José Filipe foi árbitro uma vez e apaixonou-se para toda a vida
Texto: Hélio Nascimento | Foto: Portimão Jornal
Árbitro uma vez, árbitro toda a vida, repete José Filipe ao Portimão Jornal, após largos minutos de uma conversa deliciosa, qual retrato de uma carreira de 22 anos dentro das quatro linhas e de muitos mais anos ligados à causa que abraçou e que, como confessa, não trocava por nada deste mundo. José Vitorino do Carmo Filipe, portimonense de alma e coração, apitou em todos os escalões e foi árbitro assistente, do Distrital à I Divisão, desde 1972, tendo-se retirado na época de 1993/94, quando atingiu o limite de idade.
“Deixei os campos, mas não a arbitragem. Primeiro fui observador de árbitros da Federação Portuguesa de Futebol, em 1995 assumi a presidência do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol do Algarve (até 2005) e depois fundei o Núcleo de Árbitros do Barlavento”, enumera, acrescentando a esta lista uma longa série de cargos, como monitor, instrutor, membro de comissões de apoio técnico e delegado distrital e nacional, sempre ligado à arbitragem algarvia.
O núcleo que fundou, com sede em Portimão, chama-se agora Núcleo de Árbitros José Filipe. “Fui apanhado de surpresa, há cerca de três anos, quando um grupo de juízes, com o conhecimento da minha mulher, alterou o nome. Disse-lhes que não vou morrer cedo, pois tenho um certificado de garantia até aos 100 anos”, graceja.
Hoje, integra a Comissão de Apoio aos Árbitros do Algarve, com maior incidência nos do Barlavento. “Vou ao Centro de Treinos, essencialmente para meter os pinos”, prossegue, com nova dose de humor. Participa também nas aulas teóricas e salienta que na região há outros dois núcleos, o do Sotavento, sediado em Vila Real de Santo António, e o do Centro, também denominado António Matos, em Faro. Todos trabalham em conjunto com a associação.
Incentivar os jovens a prosseguir
José Filipe nasceu a 22 de novembro de 1947 e tem 76 anos. O número 22, aliás, “é o preferido para jogar no Euromilhões”. Foram 22 anos de arbitragem ininterruptos desde que iniciou o trajeto, a festa de homenagem realizou-se num 22 de abril, tirou o curso em 22 junho e a carta de condução em 22 de dezembro. Uma singular coincidência.
Na sua vida fora do mundo do apito foi empregado de escritório na empresa Júdice Fialho, esteve na Guiné, em tempo de guerra, por altura do serviço militar, e, depois, trabalhou como empregado bancário.
Da arbitragem algarvia fala em cerca de 75/80 juízes em atividade, a maioria “malta jovem”, com idades não superiores a trinta e poucos anos. E, com o foco na sua terra, vinca que “nos anos 80 chegámos a ser a quarta cidade do país, a seguir a Lisboa, Porto e Braga, com mais árbitros, o que era importantíssimo”, revela, adiantando que não vale a pena fazer comparações com os seus tempos.
“As mentalidades são outras. Antes, por exemplo, era exigida a 4ª classe, agora não, é o 12º ano. Isto não significa mais ou menos cultura ou mais ou menos educação em relação aos licenciados, mas o facto é que a realidade é outra”.
No entender de José Filipe o grande problema do setor, mais do que a captação, “é conseguir fazer com que os jovens prossigam a carreira”, algo que vem caraterizando o sul da Europa.
“No meu tempo só se era árbitro aos 21 anos, na maioridade, hoje podem começar com 12, 13 e 14 anos. E temos exemplos destes. Só que depois não há uma estrutura forte a nível nacional que apoie estes primeiros passos, em que os jovens são entregues às feras e vão sozinhos para os campos, com familiares, que às vezes se chateiam. Muitos acabam por abandonar, mas, vá lá, alguns ainda ficam na arbitragem”.
As repetições, as câmaras e o VAR
Dos atuais algarvios em atividade refere o “nome sonante”, de Nuno Almeida, “também uma pessoa extraordinária, que subiu aos quadros nacionais quando eu era presidente do Conselho de Arbitragem”. O certo é que se viu logo que “tinha todas as qualidades e não é internacional porque não quis”.
Uma história engraçada, aqui contada por José Filipe, que dá conta da fobia de Nuno Almeida, que não consegue entrar em aviões. “Nem vai à Madeira ou aos Açores, apanhou um susto e acabou. Na altura de passar a internacional recusou, porque tem fobia de viajar de avião”.
Depois, prossegue, “temos o Marcos Brazão, já com certo nível, tal como Roberto Oliveira, José Salema e o assistente Luís Viegas que subiu recentemente à I Liga”. Sílvia Domingos é o expoente do lado feminino, que “entrou também quando eu era presidente e que pela sua vida profissional rumou a Setúbal, mas é internacional e continua ligada ao Algarve”.
Ainda comentando os tempos presentes, José Filipe afirma que as muitas repetições televisivas “vieram escrutinar as atuações dos juízes”. No seu tempo “não havia jogos na TV, a bem dizer era só o resumo na RTP e pouco mais”.
