Chefe Cercas é um dos elementos com mais anos de escutismo no Algarve
É um importante elemento do movimento, tendo já ocupado diversas funções. Entre 2010 e 2019 foi chefe da Junta Regional, mas o seu percurso começou em 1962, quando foi investido como lobito. Natural de Portimão, foi no agrupamento daquela cidade que esteve mais de 40 anos. Passou por Lagos, fundou o Agrupamento do Parchal, além de outros na região. Hoje, o crescimento do movimento deixa-o satisfeito.
Qual foi a importância do escutismo para se tornar o homem que é hoje?
O escutismo foi a minha escola. Foi aí que aprendi a viver e que aprendi os valores. Depois, aquilo que os chefes me ensinaram, comecei a transmitir aos outros. E é isso que faço. Não consigo passar por este ou aquele agrupamento, sem ‘deixar’ nada, seja ensinar canções, nós, situações práticas, coisas da vida, mostrar o que é a realidade local. Ou seja, fazer com que eles sejam mais homens ou mulheres do que são, incutindo -lhes valores.
Fala-se muito da perda de valores hoje. Acha que tem a ver com o quê?
Nota-se muito. Tem a ver com os pais estarem menos tempo com os filhos. Vão levá-los à creche, vão buscá-los, põem-nos a dormir, no dia seguinte levantam-se e repete-se tudo. Ao sábado e domingo trabalham. Antes, não. Tinham o fim de semana para estar com a família. Depois deixaram de ter o sábado de manhã, mais tarde o sábado à tarde e, por fim, o domingo. Hoje têm folgas rotativas e não têm esse tempo para estar em família. Quando estão de folga durante a semana, os filhos estão na escola.
Mas há pais que se esforçam?
Sim, não são todos assim. No entanto, perdem-se valores e é por isso que nós estamos cá. Aqueles que continuam connosco, ainda vão tendo a sua formação. Aqui, nota-se uma grande diferença entre os pais que foram escuteiros e os que não foram. E, em Portimão, no Agrupamento 159 acontece muito isso, porque a geração dos elementos que lá está é, na maioria, filho de escuteiros. É engraçado.
Passa de pais para filhos?
Passa. Na minha família, por exemplo, estava eu e os meus dois filhos. O mais velho foi dirigente do Corpo Nacional de Escutas (CNE), mas depois abrimos a ‘Festa Fantástica’ e ele foi obrigado a deixar o movimento, porque tem muitas festas de aniversário para animar, sobretudo, ao fim de semana.
Então como descobriu o escutismo?
Tinha nove anos. Devia estar na terceira classe, em Portimão, porque lembro-me que foi o professor João Andrade a ir buscar-me para entrar nos escuteiros. Ele foi o fundador do agrupamento, com o professor João Reis. Fomos muitas crianças, mas eu fui uma das que ficou até hoje. Fiz a minha promessa de dirigente com outros dois colegas que continuaram comigo até aos 17 anos, mas que, mais tarde, saíram por motivos pessoais e profissionais.
Não esteve só em Portimão?
Estive no Agrupamento de Portimão cerca de 40 anos, até 2002. Nesse ano saí, por motivos particulares, mas seis meses depois foram buscar-me para Lagos, onde estive oito meses. Entretanto, o Padre Domingos Fernandes, do Parchal, e o chefe regional na altura, o chefe Silvério, falaram sobre eu fundar o Agrupamento do Parchal. Um sábado à tarde, estava em Lagos, recebo uma chamada do Padre Domingos a pedir-me para passar na sua casa, porque queria falar comigo. Já tinha um jantar preparado, com o chefe regional e mais duas ou três pessoas, para me desafiarem. Em 2003, começámos a preparação. A Estação de CP tinha um terreno descampado e cedeu-nos uma parcela gratuitamente para construir a sede. Foram quase dois anos, até que ficasse preparada. Em 2005, inaugurámos o Agrupamento, que ainda hoje existe.
“O escutismo foi a minha escola. Foi aí que aprendi a viver e que aprendi os valores. Depois, aquilo que os chefes me ensinaram, comecei a transmitir aos outros. E é isso que faço. Não consigo passar por este ou aquele agrupamento, sem ‘deixar’ nada.”
E daí foi para a Junta Regional?
Não. Fui chefe do Agrupamento do Parchal durante cinco anos até 2010, altura em que a Junta Regional, liderada pelo chefe Edgar, se demitiu de novo, o Padre Domingos desafiou-me para me candidatar. Nunca tinha pensado nisso, mas ele disse que não havia mais ninguém. Concorri e estive três mandatos, num total de nove anos. No entanto, antes de eu tomar posse, o chefe Edgar fechou o Agrupamento de Lagoa, na minha opinião, mal. Deveria ter suspenso para não perder a sede. Ao fechar, o Miguel Boto, que tinha sido chefe regional, de quem fui secretário da terceira secção, deixou o CNE e foi para a Associação de Escotismo de Portugal (AEP). Apoderou-se da sede para a AEP, a bem.
Passados tantos anos como vê o movimento hoje? Quais são as diferenças?
