As bolinhas da Camila e do Sérgio

São, porventura, o casal mais conhecido no extenso areal da Praia da Rocha nos meses de Verão. Fiéis ao ‘equipamento’ amarelo, palmilham quilómetros atrás de quilómetros, indiferentes à canícula e ao piso tantas vezes traiçoeiro da areia mole. São a Camila e o Sérgio, figuras incontornáveis de alguns episódios marcantes do período estival, sobretudo para os visitantes, que esperam, muitas vezes pacientemente, pelas bolinhas de Berlim que a Tia Camila e o Tio Sérgio Fernandes – tal e qual como está escrito nas t-shirts que envergam – vendem à desfilada.

A Camila, em especial, é uma personagem marcante, tanto pelo seu jeito desembaraçado e lesto como ocorre aos pedidos como, também, pela simpatia que irradia. “Olha o meu vizinho! Oh, minha querida, tudo bem?!” são alguns dos acenos tradicionais da vendedora, que, diga-se em abono da verdade, é deficiente auditiva.

Porém, ultrapassa o problema com a mestria da simplicidade, cativante e genuína, caraterísticas devidamente ‘adoçadas’ com um constante sorriso nos lábios. Sérgio Fernandes tem 52 anos e é natural de Marmelete. Já Camila, de 47, nasceu em Lamego, mas mudou-se muito nova para o Algarve. “Fui emigrante em França, onde aprendi a arte da pastelaria”, narra o marido, que, desde 1982, trabalhou sempre nesta área.

“Em determinada altura, estava a minha mulher desempregada, resolvemos montar o nosso negócio. Havia também uma certa crise no setor das pastelarias, e, sendo a Camila deficiente auditiva, ainda mais complicado se tornava arranjar trabalho”.

O casal deitou então mãos à obra. “Juntei o meu saber com a força de vontade dela”, explica Sérgio, dando conta da aposta no fabrico das bolas de Berlim. “Começámos com uma pequena fábrica, onde produzíamos e vendíamos. Depois, há uns nove anos, resolvemos vender na Praia da Rocha. É muito trabalhoso e cansativo, mas adaptámo-nos com relativa facilidade e tudo se tornou mais fácil”.

Camila, na circunstância, nem precisa de encetar grandes diálogos. Toda a gente sabe que ela, além das bolinhas que tem na geleira, transporta simpatia e graciosidade.

Um contrarrelógio diário

O dia a dia de Sérgio e Camila é digno de ser contado. E desengane-se quem pensa que ‘isto’ é só meter os bolos na caixa e desatar a apregoar e vender. “Levantamo-nos aí por volta das seis da manhã, mas o trabalho começa na véspera, ao fim da tarde, quando fabricamos as massas, que ficam nos frios, a levedar, até ao dia seguinte”.

Depois do despertar, as bolinhas começam a ser fritas, uma operação que demora, sensivelmente, umas três horas. A partir das nove da manhã inicia-se a curta viagem até ao areal da Rocha, ao mesmo tempo que fica outra boa quantidade de massa a levedar. “Paramos à hora do almoço e vamos então buscar mais bolinhas. Muitas das vezes, vende-se mais no período da tarde”, reconhece Camila.

A etapa da tarde prolonga-se até às 19 horas. São dez horas a percorrer quilómetros atrás de quilómetros, com a tal pausa para almoço, aproveitada, de resto, para reabastecer as geleiras, com as inevitáveis bolinhas fofas e frescas. “Andamos muito, é verdade. Em julho e agosto, curiosamente, talvez um pouco menos, porque as pessoas fazem filas na praia para serem atendidas e nós não necessitamos de sair do mesmo sítio”.

O sucesso da procura, garante Sérgio, “é a qualidade do nosso produto”. O mestre pasteleiro fala então do cuidado inerente ao fabrico, nomeadamente nas frituras e no óleo. “Não podemos baixar a qualidade, inclusive porque os nossos clientes são, na sua maioria, amigos de longa data. Têm muita confiança nas nossas bolinhas e dizem mesmo que o sabor é único”. Quando chegam à Praia da Rocha, logo pela manhã, vindos da fábrica, Sérgio e Camila dispõem de um espaço onde guardam o veículo.

