OPINIÃO: Uma carta tarjada de luto em tempos de breu
Pedro Manuel Pereira | Historiador
Conforme os leitores que tem acompanhado os meus escritos neste periódico desde a sua fundação, não tenho por hábito falar de mim, porém, dada a evocação da efeméride que este ano se comemora (os 50 anos do 25 de Abril de 1974), e acompanhando os tempos que hoje vivemos, não quero deixar de partilhar convosco esta história “edificante”, dando o exemplo da acção “benfeitora” de um serventuário da ditadura salazarista, que afectou dramaticamente a vida do meu pai e da família.
Mais sinistro do que ser agente da PIDE (a polícia política do regime), eram os “bufos”, os delatores, que hoje, outros, embora o regime seja democrático (com nuances), continuam a proliferar no aparelho do Estado, sobretudo nas autarquias e, de um modo geral, de forma avulsa ao serviço de outros “patrões”.
Assim…
Na sequência da campanha para a presidência da República, cujos candidatos eram, pela ditadura, o almirante Américo Tomás e pela oposição o general Humberto Delgado, o meu pai foi preso pela PIDE, denunciado como «um perigoso agente subversivo» – vá lá saber-se ao serviço de quem! – pelo prior da igreja matriz de uma cidade algarvia, em casa de quem havia pernoitado uma noite, de passagem em trabalho por esta região, que ele julgava ser seu amigo de há vários anos. Haviam sido pioneiros da rádio em Portugal e o padre tinha servido sobre as suas ordens, ambos na fundação de uma conhecida emissora de rádio que ainda hoje existe.
Na hora em que foi preso, em Lisboa, onde a família vivia (a minha mãe, eu e os meus irmãos), acordei a chorar e a gritar pelo meu pai, segundo me relatou ao longo dos anos a minha mãe. Porém, dele só se soube passados quinze dias da sua detenção.
Na verdade, meu pai não militava no único partido político que sobrevivia na clandestinidade no seio de breu da ditadura salazarenta, o Partido Comunista Português, nem se enquadrava em nenhum movimento clandestino oposicionista ao regime.
Preso, transferido e encarcerado incomunicável numa minúscula cela na prisão do Aljube, em Lisboa, foi solto sem explicações tempos mais tarde, porque na altura em que foi presente a um interrogatório, defrontou-se com o inspector de serviço, que era um antigo colega seu de escola primária e do Bairro da Ajuda, nessa cidade, onde nasceram e cresceram, acompanhado de um escrivão. Entendeu esse, que meu pai não constituía perigo para a ditadura e por isso mandou soltá-lo sem mais delongas. Não porque fosse particularmente amigo dele, mas porque o conhecia e sabia que a denúncia que o levara a ser encarcerado, mais não era que um caso de vingança mesquinha por razões ocultas, de um arauto malparido da igreja.
Quando um funcionário da PIDE devolveu ao meu pai os objectos pessoais, este deu por falta de um pequeno canivete suíço de estimação. Afinal os pides eram larápios, concluiu, e ficou a saber quem havia sido o denunciante que o havia levado aos curros da polícia política, porque entre os pertences devolvidos vinha um cartão-de-visita seu com um canto dobrado e nele escrito com a sua letra: “Um obrigado, com um abraço” ao fulano de tal. Havia feito entrega dele ao padre na despedida em casa desse onde pernoitara.
Como resultado da prisão, quando se apresentou ao serviço – trabalhava na Emissora Nacional – foi compelido pelo seu director a apresentar a demissão, ou antes, esse propôs-lhe demitir-se ou ele (director) demitia-o.
A partir de então ninguém lhe dava emprego. Assim que sabiam que tinha feito uma «estadia» nos calabouços da PIDE, era como se fosse um leproso.
A situação económica no seio da família degradou-se até atingir níveis insustentáveis, tanto mais que havia filhos pequenos para criar. Não obstante, passado cerca de um ano sem conseguir trabalho, deu-se um facto curioso, o indivíduo que o entrevistou ao responder a um anúncio disse ter recebido uns dias antes uma carta de recomendação sobre ele. Dizia isto acenando-lha do outro lado da secretária. Era uma carta com uma tarja negra timbrada no canto superior esquerdo. Nesse tempo usavam as pessoas usavam essas missivas quando estavam de luto.
Por educação o meu pai não perguntou de quem era, mas estranhou imenso, tanto mais que só na véspera lhe haviam marcado a entrevista e sem ser minha mãe, ninguém mais sabia daquele encontro.
Passado pouco mais de um ano, por questões de melhoria de salário pretendendo mudar de emprego, pediu para ser recebido pelo administrador de uma multinacional americana sediada em Lisboa. De novo ocorreu a mesma situação; lá estava na mão do entrevistador uma carta de recomendação tarjada de luto.
Mudou de ocupação profissional para essa empresa e por mais duas vezes em situações semelhantes lhe tornou a acontecer o mesmo ao longo da vida.
O mistério dessas cartas de recomendação mantém-se até hoje, porque meu pai nunca teve a coragem de perguntar aos possuidores dessas missivas quem era o remetente das mesmas.