‘Dom Cristina’: a homenagem dos netos ao grande empreendedor

Texto e fotos: José Garrancho


Oliveiros Cristina escolheu Portimão para viver e foi no concelho que desenvolveu a sua atividade. Foi um grande empreendedor, em vários campos. Criou e geriu fábricas de torrefação de café, produção de chá, rebuçados, refrigerantes e pastelaria. Em representação do sogro, José Pedro Azevedo, dirigiu os destinos da ‘Mexilhão’, fábrica de conservas de peixe, na Mexilhoeira da Carregação. Mais tarde, criou e geriu uma fábrica de salga de peixe.

Também produzia e engarrafava aguardentes e vários licores, desde o de anis, poejo, laranja, limão, café, amêndoa. Mas houve um especial, de mel, que viria a tornar-se famoso e a figurar entre os três mais vendidos em Portugal, durante as primeiras cinco décadas de existência da marca, registada em 1952.

Com os anos, o número de consumidores cresceu e o potencial do produto tornou-se inegável. Entretanto, o filho, David Cristina, formou-se em engenharia química e foi trabalhar com o pai. Após visitar a Escócia e ver whiskies envelhecerem em madeiras especiais, convenceu o pai a experimentar o envelhecimento do licor em cascos usados de vinho do Porto, numa decisão que foi um sucesso.

Aos poucos, começaram a adquirir cascos de 400 a 600 litros, até chegarem a mais de 180 unidades. O impacto na qualidade, no sabor e no processo de decantação foi enorme, aumentando ainda mais a notoriedade do produto na já fiel base de consumidores.

Com o sucesso, o licor passou a ser exportado para vários países da Europa, Austrália e Estados Unidos. O trabalho com associações de barmen espalhou-se da Madeira e Açores ao Continente, patrocinando a participação de profissionais em campeonatos mundiais de cocktails, onde o licor brilhou.

Em entrevista ao Portimão Jornal, Rodrigo Cristina um dos netos de Oliveiros Cristina explica a história deste famoso licor.

Por que razão perderam o alvará da marca, com quase 50 anos de existência?
O meu avô mudou de residência, pouco antes de morrer. O aviso para a renovação do alvará foi enviado para a antiga morada e nunca foi recebido, ficando a marca num limbo. Entretanto, desconhecendo a situação, continuámos a fabricar e a comercializar, durante quase uma década, até que alguém se apercebeu da situação e fez o registo em seu nome, com toda a legalidade. Houve um processo judicial, durante vários anos, mas perdemos.

E a empresa também desapareceu, não foi?
Além de termos perdido o alvará do ‘Brandymel’, a empresa veio a cessar a sua atividade, como consequência de pressão fiscal. Ficámos com demasiados empregados para o nível de atividade e faturação que conseguíamos gerar. O meu pai, empresário à moda antiga, procurou cumprir os salários das pessoas até ao último dia. Fez o que, hoje, a maioria dos empresários não faria.

Diz-se que perderam, até, o edifício onde estava a fábrica?
Em cidades pequenas, os boatos circulam como se fossem verdades e as pessoas acreditam. Mas eu gosto de transparência, verdade e honestidade. O edifício é nosso e livre de penhoras, porque nunca pertenceu à sociedade. Pertencia à minha avó, que nos deixava laborar lá.

Então, porque fabricam o novo produto, o ‘Dom Cristina’, em Castelo Branco? E o que é, na verdade, esta nova marca?
Apesar de termos perdido o alvará da marca, o produto não perdeu as suas características, nem o método de fabrico único. Usamos mel puro e o ‘Dom Cristina’ é armazenado em cascos de carvalho usados anteriormente para o vinho do Porto. Contudo, lançar uma marca nova num mercado saturado não é fácil. Assim, a marca está sediada numa empresa chamada ‘Gurus dos Licores’, numa parceria com um nosso distribuidor de há muitos anos. Mas nada mudou, realmente, porque continuamos a ter uma estrutura familiar. Desejamos ligar novamente o produto a Portimão, mas pretendemos solidificar a marca no mercado, antes dessa mudança. Estamos a criar uma janela de mercado para um produto intemporal.

E já começaram a aparecer os frutos dessa iniciativa?
No ano do Centenário da Elevação de Portimão a Cidade, criámos uma edição especial, com 5000 garrafas numeradas, rótulo e mel especiais, e envelhecimento superior a dois anos, quando o normal são 9 a 12 meses. A partir daí, mantivemos a relação com a autarquia e com os eventos locais.

Está satisfeito com os resultados, até ao momento?
Foi excelente voltar à fala com pessoas que não via, há 34 anos, e também com as forças vivas da cidade. Acima de tudo, foi importante explicarmos a história toda, como foi a nossa viagem e como deixámos de ser ‘Brandymel’ para passarmos a ser ‘Dom Cristina’.

