Inês Barracha é a criadora de uma [CAL-DAY-RAH-DAH] diferente

Texto e foto: José Garrancho
“Os meus pais estão ligados às artes e ao design, a minha avó materna era professora de lavores e o meu avô paterno era GNR, mas um grande artista, muito criativo, que tocava vários instrumentos, de ouvido; a minha irmã também está na área das artes. Isto veio-me no sangue e não consegui evitar”, apresentou-se Inês Barracha ao Portimão Jornal, falando com o corpo todo, numa sinfonia de gestos.
Como foi a experiência na Faculdade de Belas Artes?
Acabei por ficar em pintura. Gostava de ter estudado algo mais abrangente, artes plásticas, porque me sinto uma criativa multidisciplinar, mas só havia no Porto e eu tinha família em Lisboa. Fiz a licenciatura, que durava, então, cinco anos. No final, já sentia que estava ‘a encher chouriços’, porque alguns professores eram mais velhos e conservadores e tornava-se difícil experimentar novas técnicas. No último ano, abracei um Erasmus de três meses em Inglaterra, para ver o que se passava por lá. Gostei do que encontrei, muito diferente daqui.
Foi por isso que regressou ao Reino Unido?
Fiz o Erasmus em 2004/2005, descobri o 3D e achei que era uma ferramenta interessante e que fazia a ligação entre a parte visual – desenhos animados, anúncios – e a parte digital, uma técnica que valia a pena experimentar. E como já tinha a experiência que me fora passada pelos meus pais, a parte mais técnica do design, achei que poderia ter ali um meio termo que valia a pena explorar. E acabei por ir fazer o mestrado em Bournemouth. De seguida, fui trabalhar para Londres, em cinema e publicidade. Andavam, então, a fazer coisas para os telemóveis, que eram muito pequenos. E eu não conseguia entender qual o interesse daquilo, até aparecerem os smartphones com as aplicações. Mas não estava para aí virada.
Esteve lá alguns anos?
Três anos, no total. Acabei por trabalhar numa empresa que fazia pós-produção para filmes, televisão e anúncios publicitários. Aquilo é muito organizadinho, mas as saudades da nossa terra, do nosso clima e do nosso modo de vida foram muito fortes e regressei. E também porque queria experimentar a maternidade e nada como o nosso país.
Regressa e cria a Associação MODO, uma associação neo rural. Diga lá aos leitores em que consiste?
Quando regressámos, eu e o meu Manel fomos viver para uma casa em Alvor. Mas, depois, começámos a olhar para um terreno que era do meu sogro, ali na zona dos Palheiros, onde havia umas ruínas de uma casinha de campo que adorámos e decidimos restaurar. A ideia era ir para lá fazer patuscadas com os amigos. Mas, para mim, aquilo estava subaproveitado. E, como vinha cheia de ideias, comecei a fazer lá workshops. As pessoas nem sabiam bem o conceito, pensavam que não era necessário pagar, que era só entretenha.
Ideias novas, trazidas da Inglaterra?
É verdade. Eu costumo associar com o irmos à Feira da Ladra com os sacos. Fica tudo ali à volta, a ver o que sai de lá. Depois, montamos as coisas e vão todos embora. Só estão interessados em ver o que vem ali de novo. E eu senti-me assim, quando regressei. Depois, há a ligação com o ensino e com o trazer 3D na bagagem. Comecei na ETIC, em Portimão. Depois, fui convidada pela Universidade do Algarve. Adoro ensinar, algo que trago dos meus pais, continuo a fazê-lo, mas a experiência da UALG não foi muito satisfatória.
Porquê?
Cheguei de Inglaterra com sentimentos a favor da partilha livre do conhecimento, de criar uma plataforma de partilha, fornecendo a informação aos alunos, sem que eles perdessem a concentração nas aulas, ao tirar notas. Conclusão: viram que estava a mexer na estrutura da instituição e dispensaram-me, no fim do ano letivo. Foi então que decidi criar a Associação MODO, em 2012, pela necessidade de ter algo para partilhar conhecimento e experiências. Não só dar formação, mas criar projetos com pessoas. Neste momento, é urbana, pois está localizada na zona antiga da cidade.
