O Padre Domingos faz e a obra nasce na Mexilhoeira Grande
Testo: Hélio Nascimento | Fotos: Kátia Viola
A narrativa do Padre Domingos flui naturalmente e de forma simples. Não deixa nada ao acaso: datas, personagens, acontecimentos, lutas travadas, batalhas ganhas e um número tremendo de obras e benfeitorias espalhadas pela Mexilhoeira Grande. Do ‘alto’ do seu estatuto de octogenário infunde respeito e admiração. Há 45 anos que chegou à freguesia, para mudar a vida da esmagadora maioria da população. O que se segue é uma história de amor ao próximo contada na primeira pessoa e com factos irrefutáveis. O Padre Domingos faz e a obra nasce!
Natural do concelho de Celorico de Basto, com 80 anos, Domingos Monteiro da Costa é jesuíta e chegou ao Algarve em 1975, depois de ter estudado na Alemanha e em França. “Os jesuítas são enviados para várias terras, já que, em princípio, não estão ligados a nenhuma diocese. De acordo com um superior, no meu caso da Companhia de Jesus, podemos ser destacados para trabalhar em qualquer lugar, quase sempre correspondendo ao pedido de uma diocese”, explica o Padre Domingos, que recebe a reportagem do Portimão Jornal em pleno Centro Pastoral da Mexilhoeira Grande, uma das freguesias portimonenses. “De 1969 a 1973 estive na Alemanha, em Frankfurt, a concluir o curso de teologia. A seguir fui para Paris, estudar Ciências Sociais, e, quando regressei, em 1975, fiquei destinado a viajar para o Algarve, com o Padre Arsénio, que Deus haja. Foi no Verão quente de 1975”, especifica o pároco, como que a arrancar para dar nota de muitos dos retalhos de uma vida cheia.
A intenção era trabalhar com a juventude e formar leigos, as “pessoas que vivem no mundo com as suas profissões, os que não são padres nem religiosos”. Na altura, na Mexilhoeira, “estava um membro da congregação dos Missionários Claretianos, o Padre José Gonçalves”, que, como vamos ver, passou tempos difíceis. “Já depois do 25 de abril, na sequência de uma missa, os revolucionários cá do sítio fizeram uma manifestação contra o general Franco, que tinha condenado, na Catalunha, seis jovens da ETA à morte. Foi um escarcéu enorme. Pediram a instalação sonora da igreja ao padre, mas ele disse que não, e, de imediato, julgaram-no em tribunal popular e condenaram-no a prisão domiciliária”.
À medida que enumera os principais episódios que antecederam a sua chegada ao Algarve, o Padre Domingos revela uma memória fantástica e consegue absorver as atenções gerais. “A partir daí a paróquia entrou em estado de degradação, de tal modo que nenhum padre da zona quis vir para a Mexilhoeira. O bispo apercebeu-se e acabou, então, por recorrer a nós. Chegámos em 21 de setembro e em 2 de outubro tivemos um encontro com ele, ficando definido que tomaríamos conta da paróquia durante dois meses, enquanto ele procurava outro prior. Ao fim de dois meses, fui-lhe entregar as chaves. ‘Os dois meses já acabaram’, disse eu. ‘Mas não gostou?’, perguntou-me ele. Vendo que eu acenava favoravelmente, respondeu de pronto: ‘Então continue!’. Até hoje. Já lá vão 45 anos”.
O restauro da Igreja Matriz e as aulas de religião e moral
“Os jesuítas não tinham interesse em tomar conta de paróquias, mas aconteceu ser assim. Na altura, não havia trabalho, nem tão-pouco nas escolas. Queríamos ter mais ocupação. Tentámos lavar loiça nos hotéis e restaurantes, mas nada. O Padre Arsénio acabou por ir para a lota, descarregar peixe, e eu por aqui fiquei”, prossegue o Padre Domingos. Já não havia volta a dar e a Mexilhoeira ia mesmo ser parte integrante da sua vida. A partir de então foi meter mãos à obra.