E como está o mercado a aceitar o ‘novo produto’?
Em termos de marca, sabemos que já não somos o que fomos e não temos o volume de vendas que tínhamos. Assumimos que somos uma marca local, embora tenhamos presença a nível nacional. Ambicionamos vir a ser número um no mercado local e no Algarve, onde queremos dizer, daqui a um ou dois anos: ‘Aqui, mandamos nós’. Esse é o objetivo principal, embora o mercado de licores tenha mudado muito, ao longo de três décadas.

Que mudanças aconteceram?
O lugar que ocupávamos foi preenchido, quer por outras marcas de licores, quer por outras bebidas espirituosas que foram entrando no mercado, graças às mudanças nos hábitos de consumo. O mercado está diferente, tem segmentos de mercado que não existiam no passado, e estamos a explorá-los.

Por exemplo?
Os cocktails são um subproduto da marca. E já está pensada a criação de uma linha de bombons recheados com o licor ‘Dom Cristina’. Será outra maneira de nos posicionarmos no mercado. Estamos também a estudar uma nova embalagem, uma decisão de fundo estratégica, porque as pessoas estão habituadas a uma determinada forma de garrafa e temos de seguir a evolução do mercado.

Já disse que gostava de trazer algo importante para o Algarve, dentro da sua área de atividade. Pode dar-nos mais pormenores?
Há um evento anual intitulado ‘LocWorld – O Mundo da Tradução’ que se realiza numa grande cidade europeia, reunindo cerca de 600 participantes. Tenho em mente trazê-lo para o Algarve, de preferência para Portimão. O Arena comportaria o evento, sem problemas. Tenho estado a tentar vender à organização que a melhor experiência é o Algarve, pelo clima, quantidade e qualidade de experiências ao ar livre, gastronomia e tudo o mais. Neste momento, estou numa fase interessante da carreira, faço muitas palestras e seminários, sou orador em vários encontros da indústria. Estou na fase de retribuir um pouco do que esta indústria me deu e de dar algo à minha cidade natal, Portimão.

Quem é Rodrigo Cristina?

Um dos netos de Oliveiros Cristina, embora vivendo há muitos anos na Grã-Bretanha, mantém-se ligado aos negócios da família e, há dois anos, começou a desenhar o modo de ancorar o produto e a marca em Portimão. Decidiu associar-se às várias iniciativas que acontecem na cidade, no sentido de divulgar o licor. Experiência e conhecimentos não lhe faltam.

Da tradução ao licor

Com uma licenciatura em gestão de empresas e finanças, Rodrigo Cristina aterrou “por acaso numa empresa de tradução” e foi ficando, porque é uma indústria muito diversificada e inclusiva. Todos os setores “necessitam de traduções em várias línguas: elementos técnicos, promoções, contratos, formação interna para os empregados, feitos na sede, em inglês, e depois traduzidos para os mais diversos países”, descreve. Está, há 20 anos, numa das maiores empresas de tradução a nível mundial. “Temos como clientes, entre outros, Microsoft, Google e Mercedes, além das grandes farmacêuticas. As pessoas, às vezes, não têm noção de como o processo se desenvolve e os valores envolvidos”, garante. E engana-se quem julga que a Inteligência Artificial veio substituir tudo, porque, no final, continuam a ter uma pessoa a fazer a revisão do que foi produzido pela IA. “Estamos a falar, por vezes, de centenas de milhões de palavras que se traduzem para um sem número de idiomas. Chegamos a ter 150 milhões de palavras traduzidas para 50 ou 60 idiomas. Façam as contas!”, conclui.

David Cristina diz que o pai tinha um “paladar muito apurado”

“Tenho muito orgulho em todo este processo de crescimento do produto e da marca. Tentei levar o licor além-fronteiras, promovendo-o também na minha terra, Portimão, e na minha região, o Algarve. Considero-o como um filho, que guardo no coração e levarei no caixão. É com emoção que relembro a história e o crescimento deste meu ‘filho’, sempre recordando e enaltecendo o meu pai. Por detrás de um licor excecional, existem muitas histórias, pessoas e momentos”, afirma David Cristina, filho de Oliveiros Cristina. Acerca do seu progenitor, refere que ele tinha “uma enorme vantagem” sobre si: “o paladar muito apurado”. “A composição da bebida, à base de mel e aguardente, é aromatizada com plantas silvestres que lhe dão o ‘toque’ que faz a diferença. É na introdução das ervas que pode residir o que vulgarmente se designa por segredo. Na verdade, não existem segredos; com uma análise química completa, descobre-se tudo, nesta como noutras bebidas”, destaca. Desta forma, o industrial derruba alguns dos mitos que foram sendo criados pela força do marketing. No entanto, não deixa de sublinhar que há conhecimentos familiares que vão passando de geração em geração e, no seu caso, o saber foi transferido para os filhos.

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