Os novos tempos das encomendas entregues ao domicílio

Texto e Fotos: José Garrancho
Observo com curiosidade a prática de ‘take away’, desde criança, quando era conhecida pela expressão portuguesa ‘comida para fora’. Ficava encantado e curioso com as marmitas de alumínio sobrepostas, regra geral três, que deixavam no restaurante, pela manhã, para as recolherem à hora do almoço, no caminho para casa, com sopa, prato do dia e fruta. Recordo alguns vizinhos, na maioria funcionários públicos, useiros e vezeiros nesta modalidade.
Mais tarde, quando o frango deixou de ser alimento de luxo, graças à implementação dos aviários, tomou a dianteira no ‘take away’ e as pessoas quase esqueceram todos os outros pratos. Há poucos anos, apareceram as pizzas, que começaram a competir nesta modalidade com o frango grelhado.
Entretanto, as pessoas exigem cada vez mais regalias, usando a ‘falta de tempo’ como desculpa, e os restaurantes dessas especialidades começaram a usar estafetas para fazer as entregas, de forma rápida e eficiente, na casa dos clientes. E a maior ou menor rapidez com que as recebiam também contavam para a escolha do fornecedor.
A chamada “evolução” não para e, de repente, apareceram em Portugal empresas multinacionais especializadas em entregas. A pandemia obrigou as pessoas ao isolamento e o negócio floresceu, com o comércio local a aderir em força.
Na atualidade, há cerca de 150 estafetas a operar em Portimão, divididos por três empresas, Uber Eats, Glovo e Bolt, embora quase todos acabem por laborar, pelo menos, em duas. Há portugueses, brasileiros, peruanos e asiáticos, os últimos a aumentar de dia para dia. Fazem entregas de refeições, géneros alimentícios, flores, bebidas, eletrodomésticos, produtos informáticos e tudo o mais, com exceção de tabaco, a qualquer hora, desde que o fornecedor tenha a porta aberta.
Deslocam-se nas suas motorizadas, ziguezagueando por entre o tráfego, arrancando pragas e insultos a alguns condutores; possivelmente, os mesmos que reclamam, quando as suas entregas demoram um pouco mais do que o previsto.
A Algarve Vivo conversou com alguns operadores, para poder saber mais sobre esta prática de serviços ao domicílio.
De segurança a estafeta
José Vieira trabalhou 30 anos na Securitas e trocou um emprego na segurança pela atividade de estafeta. Tem 57 anos, ainda está longe da idade da reforma, mas achou que a segurança devia ser para os mais novos. Encontrou este nicho de mercado e achou-o interessante.
Qual o atrativo desta profissão?
Sempre gostei muito de andar de mota e pensei que podia juntar o útil ao agradável. Estive ano e meio em part-time, para ver se dava para tirar um salário decente, sem estar a incomodar ninguém e sem ninguém a incomodar-me. Faço a gestão do meu tempo.
Qual a sua relação com a UBER?
A UBER não nos obriga a nada. É uma plataforma que faz a gestão de tudo. O cliente faz o pedido à plataforma, esta lança o pedido ao fornecedor, este aceita e a UBER lança o pedido, aleatoriamente, a um estafeta presente na área. Faz a gestão de todo o circuito, com alta tecnologia. Cobra e recebe do cliente, paga ao fornecedor, cobrando as suas taxas, e paga-nos. No meu caso, semanalmente, porque foi a minha opção.
É, portanto, um trabalhador independente?
Sou trabalhador independente, pago os meus impostos, a segurança social e IVA à taxa de 23%. Penso que está errado, porque não produzo nada, simplesmente transporto algo que já pagou IVA ao longo de todo o seu ciclo de produção. Simplesmente recebo a comida no restaurante e entrego ao consumidor. Por que pago 23% de IVA sobre a minha comissão? Estou a pagar IVA sobre o meu trabalho, pois não produzo nada. Penso que isto deveria ser corrigido.
Isso é prática corrente no meio, o pagamento do IVA pelos operacionais?
Em Portimão, devo ser um dos poucos taxados, porque a maioria trabalha para uma frota, estando esses impostos a cargo do gestor dessa frota. Os trabalhadores recebem o dinheiro, muito dele não declarado, e poucos impostos pagam. Costumo dizer que, todos os anos, o que eu pago ao Estado (e eles não) permite-lhes comprar uma mota nova. Essas frotas, quando chega a hora de pagar o IVA, de três em três meses, valores que podem chegar aos mil euros por estafeta, declaram falência e abrem com outro nome, a jogada característica em Portugal, há muitos anos. E isto acontece principalmente com os trabalhadores asiáticos.
Não há muitos portugueses nesta atividade, pois não?
Fui um dos primeiros a trabalhar na UBER, em Portimão, iniciando-me no dia 1 de outubro de 2019. Já levo 23 mil entregas feitas, num total de 120 mil quilómetros. Fui o único português, durante muito tempo. Neste momento, já somos três ou quatro. De vez em quando, aparece um ou outro, mas não duram muito tempo. Parece que têm vergonha de trabalhar com a mochila às costas. Neste momento, há alguns brasileiros, mas a maioria são do Paquistão, Índia, Bangladesh.