“O que fiz? Quieto é que nunca fiquei! Primeiro foi o restauro na Igreja Matriz, que está quase a fazer 500 anos. Vamos celebrar em 2025, em princípio no dia 15 de agosto. A igreja ameaçava ruir e precisava de intervenção. Na altura, note, tinha 40 ou 50 velhinhas que iam à missa, só isso. Por aqui ninguém conhecia os sítios próximos (Figueira, Alcalar, Arão, Senhora do Verde, Pereira e Montes de Cima), não havia transportes, pontes ou estradas alcatroadas. As pessoas viviam isoladas, sem meios para se deslocarem, de maneira que a minha primeira preocupação foi a educação”.
Sem perder o fio à meada, o Padre Domingos intercala a história com acontecimentos paralelos. Segundo ele, os padres têm também a obrigação de ensinar e de educar. Na circunstância, começou a visitar escolas e passou, num ápice, a dar aulas de religião e moral. “Estive 27 anos a dar aulas nas primárias. Em todas as escolas da freguesia havia 320 miúdos, mas neste momento as crianças na Mexilhoeira não chegam a 60”, assevera, com um ar de alguma revolta, aproveitando para atirar uma das muitas ‘alfinetadas’ em que é pródigo. “O maléfico PDM não deixava que as pessoas, quando casavam, construíssem casas nos terrenos dos pais”, argumenta, referindo-se à desertificação de muitos locais por este país fora em virtude da debandada da população local, rumo a destinos com outro tipo de ofertas.
Voltando à restauração da Igreja Matriz, o nosso interlocutor dispara outra nota. “Queriam passar lá filmes, fazer da igreja um salão de cinema. Pensavam que igreja era para analfabetos, para enganar as pessoas. O adro estava uma lixeira! Tirei dali 18 camiões de lixo e entulho. Onde ia buscar dinheiro? A propósito: nós não tínhamos casa própria, ficámos primeiro em Portimão, na Quinta do Amparo. Tínhamos trazido dez contos, sete foram logo para pagar a casa, e tivemos de pedir mais a Lisboa. Sem mobília, foi tudo emprestado, das camas às cadeiras, mesas e tachos. A água era aquecida numa panela. E nem loiças havia. Lá arranjámos uns pratos e depois comprámos dois garfos, duas colheres e duas facas. É assim que começam as coisas grandes, a partir da pobreza”, garante o Padre Domingos. Os valores então passados às gerações seguintes, sublinha, “estão hoje desfeitos”.
Donativos da Alemanha e o primeiro Jardim de Infância
De obra em obra e de história em história, o Padre Domingos passa a contar o que fazia para arranjar o dinheiro necessário aos empreendimentos. “Fui à Alemanha buscar dinheiro. Escrevi a várias dioceses por onde tinha passado, e a outras, e foi assim, através de donativos, que angariava verbas”. O primeiro infantário público a seguir ao 25 de abril tem a sua marca. Na altura, “nem havia educadoras de infância formadas”, mas isso não impediu que, em 1978, ano Mundial da Criança, avançasse para a construção do jardim de infância da Mexilhoeira Grande, na antiga residência paroquial.
“Os revolucionários queriam ocupar o terreno, mas a obra foi feita às prestações. Depois surgiu a creche, depois o ATL, tudo lentamente. A obrigação dos cristãos é procurar ler a realidade em que estamos à luz do Evangelho e da palavra de Deus, que é de ontem, de hoje e de sempre. Os cristãos, às vezes, separam tudo e a vida passa ao largo… Quando cheguei aqui, as crianças andavam na rua enquanto os pais estavam a trabalhar. O que fazer? Um jardim de infância, claro! Foi o primeiro público, antes de irem para a escola. Foi inaugurado no dia 10 novembro de 1980, precisamente há 40 anos”, aponta, convidando a nossa reportagem a testemunhar a chegada dos petizes, de tenra idade, ao Centro Pastoral, onde, acompanhados pelas monitoras e antes do lanche, começam com as suas brincadeiras, de pronto ‘apanhadas’ pela Kátia para o devido registo fotográfico nestas páginas.