Mas as vossas experiências são muito variadas, abrangem diversos campos, não é?
Desde miúda que adoro fazer coisas e tenho grande dificuldade em me focar num único campo ou num único material. Adoro pintar, reciclar materiais, manipular tudo ao meu redor. A vida é variada, tem imensos ângulos, e eu sou vida. Apenas me preocupo com um objetivo: manter a associação com autonomia financeira, para ser uma voz apartidária e independente.
Em que consiste o projeto [CAL-DAY-RAH-DAH]?
A minha intenção sempre foi fazer o cruzamento com outros projetos. E agora, finalmente, consegui essa parceria. Mas sem abdicar dos meus valores e das minhas ideias, em termos artísticos, o que gostava de fazer e de comunicar. Concentrei todos na caldeirada, o meu projeto autoral dentro da Associação MODO, que já tem ligações com outras entidades. A [CAL-DAY-RAH-DAH] tem a ver também com essa minha viagem para fora e o meu regresso. Comecei a olhar ao redor e a pensar “isto é espetacular!”, quando toda a gente me dizia que estávamos no fim do mundo. Para já, sempre fui muito atenta e sensível a tudo e a todos e o que acho mais interessante é esta mixórdia, em termos plásticos e conceptuais. Acho interessante olharmos para este Algarve que temos hoje e perceber que isto é uma grande mixórdia de culturas. Usando a metáfora, uma vez que a caldeirada é um prato feito pelos pescadores com uma mistura de peixes, alguns até desprezados e que não conseguiam vender, mas que sobressaem ao misturar-se com outros, também quero olhar para o Algarve dos ‘peixes desprezados’: os imigrantes, os velhotes, os não sei quê… essas pessoas que são quem, de alguma forma, dá corpo a esse prato que é o Algarve. Tentar olhar para todos, porque o Algarve é essa mistura e o seu sabor vem desse conteúdo.
A [CAL-DAY-RAH-DAH] é, então, essa tentativa de fusão de culturas?
Acontece dentro da Associação, mas cruza-se com outras dimensões. É o conceito de olhar para a multiplicidade de todas as pessoas que passaram por cá e que influenciaram o nosso modo de vida. E até tem uma vertente ligada à comida, porque encontrei nela uma linguagem universal, pois de comida toda a gente sabe falar. O que me interessa é conhecer essas comunidades, africana, indiana, paquistanesa, portugueses migrantes que cá vieram parar. Saber como se relacionam com o Algarve. O que cozinham? Que influências têm da nossa cozinha? Por exemplo, fui agora a Marrocos e encontrei imensas ligações. A laranja algarvia é originária da China. A açorda, possivelmente, tem influências árabes.
Qual o objetivo real?
Pretendo reter esses conhecimentos e inspirar as outras pessoas. Se forem criativos, quero inspirá-los a criar coisas. Também quero inspirar-me através disso e criar as minhas ilustrações, as minhas performances. Mas desejo usar esse canal como inspiração para os outros. Quero que as pessoas olhem para isto como uma bola. Uns tiveram a sorte de nascer aqui e outros o azar de nascer lá. Temos de tentar entender isto de forma mais justa e que o que as pessoas sentem como ‘o nosso Algarve’ seja visto como uma mistura e que todos possamos ganhar, ao aprender uns com os outros.
Como se manifesta, na prática?
Tem uma parte chamada ‘supper clubs’, que são almoços ou jantares que acontecem com a frequência das estações. Investigo e reúno uma série de conceitos que se interliguem com aquela estação, sejam eles antropológicos, biológicos, artísticos, históricos, porque também pretendo que as pessoas se reconectem mais com os ciclos da natureza, sem fundamentalismos, nem ambientalismos extremos. Nessas refeições, tenho trabalhado com o chef Michelin João Oliveira, do restaurante Vista, que abraçou o projeto desde o início. Na próxima edição, que será no dia 1 de novembro, contarei também com a colaboração do chef João Marreiros, do restaurante Loki. Eu faço a parte do conteúdo artístico e eles a da comida e apresentaremos um jantar que conta histórias sobre o passado, o presente e tenta deixar histórias por contar, para o futuro, para que as pessoas reflitam. Futuramente, pretendo organizar almoços ou jantares com as comunidades estrangeiras, criar relações; eu cozinho para eles e eles para nós. Eventualmente, as pessoas podem inscrever-se nessas refeições, para um melhor conhecimento mútuo e a desmistificação dos preconceitos instalados, contrariando a desfragmentação da comunidade.