Qual o número médio de horas diárias que vocês fazem?
Voltamos à gestão do tempo. Há quem faça sete, há quem faça 12, há quem faça 14. Depende da opção ou da necessidade de cada um. Se estou num momento em que necessito de pagar o seguro do carro, ou qualquer outra coisa, sacrifico-me um pouco e faço mais umas horas diárias. Normalmente, faço cinco horas ao almoço e cinco horas ao jantar. Foi a minha opção, dez horas por dia.
Cada vez mais, as pessoas recorrem às plataformas para outros serviços, além das refeições?
É verdade. Isto começou em 2019. A pandemia apareceu logo em 2020, 21 e 22, as pessoas começaram a pedir, porque foram obrigadas, entraram naquele ritmo e chegaram à conclusão de que era bom, porque a UBER e os supermercados fazem várias promoções. E as pessoas começaram a pensar que, muitas vezes, tirar o carro do sítio onde está estacionado, com a dificuldade de estacionamento que existe, e andar dois quilómetros para chegar ao supermercado, no pára-arranca, não compensa. É preferível ficar em casa, de pijama, e receber o que necessita, sem chatices.
E o comércio, em geral, tem aderido?
Sim, porque é mais uma fonte de rendimento, sem ter grandes preocupações. Repare: quando a UBER, que foi a primeira a instalar-se, aqui chegou, em 2019, iniciou-se com aproximadamente 70 parceiros de restauração e um pouco mais de uma dúzia de estafetas. Neste momento, devem ser para cima de 150 estafetas e nem faço ideia dos estabelecimentos. Eu próprio, por vezes, fico surpreendido, porque me cai uma recolha num sítio que desconheço completamente e vou dar a uma lojinha daquelas que nos passam despercebidas.
E porquê?
No início, as pessoas estavam um pouco desconfiadas, pois já tinha havido as manifestações contra os carros. Depois, aperceberam-se de que podia ser bom para o seu negócio, uma fonte de rendimento adicional, e começaram a aderir.
E também é compensador para o trabalhador?
O Algarve é muito sazonal, como toda a gente sabe. No Verão, ganha-se quase o que se quer, dependendo do número de horas que queremos trabalhar. No Inverno, transforma-se numa cidade praticamente parada e o número de estafetas mantém-se. Contudo, em termos anuais, consigo tirar aqui o ordenado que tiraria noutra profissão qualquer. Muitos iniciaram-se num Verão e desistiram no Inverno, mas eu continuo, até porque adoro andar de mota e, por isso, gosto do que faço. Mas somos nós que compramos as motos, as mochilas, os telemóveis e tudo o mais.
A mochila tem características próprias?
Sim, tem de ter uma determinada dimensão e ser térmica. De tempos a tempos, temos de fotografá-la de vários ângulos e enviar para a UBER, para aprovação. Se a UBER rejeitar a mochila, rejeita-nos a aplicação. Além disso, como trabalhador independente, tenho de apresentar-lhes, trimestralmente, os certificados de dívida ou não dívida à Segurança Social e às Finanças, carta de condução; se trocar de mota, tenho de fornecer-lhes a nova matrícula, prova do seguro, etc. Não é à balda como muita gente pensa. Até há cerca de um ano, tínhamos de enviar, semestralmente, o registo criminal.
Denúncias à UBER
Segundo vários estafetas, que não quiseram ser identificados, os asiáticos usam alegadamente aplicações maliciosas, bloqueadores de sinal, que são pagos, caindo as chamadas para eles. E trabalham em rede, em frota. A situação, segundo afirmam os entregadores de outras nacionalidades afirmam que já denunciaram a situação à UBER, mas são as autoridades quem têm de investigar esse assunto. Foi feita uma fiscalização, no passado ano, mas consideram que deveria ser feita com frequência, porque muitos asiáticos trabalham por conta de outros e fogem aos impostos. A Algarve Vivo tentou entrevistar estafetas asiáticos, mas todos se recusaram a falar.
Wallace de Sousa também optou por esta profissão

Em Portugal há três anos, Wallace de Sousa começou na jardinagem, juntou dinheiro, comprou uma mota e inscreveu-se na plataforma como estafeta, há cerca de ano e meio.
O processo foi simples?
Registei-me nas finanças, abri conta na UBER e aqui estou.
É, portanto, fácil abrir uma conta na UBER?
Desde que tenha a documentação em ordem, é fácil.
Trabalha muitas horas, diariamente?
Eu é que faço os meus horários, que vão das 11h00 às 15h00 e, depois, das 18h00 à meia-noite. São os períodos de maior movimento.
E dá para viver?
Neste último ano, não. Há muitas frotas. Quando estávamos só nós, éramos poucos, havia união, era bom. Agora, com os asiáticos, mudou tudo. Os ‘caras’ chegam aqui num dia e no outro já abrem conta. Ninguém entende como…
É difícil, no Verão, circular no meio do trânsito intenso?
Para mim, é fácil, pois vim de uma capital e isto, para mim, não é nada. É um passeio.
Que tipo de encomendas recebem?
A comida é o principal, mas também entregamos artigos de mercearia, cabos elétricos, carregadores, tinteiros, tudo.
Qualquer dia recebe uma encomenda para levar uma namorada (risos)?
Não sei, não. Os ingleses, às vezes, fazemos uma entrega e eles pedem para a gente os levar mais à frente. ‘Negativo, não tem capacete’, é a resposta.
Vai continuar como estafeta?
Sim. É melhor do que trabalhar para os outros, embora tenha de pagar IRS, segurança social e IVA.