Ainda a propósito dos donativos, acrescente-se que não são só as dioceses alemãs a contribuir para as nobres causas do Padre Domingos. Entre outros, há um casal holandês que todos os anos, por altura do Natal, entrega cinco mil euros para ajuda de todas as iniciativas que protegem os mais desfavorecidos.
Lar de Idosos na Mexilhoeira e Aldeia de S. José de Alcalar
“Durante muitos anos fazia funerais de pessoas velhinhas do interior que se suicidavam. Os familiares diziam que era vontade de Deus… meter Deus nestas coisas? Não foi Deus que deu a corda para os enforcamentos ou contribuiu para quem se afogava de propósito”, diz o pároco, visando outra das suas obras, o Lar de Idosos da Mexilhoeira. “O que importa é transformar a realidade! Ou seja, teria de haver uma solução para esta gente com medo da solidão. Com o dinheiro da Alemanha tinha começado uma construção para colocar educadores de infância ou grupo de padres ou irmãs que nunca vieram nem por cá se fixaram. Tinha aquele edifício às moscas e não hesitei: vou transformá-lo num lar de idosos para recolher essas pessoas. Num ápice, acabei com os suicídios”.
A realidade é que nos ensina e não podemos ficar de braços cruzados, considera o Padre Domingos, lamentando “a oposição dos poderes políticos” e os que diziam “para a igreja se meter na sacristia”. Por esse prisma, prossegue, “a igreja e religião não fazem falta”. “Amai-vos uns aos outros e dai de comer a quem tem fome, como disse Jesus”, preconiza, apontando para as transformações sociais ao alcance do Homem. “O resto vem por acréscimo. Veja o caso de um diácono de 40 anos e da esposa, preparados por mim, que tomaram recentemente conta da paróquia de Odiáxere. É o primeiro caso numa diocese do Algarve e penso que até em Portugal”.
Voltando aos idosos, o Padre Domingos ainda não estava totalmente satisfeito com o que tinha edificado. “No tal lar viviam os casais, sem intimidade, em quartos com cama e nada mais. Se morria um, tinha de juntar o viúvo ou a viúva a outro. E os pais com filhos deficientes, que viviam amargurados, a pensar quem tomaria conta deles quando morressem… ‘Isto não pode ser, tem de haver uma solução’, pensei cá para mim. E se fizesse uma aldeia?!”
A verdade é que o Padre Domingos lançou o repto a Martim Gracias, presidente da Câmara Municipal de Portimão na altura. “Perguntou-me onde tinha ido beber esta ideia e eu disse-lhe que foi ao Evangelho. ‘Não encontro’, respondeu-me. Eu insisti. ‘Leia nas entrelinhas. É interpretar, é fazer a ligação’. Acabou por ser ele, que era arquiteto, a fazer o projeto, embora não fosse lá muito crente. Ficou tudo gratuito. Houve depois um engenheiro que ofereceu os cálculos, o terreno também foi doado e é assim que se evolui. Hoje não me metia nisto, porque a política estraga tudo e temos perseguição e caça às multas”, desabafa, no seu estilo peculiar.
Assim nasceu a Aldeia de S. José, em Alcalar, porventura a maior e mais importante obra do Padre Domingos. A primeira pedra foi benzida em 23 de outubro de 1987, as obras arrancaram em 16 de maio de 1989, sempre com o trabalho de apenas três pedreiros e dois serventes. Durante 11 anos os trabalhos prosseguiram. As casinhas de habitação iam sendo ocupadas à medida que ficavam prontas. Até que, no ano 2000, fez-se a inauguração geral.
