Manuel Gamboa – “Pintar é escrever poesia numa tela”
Artista algarvio mantém-se ativo aos 91 anos e, apesar da avançada idade, dá asas à criatividade madrugada fora.
Texto: Fernando M. Vieira / Fotos: Kátia Viola
Algures nos campos de Vale d’El-Rei, concelho de Lagoa, o artista plástico algarvio Manuel Gamboa dá asas à criatividade, na plenitude dos seus 91 anos. Num estúdio onde o conforto é mínimo, distribuem-se dezenas de telas pintadas a óleo, com diferentes formatos.
Noctívago assumido e avesso a rotinas, Gamboa reconhece: “Trabalho quase sempre de noite, porque a madrugada é algo maravilhoso e inspirador e a pintura não passa de um sonho. Nos meus quadros não preciso de modelos, porque eles saem de mim. Basta-me pensar em algo, por vezes ao ouvir sons que nem imaginava existirem.”
“NUNCA ME DOU POR SATISFEITO”
Sobre o papel que o Algarve representa no seu processo criador, o artista afirma: “A inspiração da minha terra natal vem das paisagens, que admiro para mim mesmo, porque não as reproduzo. No entanto, é claro que toda a beleza algarvia, nomeadamente esta luz única, acaba por me influenciar.”
Autodidata, não se revê em nenhuma corrente artística: “Se me perguntarem porque fiz determinado quadro, sou incapaz de explicar, pois limitei-me a senti-lo e a passá-lo para a tela. Depois, nunca me dou por satisfeito. O mesmo sucederá ao poeta, que muda constantemente as palavras. Isto é uma atividade solitária, uma necessidade interior, em que não antecipamos nada.”
“No meu ponto de vista, a pintura e a poesia têm uma semelhança extraordinária – pintar é escrever poesia numa tela” sublinha, antes de confessar: “O branco mete-me muito medo… Por isso, primeiro começo a sentir o que poderei fazer, antes de usar as cores, muitas cores.”
TURISMO CULTURAL
“Na existência de uma pessoa faltará sempre qualquer coisa, porque ninguém é dono de si ou da própria vida. A minha filosofia é – portanto – viver um dia de cada de vez, se possível de forma intensa”, considera o artista. Não obstante os seus 91 anos, Manuel Gamboa continua a acreditar no futuro, sob reservas: “Há tempos, um crítico de arte escreveu num jornal alemão que o Algarve deve orgulhar-se de eu aqui ter nascido. Também defendeu que as minhas obras apenas deviam sair de Portugal por empréstimo. Será importante que alguém com responsabilidades reconheça que o turismo cultural ganha cada vez maior terreno e que esse poderá ser um interessante polo atrativo para os que nos visitam à procura de algo mais do que sol e praia.”
Talvez o mais idoso artista algarvio ainda em atividade, Gamboa não esconde o seu desencanto: “Enquanto isso não acontece, os meus quadros e gravuras vão saindo para fora, porque preciso de algum dinheiro para subsistir. Salvo a devida modéstia, é um património da região e do próprio país que se está a perder.”
O ARTISTA NA BLOGOSFERA
Apreciador confesso do artista e da sua vasta obra, ‘João de Lagoa’ criou na blogosfera uma página sobre Manuel Gamboa: http://mgamboa.blogspot.pt/.
Segundo este admirador, Gamboa “ cultiva dominantemente a pintura, o desenho e a escultura, mas experimenta e, pontualmente, ensaia ou realiza trabalhos em quase todas as modalidades plásticas e visuais: cerâmica, tapeçaria, arte pública e monumental. A sua produção gráfica é particularmente apreciável, quer no desenho, quer na gravura (linóleo, serigrafia), na monotipia e no batik (pintando sobre tecidos, em modelos originais de vestuário).”
DA TELA PARA OS LIVROS
Existem diversos livros que citam, de forma mais ou menos desenvolvida, o nonagenário artista e o percurso artístico deste pintor algarvio.
Dois foram inteiramente consagrados ao seu trabalho, a saber: ‘Manuel Gamboa – A arte por vida’, de Joaquim Saial e editado em 1998, e ‘Gamboa – Cântico à Vida’, de José-Luís Ferreira e lançado em 2005, ambos com o selo da Câmara de Lagoa.
Neste momento, a escritora e linguista Maria Helena do Carmo está em fase de conclusão de uma biografia sobre o pintor, a ser editada nos próximos meses, a qual se encontra em fase de revisão pelo próprio Manuel Gamboa.
QUEM É MANUEL GAMBOA
Orgulhoso filho de uma peixeira que vendia no Mercado Municipal de Lagoa, Manuel Rosário Gamboa das Neves nasceu a 24 de maio de 1925. Pertence à geração de pintores neo-realistas que na década de 1950 tiveram de abandonar Portugal para prosseguir a sua veia criativa, regressando ao Algarve em 1987.
É há muito uma referência mundial na pintura e está representado em várias coleções públicas e privadas, por todos os continentes.
O seu nome foi atribuído a uma sala de exposições do Convento de S. José, em Lagoa, município que o distinguiu muito recentemente pelo conjunto da sua obra.