”

Esteve quase a jogar no Sporting? 
Não fui jogador do Sporting porque escolhi o Portimonense. No tempo do João Rocha cheguei a assinar, mas o Manuel João e mais quatro dirigentes foram a Lisboa para falar comigo. O Delgado, que tinha sido meu colega no Belenenses, pediu-me por tudo para ir jantar com eles. Tinha já o compromisso com o Sporting, mas lá fui. Jantámos no Califa e o Manuel João sempre a insistir, ‘faça lá uma proposta, faça’, e eu acabei por fazer. E ele aceitou! Telefonei para os responsáveis do Sporting e consegui que me libertassem. Foi assim que cheguei a Portimão.

E jogar na seleção, que sensações? 
Fiz aí uns doze jogos, entre seleção B, esperanças e principal. Nesta, Portugal venceu 2-0 a Espanha, com golos do Nené e do Nogueira. Mas se perguntam qual o momento mais importante…foi outro. O que mais prazer me deu foi quando fui internacional B, num jogo em Faro, com a Checoslováquia. O guarda-redes era o Bento e ganhámos 2-0. Sabia que se fosse internacional nesse jogo era o primeiro – e único – jogador do Oriental a ter tal estatuto. O Oriental era o meu clube, do bairro onde nasci. Foi algo incrível! Considero o momento mais alto da minha carreira.

Por sinal, uma carreira bem bonita… 
Fui sempre titular em todos os clubes e convocado para as seleções. Sim, acho que como jogador tive um percurso bonito, independentemente de dar muita pancada. Se dava? Dava, porque tecnicamente não era assim tão bom e tinha de fazer alguma coisa para jogar…

E tem saudades desses tempos, do futebol em geral?  
Tenho, mas vejo futebol quase todos os dias e compensa. Fico desiludido com algumas coisas, mas o futebol vai fazer sempre parte da minha vida.

Como é que surge o golfe, agora o seu desporto predileto? 
Foi uma maneira de esquecer, de continuar a ter atividade física. O meu amigo José Manuel Trindade, que explorava a concessão e o bar da Marina, todos os dias me desafiava. Nunca tinha jogado e até mudava de canal na televisão quando dava golfe. Fui um dia treinar, tomei-lhe o gosto, vi que tinha algum jeito e nunca mais parei. Sou feliz também devido ao golfe. Considero-me um bom amador, já fui handicap 3 e continuo a praticar. Praticamente todos os dias vou ao campo de golfe, aqui em Portimão, o Alto Golf. Muita gente não sabe que a cidade é das únicas do país que tem um campo de golfe praticamente no seu interior.

E farta-se de ganhar… 
Tenho troféus em número superior aos do futebol. Já ganhei muita coisa e fiz quatro ‘hole in one’ (jogada em que o golfista coloca a bola no buraco com apenas uma pancada). É preciso um pouco de sorte, mas consegui quatro, e, como tem direito a diploma, ninguém pode negar. Tenho pena que a federação de golfe – embora faça, porventura, o que pode – não apoie mais a iniciação, mesmo nas escolas. Com campos municipais, o golfe desenvolvia-se imenso em Portugal. Se é um desporto caro? Não é assim tão caro, mas é dispendioso. Mas o golfe é viciante. Não há nenhuma modalidade que seja mais viciante. Bates uma bolas e queres bater mais dez, cem ou duzentas. Somos o país com o melhor golfe do mundo, em termos de condições, e, com os tais campos municipais, acredito que as pessoas podiam ser mais felizes e mais saudáveis.

“Nunca tinha jogado e até mudava de canal na televisão quando
dava golfe. Fui um dia treinar, tomei-lhe o gosto, vi que tinha
algum jeito e nunca mais parei”

Gosta de viver em Portimão?  
Adoro viver em Portimão! Nós (dirigindo-se ao jornalista) encontramo-nos muitas vezes nas caminhadas, o espaço de que dispomos é aliciante e isso é extremamente saudável. É uma cidade onde até podes jogar golfe e fazer todo o tipo de desporto. Portimão reúne uma oferta grande e tem tudo para que uma pessoa cá viva e se sinta bem.

“Quem investe no clube tem de ser ajudado” 

“Hoje em dia, a realidade do futebol é diferente. Se calhar, as pessoas ainda não se adaptaram totalmente e até existe alguma descrença ou mesmo separação que não tem razão de ser. Parece que há algum medo por ser uma SAD a gerir o futebol, mas continua a ser o Portimonense e as pessoas responsáveis tudo fazem para melhorar as condições de trabalho e formar boas equipas”, argumenta Amílcar, quando confrontado com o momento atual do conjunto alvinegro. “O ano passado não correu bem, mas estou convencido que tem tudo para recuperar a estabilidade. Não sei se vou exagerar, até porque não sei o que se passa na cabeça das pessoas da SAD, mas acho que, a médio prazo, o Portimonense pode vir a ser um Braga. No entanto, quem está à frente do clube e quem investe tem de ser ajudado, porque um investidor necessita de ter resultados e tudo isto custa muito dinheiro”.

“Vou chorar sempre pelo Vítor Oliveira”  

O tema faz vir as lágrimas aos olhos, mas Amílcar enche o peito e não se furta ao comentário. “O Vítor? Sou uma pessoa sentimental e choro com facilidade, por isso não foi surpresa desatar a chorar quando soube da triste notícia. Comovo-me com facilidade, repito. Mas vou chorar sempre, porque o Vítor foi das melhores pessoas que conheci na minha vida”, sublinha, a propósito do falecimento de Vítor Oliveira, uma figura incontornável do mundo do futebol e com estreita ligação a Portimão e ao Portimonense. “Nunca jogámos na mesma equipa, mas defrontámo-nos várias vezes. O que convivemos, essencialmente aqui, é o suficiente para dizer que me vou encontrar com ele de certeza absoluta. Está eternamente na minha memória. Era uma pessoa espetacular, com caráter e frontalidade. Um ser humano que vou admirar sempre. Fiz o programa do Bar da Sport TV com ele e, segundo a própria produção, foi dos que deu mais gozo, foi dos melhores”, adianta Amílcar, com a voz embargada. “Não sei, porém, se quero voltar a ver esse programa. É um peso enorme! Ia começar a treinar golfe com o Vítor, era uma promessa que ele tinha feito. Acredito que ainda vou jogar com ele…”.

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