“As bolas de Berlim passam então para as geleiras – cada uma leva cerca de 22 – e ficam bem condicionadas. Não convém andar com muitas ao sol e ao calor. Assim, em quantidades equilibradas, conservam a fofura, o creme não fica deteriorado e permanecem sem gordura”, elucida Sérgio. Para aumentar o vaivém diário, cada vez que as geleiras ficam vazias lá vai o casal, escada acima, buscar mais material ao armazém, onde estacionam o carro, na Av. Tomás Cabreira.

Clássica e com creme

“A Camila tem uma força de vontade enorme e faz amizades com facilidade. As pessoas gostam muito dela”, elogia o marido, conhecedor das virtudes da mulher. Na ocasião, é vê-la abrir a geleira e servir três clientes que, deitados ao sol, reclamam pela “bolinha da ordem”.

Com creme, sem creme, de alfarroba ou com recheio de maçã, manga, frutos silvestres, limão e nutela, tudo está à disposição dos apaixonados por esta iguaria, hoje e sempre a preferida dos veraneantes. “Os pedidos são diversificados, mas a que sai mais ainda é, de longe, a bolinha clássica. De preferência, com creme. Sim, a bola com creme é a que tem mais procura e aquela que, por tabela, mais vendemos”, confirma Sérgio, adiantando que é tudo feito “à base de produtos naturais e sem incluir demasiado doce”.

A bola de Berlim custa 1,50 euros, um aumento de 30 cêntimos em relação ao preço que era praticado o ano passado na Praia da Rocha. “Em outras zonas e praias já era este o preço praticado. Houve um aumento, é verdade, mas não ouvimos reclamações, talvez por as pessoas saberem que o custo está adequado. Não acham caro nem parecem sentir a diferença. E se a qualidade for boa, como é o caso das nossas bolinhas, não há mesmo nada a dizer”, atira Sérgio, gracejando com o jornalista.

Voltando a Camila, algumas pessoas que a conhecem e que se cruzaram com a nossa reportagem, fizeram questão de elogiar a vendedora, vincando “a maneira simples e afável como conquista as pessoas”. “Ela tem muita graça e uma boa memória, é raro esquecer-se de uma cara, mesmo que passem vários meses sem nos vermos”, palavras estas que, de resto, merecem a concordância do marido.Este ano, a época balnear sofreu alguns percalços, devido à pandemia, e as licenças de venda na praia chegaram mesmo a ser canceladas, mas, com o anunciar da abertura, chegou a luz verde. “Houve algumas dificuldades, como sabemos, mas depois tudo ficou resolvido e a Câmara emitiu as nossas licenças”, sustenta Sérgio.

Castanhas no Inverno

O casal de vendedores passa todo o período de Verão na Praia da Rocha, o único local, aliás, onde sempre exerceram a atividade. Depois, nos restantes meses do ano, dedica-se à venda da castanha. A Camila muda então o pregão, para “quentes e boas”, mas a simpatia e o trato permanecem inalteráveis, qual imagem de marca desta verdadeira mulher de armas.

“Ela podia acomodar-se a qualquer tipo de rendimento social, devido à deficiência, mas não, nem quer ouvir falar disso. Prefere trabalhar, andar aqui o dia todo comigo, e, como se pode ver, é fundamental. Ajuda imenso no negócio”. Voltando às castanhas, o local de venda é a zona da Rua do Comércio, em especial junto ao Largo da Mó.

“Não podemos ficar parados. Deixamos as bolas e dedicamo-nos às castanhas”, graceja a Camila. Devidamente apetrechado com o tradicional carrinho das castanhas, o casal continua a trabalhar nos meses mais frios, suportando alguns dias mais aborrecidos, mas até participa em eventos. “Às vezes somos convidados para fornecer casas e ir a festas nas escolas sobretudo por altura do São Martinho”, conclui Sérgio Fernandes.

Texto: Hélio Nascimento

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