Aldeia de S. José é um mundo
A Aldeia de São José de Alcalar é uma espécie de cidade em miniatura e a sua entrada até se assemelha à de alguns dos resorts espalhados pelo Algarve.
No interior, as 52 casinhas – o modo carinhoso como chamam às habitações – estão dispostas em dois enormes semicírculos, com árvores e vegetação bem cuidada a rodeá-las. As portas das casas não se fecham e é comum ver os habitantes de volta de alguma plantação ou, então, sentados a apanhar a brisa.
As casinhas albergam 115 pessoas, todas idosas, para além de alguns deficientes, com a singularidade de toda esta população ter nascido na freguesia. “Damos prioridade total aos pobres. A necessidade é que fala mais alto”, existindo nesta altura uma lista de espera de cerca de 100 pessoas, como salienta o Padre Domingos, enquanto nos continua a guiar pela aldeia. E o que vimos? Cozinha, refeitório, biblioteca, café, anfiteatro, capela, infantário, salas para atividades e lazer, cabeleireiro, gabinetes para o pessoal administrativo e uma recente sala destinada a fisioterapia. É um mundo! Quem não conhecer, se calhar, não acredita. “E nem um caso de covid”, sublinha.
A paróquia emprega 75 pessoas e dá de comer a 400, por dia, com algum apoio da Segurança Social. Entre creche, infantário e ATL são 150 as crianças que beneficiam das obras do Padre Domingos.
“A maioria vem de Portimão, de famílias pobres e até desfeitas, muitas delas estrangeiras. Há crianças que pagam 20 ou 30 euros mensais, outras mais, depende dos salários dos pais. Felizmente, continuamos a ter muitos donativos”.
“Foi uma benção para a nossa terra”
Poucas pessoas devem conhecer o Padre Domingos tão bem como Teresa Rochate, a funcionária administrativa do Centro Pastoral, onde trabalha há 32 anos. As memórias, porém, são ainda mais antigas. “Conheço-o desde que cá chegou. Era um padre jovem e diferente, que veio romper com a imagem da altura. Estávamos no período pós-25 de abril, habituados a uma igreja associada ao regime. A prática cristã tinha diminuído e não havia qualquer resposta para os jovens”, conta Teresa, uma excelente conversadora. “O senhor Padre trouxe uma dinâmica e uma preocupação diferentes. Foi uma viragem na nossa terra e no pensamento das pessoas”.
A compreensão da palavra de Deus, a formação e a solidariedade passaram a ter uma dimensão bem vincada na freguesia da Mexilhoeira. “O nosso jardim infantil fez agora 40 anos de existência. Antes, os miúdos brincavam na rua”, prossegue, falando de “um jovem jesuíta com ideias fortes e sempre pronto a discernir quais as medidas para avançar. Foi uma bênção para a nossa terra”, exclama, rendida ao “aprofundar da fé através da revolução da mente”. No entender de Teresa Rochate, esta última frase simboliza o ‘outro lado’ da obra do Padre Domingos, quiçá tão importante como as igrejas e os lares que construiu.
“Se é teimoso? Se não fosse, não estava aqui. É convicto e direcionado para o que tem em vista. Continua teimoso”, garante, com um sorriso que mais parece uma aprovação. “Ainda hoje, desloca-se onde é preciso. É muito audaz e nunca perde a esperança de que as coisas se realizem”, assegura quem tão bem o conhece.
“As sete comunidades da freguesia dinamizaram-se com o Padre Domingos, inclusive os leigos. Esteve sempre na frente, à luz do Evangelho, que é diferente de ir à missa”, sublinha a senhora que também já fez de catequista e de formadora de grupos. Tem 65 anos, três filhos e o seu pai até trabalhou em algumas das benfeitorias. “Posso dizer que tenho um grande orgulho em ser sua funcionária e amiga. É um privilégio ter assistido à obra do Padre Domingos”.