Mas não termina aí?
A [CAL-DAY-RAH-DAH] também tem uma vertente editorial. Criei uma revista a que chamámos ‘ZINE’, abreviatura de ‘FANZINE’, que eram umas revistas feitas pelos fãs, por exemplo, de uma banda. Consiste, basicamente, numa caldeirada de ideias. A revista pretende, não somente publicar entrevistas das pessoas dessas comunidades estrangeiras, mas também receitas tradicionais, uma vez mais divididas por estações. A revista tem saída prevista a cada estação. E quero dar visibilidade, principalmente, aos artistas locais, porque, como artista, sinto que não há um reconhecimento daqueles que são mais relevantes no contexto. Eu não gosto de aparecer muito, gosto é de fazer coisas, e por isso não tenho projeção. Mas gostava de ajudar a projetar talentos que, como eu, talvez não queiram andar por aí a fazer uma grande comunicação. Desejo dar espaço na revista a pintores, escritores, fotógrafos, qualquer tipo que caiba naquele registo. Também damos a conhecer espaços que são importantes e com muita história. Há que preservar aquilo que reconheço como valioso, embora, por vezes, sejam sítios ou pessoas mais pobres e mais humildes. Mas que têm grande valor emocional, porque nós vivemos todos misturados e, na verdade, estamos todos ligados, embora isso não seja valorizado.
E como pensa levar a cabo essa fusão?
Há uma terceira parte, que são as minhas performances. A base é uma mesa e um tacho que tenho levado a mais sítios é um showcooking. Ensino a fazer uma caldeirada algarvia, que, na verdade, é metafórica, porque não uso comida. Meto areia, plásticos, rede, peças arqueológicas, souvenirs do Algarve, tudo sobre o que me interessa falar. E, enquanto vou adicionando esses objetos, vou contando histórias sobre sustentabilidade, património, descaracterização do território, etc. Já fui a vários locais e, recentemente levei-a a Matosinhos, ao Festival Out of the Blue. Acaba por ser um formato interessante, quase uma palestra cómica e sarcástica, em que são passados conteúdos importantes, mas de uma forma mais leve e divertida. O humor, a felicidade e a boa disposição são indispensáveis para podermos ir levando isto para a frente, mesmo que estejamos a falar de coisas sérias.
Resumindo, para terminarmos?
Tem estas dimensões: uma, é ir em missão e passar o meu manifesto, dizendo que devemos ser todos amigos, temos de aprender uns com os outros, sugerir que reparem se a maré está cheia ou vazia, se está lua cheia ou o sol está quente, tentar que se liguem com o sítio onde moram. Isso é o manifesto que vou pregando por aí, inventando maneiras para o fazer. Depois, vou servindo uns almoços e uns jantares, a vertente da gastronomia, que acho gira. E há o formato da revista, um objeto que as pessoas podem levar e ler com mais atenção. E ainda tenho ligação com os jovens e as crianças, a quem passo estes conteúdos de forma lúdica. Com os jovens, tento fazê-los perceber que, nesta coisa das marcas, na moda, há muito de capitalismo e de consumo exagerado, que o importante é darem valor a determinadas peças que são importantes para eles de forma simbólica. Podem construir a sua própria roupa, tendo em conta que, se a tornarem sua, é mais importante do que estarem sempre a comprar e a acumular. Acabo por fazer uma ligação histórica com os povos, como é que se vestiam, o que representavam na roupa, símbolos de liberdade ou de proteção. E eles acabam por passar essas metáforas para a sua roupa. Enfim, é uma tentativa de passar uma mensagem que acredito ser importante para a sociedade, com vários formatos artísticos. E a [CAL-DAY-RAH-DAH] é isto.