Nessa altura, existia uma câmara no centro do terreno, agora são 12 ou 14 câmaras que mostram tudo ao pormenor. Das recordações assinala que “a mulher gravava os resumos de dois ou três minutos do meu jogo para eu depois ver, e, mesmo que chegasse às três ou quatro da manhã, era a primeira coisa que fazia”. Às vezes, confessa, descortinava erros que passavam em claro dentro das quatro linhas.
Por falar em erros, o VAR tinha de aparecer em cena. “Os erros nunca vão desaparecer, porque o VAR não é nenhuma máquina e também pode errar, para além de estar algo limitado pelo protocolo, o que se compreende, senão o jogo era constantemente interrompido”.
São os tais lances cinzentos em que prevalece a opinião do árbitro, argumenta o portimonense. “Se formos adeptos do Benfica, do Sporting ou do FC Porto, em especial, achamos que as decisões mais polémicas são sempre contra o nosso clube, mas, repito, os seres humanos podem errar”.
O mau exemplo dos mais velhos
José Filipe garante que teve sempre grande apoio de todas as direções associativas, embora as possibilidades fossem poucas para almejar outros projetos. “O José Guerreiro Cavaco, antigo presidente da AF Algarve, até me dizia que só tinha dinheiro para carapaus e não para linguados. Os problemas do dirigismo associativismo passam por aí. Fiz jogos a nível distrital em que sobravam nove tostões para a equipa de arbitragem. Quando atingi a I Divisão, em 1987, recebíamos quatro contos e 500 por jogo, e, quando saí, eram 45 contos, metade para os assistentes”.
A paixão, porém, permaneceu intacta e ainda hoje continua bem viva no quotidiano. “Todos os fins de semana vejo jogos ao vivo e na televisão. Vejo os de nível distrital, até para conhecer os árbitros, porque uma coisa é conhecê-los nas reuniões e outra é vê-los em ação, verificar se têm ‘tarimba’, conversar e dar algumas dicas. E de forma geral fico satisfeito com o que presencio. Só fico chateado com quem está fora do campo. Nos iniciados e infantis, por exemplo, dá pena ver pais e familiares a insultar árbitros e adversários. A nossa cultura primeiro é clubista e só depois é que é desportiva”, lamenta.
Num último olhar sobre Portimão e a arbitragem, José Filipe não tem dúvidas do “bom caminho” que se vai percorrendo. “Todos os anos temos cursos de árbitros, que duram alguns meses, com provas escritas, físicas e estágio a apitar jogos de benjamins ou fazer de assistentes. Neste último participam 40 candidatos de toda a região, 15 deles aqui do Barlavento. O problema depois é prendê-los. Chegam a fazer quatro e cinco jogos por fim de semana e estudam, sendo preciso uma grande força de vontade, até porque a remuneração é irrisória. Neste momento, dos 80 árbitros em atividade, cerca de 30 são daqui, do nosso núcleo, de Albufeira a Aljezur”, esclarece, sempre solícito a prestar informações.
E se o tempo voltasse atrás? Será que mais de 50 anos depois José Filipe repetia os mesmos passos? “Voltava a ser árbitro, claro. Árbitro uma vez, árbitro toda a vida, com todo o gosto e todo o prazer. Agora colaboro à borla, mas quem corre por gosto não cansa”, frisa.
As ‘saídas à ministro’ e os passeios imperiais
Um árbitro está sempre sujeito a passar por alguns momentos mais conturbados e José Filipe não fugiu à regra, naquilo que apelida de ‘saídas à ministro’, quando, no fim de um jogo, era aconselhável deixar o estádio pela porta do cavalo e sem levantar ondas, para não aumentar a ira dos adeptos em perda. “Tive algumas ‘saídas à ministro’, mas poucas, felizmente, e só a nível distrital. Lembro-me de uma entrevista do Pedro Proença em que ele diz que um árbitro que chega ao fim da carreira e não teve uma ‘saída à ministro’ ou amolgadelas no carro não foi árbitro”, atira, com um piscar de olho. Os momentos grandes são muitos mais. “Gosto imenso de futebol e até fui júnior do Portimonense, embora estivesse mais no banco. Para mim era indiferente apitar camadas jovens ou o Benfica. Não fui árbitro internacional, mas, como assistente – na altura não havia carreira para os ditos ‘fiscais de linha’ – fiz alguns jogos. Num deles, um Itália-Rússia, fomos levados a passear pelos palácios e jardins dos antigos imperadores de Roma. Pensei cá para os meus botões: um filho de Portimão nos jardins dos imperadores de Roma!”, recorda, com saudade. O chefe de equipa era Jorge Coroado e Vítor Pereira o outro assistente… que trio!
Factos e números da carreira
⇨ Exerceu funções de árbitro e árbitro assistente de 1972 a 1994
⇨ Foi promovido à 3ª categoria nacional em 1981, à 2ª em 1984 e à 1ª em 1987
⇨ Dirigiu 631 jogos e foi assistente em 319. Estreou-se na I Divisão num Braga-Marítimo e terminou num FC Porto-Sporting
⇨ Foi presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol do Algarve de 1995 a 2005
⇨ Homenageado pelo Governo Civil de Faro e pela Associação de Futebol do Algarve
⇨ Fundou o Núcleo de Árbitros do Barlavento, o qual, mais tarde, passou a ter o seu nome