Padre Miguel Ângelo deixou a sua marca em Estômbar e Ferragudo

Texto e Foto: José Garrancho


Que melhor maneira de iniciar um novo ano do que conversar com um pároco que já oficiou em dez igrejas, em três concelhos do barlavento algarvio, e pediu dispensa, em meados de dezembro último, para voltar à universidade e frequentar um curso de história.

O padre Miguel Ângelo, tavirense de 42 anos, acolheu-nos com imensa simpatia e simplicidade, que nos fizeram entender a razão por que os seus antigos paroquianos o recordam com saudade. Ao Lagoa Informa revelou algumas das memórias sobre a sua passagem por Estômbar e Ferragudo e as diferenças encontradas entre as duas freguesias, que em tempos idos foram apenas uma.

“Geralmente, nas comunidades por onde passo, costumo fazer uma pequena resenha histórica, para compreender as pessoas, as realidades e as mentalidades de cada uma”, começa por nos dizer.

“Estômbar e Ferragudo, até ao século XVIII, eram praticamente a mesma paróquia. A segunda fazia parte da primeira, o que gerou celeumas e rivalidades históricas entre as duas localidades, que se mantiveram até hoje. Pegando um bocadinho nisso, procurei, porque um padre deve ser um homem que proclama a paz na Terra, aproximar as comunidades e conhecer as realidades”, explica.

O padre Miguel Ângelo assumiu Ferragudo, “uma localidade piscatória com uma profunda abertura de coração a quem chega”. “Deixei-me contagiar, no bom sentido, pelo carinho e estima daquela gente”, salienta.

Seguiu-se Estômbar, mais virada para o campo, mais reservada. “Mas foi uma comunidade que também me conquistou bastante. Fui bem-recebido pela população, mas senti essa reserva inicial. Porém, quando entramos no coração das pessoas, elas depois já não nos querem largar”, recorda.
E fez a comparação do pároco a um pai que tem muitos filhos. “Não gosta mais de um e menos de outro. Gosta de todos, mas pelas particularidades que cada um tem”, afirma.

Acabou por confessar que foi um processo difícil, porque substituiu o pároco anterior, Domingos Fernandes, que se desvinculou de Estômbar, ao fim de muitos anos, por razões de saúde.

“Mas senti também que o ter ido para lá um padre novo foi bom para a comunidade. Houve um período de conhecimento, mas foi uma comunidade que me cativou pela simplicidade de coração”.

O padre recorda o doutor Canha e Sá, falecido há uns meses, que o acolheu e o ajudou a integrar-se na comunidade, introduzindo-o no conhecimento das pessoas e nas tradições locais.


Importante espólio documental em Estômbar
A atual vila de Estômbar foi poderosa, no passado, ao ponto de ter o seu castelo na bandeira nacional. Logo, tem história e as igrejas e os seus párocos foram os guardiões dos documentos oficiais.

“A igreja é magnífica, do ponto de vista patrimonial. E tinha a particularidade de ser visitada frequentemente pelos cónegos da Sé de Silves. Há um edifício que ainda se mantém de pé, dentro do qual está uma capela, que era o local de veraneio desses cónegos”, foi-nos confidenciando o nosso entrevistado.

“Além disso, a igreja de Estômbar era uma igreja da Mitra e, não nos podemos esquecer, é uma igreja de Santiago, no percurso para Santiago de Compostela. No meu tempo, o depósito documental antigo foi levado para o Arquivo de Lagoa, tendo sido lavrado um protocolo entre as entidades para que o espólio pudesse ser digitalizado, para o dar a conhecer ao público, mas que sofresse um processo de conservação e de estabilização dos documentos. Existem documentos desde o século XVI, que ficarão à sua guarda, até que a igreja reúna as condições necessárias para o reaver”, refere.

Segundo o padre Miguel Ângelo, depois de observar as enormes semelhanças entre as igrejas de Estômbar e Silves, o escultor de ambas deve ter sido o mesmo.

Espólio museológico de arte sacra em Ferragudo
“Quando estive em Ferragudo, tentei criar uma exposição temporária de arte sacra. Havia lá várias peças, algumas delas com interesse histórico bastante relevante. E era visitável, porque a igreja, no meu tempo, estava aberta. Curiosamente, não só a igreja, mas também a torre, que tinha sido reparada e de onde se tem uma vista privilegiada, como de todas as torres sineiras. Não sei se o meu sucessor continuou essa realidade, mas creio que sim. Nestes casos, o que se procura fazer, entre o município ou a freguesia e a igreja é assegurar uma pessoa e também beneficiar a igreja e a comunidade. Ferragudo tem um potencial muito grande e agora, que não existem aquelas receitas que havia no passado – sem pensar aqui na dimensão dos cifrões, mas sobretudo em assegurar a continuidade dos edifícios – seria uma fonte de receita”, explica.

O padre Miguel Ângelo refere que, quando se entra pelo caminho do património e da sua história, há que criar estratégias que o possam potencializar. “Mas é um trabalho que tem de ser feito entre entidades”, conclui.

O que é certo é que isso não aconteceu e atualmente a igreja está fechada a maior parte do dia, apesar de o local ser visitado por muitos turistas.

“Comungar sempre”
Maria José, mais conhecida por D. Zezinha, é catequista em Estômbar e conta alguns episódios da sua convivência com o padre Miguel Ângelo.
“Sou divorciada e vivo em comunhão de facto com um senhor, há 12 anos. Desde que me conheço, sempre trabalhei para a igreja. Quando me juntei com este senhor, o padre que aqui estava disse-me que não queria que eu fizesse nada na igreja. ‘Desaparece daqui e não me apareças mais’, foram as suas palavras. Claro que nunca deixei de aparecer, porque nunca fui à missa pelo padre, mas por aquilo em que acredito. Quando o padre Miguel chegou, pediu pessoas para os serviços e eu não fui logo. Mas, depois, pedi para falar com ele e expus-lhe a minha situação. A resposta dele foi: ‘Zezinha, tem de fazer alguma coisa’. Não dei logo catequese, porque naquele ano o horário já estava feito, mas fiz leituras, ofertórios e tudo o mais que era necessário”.

Quando terminou o ano catequético, voltou a ser catequista. Mas o episódio que mais marcou a D. Zezinha e que contou ao Lagoa Informa com os olhos ‘em água’ é digno de ficar para a posteridade como um exemplo do verdadeiro pastor.

“Eu ia sempre à confissão, mas não ia à comunhão. Numa Quinta-Feira Santa, na missa de lava-pés, quando se comunga com o vinho e o pão, eu estava, como de costume, cá atrás, junto à porta. Ele desceu o altar, veio direito a mim e deu-me a comunhão. Quase desmaiei de emoção e de alegria e só não caí, porque a pessoa que estava a meu lado me agarrou. Comunguei e ele disse-me que era para comungar sempre, porque Jesus veio para todos. Entretanto, ele partiu e veio o padre atual. Contei-lhe o que tinha acontecido e ele disse-me para continuar, pois sempre fui uma mulher da igreja”, refere.

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