Há tantas… Os jovens hoje são muito diferentes de há uns anos. Antes, os pais deixavam os miúdos saírem sem problemas. Lembro-me de fazer jogos noturnos e atividades na rua, que começavam às 00h00 e acabavam às 2h00. Hoje é uma complicação. A maioria dos pais tem medo que haja algum problema. Por outro lado, as crianças e jovens hoje estão muito ligados ao telemóvel, aos computadores e não têm criatividade. Querem alguma coisa vão ao computador.
Não conseguem pensar pela cabeça deles?
É isso! Nota-se nas atividades escutistas. Se não tiverem um telemóvel para procurar as coordenadas, não sabem tirar os azimutes, nem orientar-se. E a culpa também é dos pais, porque deixam os miúdos andar com os telemóveis a toda a hora. Acho isso mal! E quando vamos para as atividades no campo, na natureza, veem-se situações que eu não via antigamente. Não se sabem desenrascar, não sabem porque se faz buracos no chão, ficam a olhar para as árvores… Por exemplo, de noite é costume ir ver as constelações. Hoje, olham para o céu e, para eles, são estrelas em todo o lado e não as sabem distinguir.
Mas continua a haver interesse no escutismo?
Não há falta de jovens! Eu fundei vários agrupamentos. Como chefe regional foram pelo menos cinco ou seis. O último foi na Quinta do Amparo, em Portimão. E saí da Junta Regional para ingressar noutro agrupamento. No 159 estive 40 anos. Quando mudei, foi porque a minha neta foi para o da Quinta do Amparo. Esse abriu com 90 miúdos e agora, com dois anos de existência, já são quase 140, com cerca de 20 à espera para entrar. E, em Portimão, no 159 também estão 20 ou 30 para entrar.
Quais são os desafios para quem gere os agrupamentos ou a Junta Regional?
Nós sobrevivemos com uma quota anual feita pelos pais, por aqueles que podem pagar. Isto porque, os que não têm hipótese de pagar também podem ir para o escutismo. A associação cobre essas despesas. Não vamos impedir ninguém de estar no movimento. Uns pagam 25 euros por ano, outros 30 ou 50, conforme a disponibilidade e cada agrupamento. Há alguns que não cobram nada. É mais difícil de sobreviver, mas lá se ‘desenrascam’. Com rifas ou atividades para angariar fundos. A nível nacional, tanto o CNE, como cada agrupamento, pode fazer oito angariações, conforme estipula a Autoridade Tributária. São mais de mil agrupamentos no país. Vivemos à base disso e de sócios honorários que queiram dar algum contributo. Muitas vezes, somos nós, dirigentes, que dispomos do nosso dinheiro para ir para aqui ou acolá.
Há muitos elementos como o chefe Cercas?
Neste momento, existem três dirigentes como eu. Comecei como lobito, enquanto os outros dois iniciaram-se mais tarde, como pioneiros e exploradores. É o fundador do Agrupamento de Lagos, o chefe António Santana, que ainda lá está, mas como dirigente honorário. Há ainda o chefe Carrilho que saiu no final de 2019 por motivos de idade e saúde. Sou o mais velho, não em idade, mas em escutismo. Há muitos dirigentes que continuam desde que começaram, mas têm 38, 39 e 40 anos. São esses, aliás, que estão a aguentar o movimento no Algarve. Na região há quase 2400 elementos, distribuídos por 34 agrupamentos, de Vila Real de Santo António a Aljezur.
Já ocupou diversos cargos. Qual é o balanço que faz?
Nestes últimos nove anos como chefe regional, peguei numa região, que estava muito atrapalhada e desorganizada, com falta de união e com cada agrupamento a trabalhar por si e consegui uni-los. Nota-se isso. Antes, um Conselho Regional durava quase dois dias. Cada um discutia para seu lado e levantavam problemas com tudo. Quando tomei posse, os Conselhos Regionais passaram a três horas e resolviam-se os problemas. Deixou de haver discussões. Hoje, a região está unida e saí contente com isso.
Quais são os locais mais fortes a nível de escutismo?
O Agrupamento mais forte na região do Algarve é o 98, de Faro, de São Pedro, com 160 jovens. E tem uma sede pequena. Depois há Portimão, Albufeira, o marítimo de Ferragudo, no concelho de Lagoa, com mais de 100 elementos. Aliás, Lagoa tem dois dos únicos escuteiros marítimos no Algarve, o de Ferragudo e o de Carvoeiro. Em breve, também é possível que o de Alvor deixe de ser terrestre para passar a marítimo. Segue-se o da Quinta do Amparo, em Portimão, com mais de 100 elementos também, e os outros variam entre os 90 e os 30. O do Parchal tem 22 e o da Mexilhoeira da Carregação foi suspenso por falta de elementos. Fiquei bastante contente com o de Alcoutim, porque começou a crescer. Fizeram pressão para que o fechasse porque só tinham quatro elementos e dois dirigentes, mas a partir de 2017 começou a ter mais elementos. São fases, são vitórias. Fico contente com as condecorações, mas isto tem outro sabor.