Paixão pelas corridas é tanta que até casou no Autódromo

Texto: Hélio Nascimento | Foto: D.R.
A história de vida de Beatriz Águas é uma prova de que se conseguem alcançar bons resultados partindo de premissas da juventude, assentes em sonhos e objetivos que, por mais difíceis que sejam, tornam-se possíveis de concretizar. Pois bem, a portimonense, hoje com 26 anos, desempenha um dos cargos de maior responsabilidade no Autódromo Internacional do Algarve, situado na freguesia da Mexilhoeira Grande, sendo a diretora de prova e responsável pela supervisão de tudo o que ocorre no circuito em dias de corridas e até de treinos.
“Os meus pais são comissários de pista no Autódromo e aos fins de semana, quando eles iam fazer as provas, eu acompanhava-os. Ficava na bancada, por cima das boxes, com acesso à reta da meta. Na altura, tinha aí uns 12 anos”, conta Beatriz, evocando memórias que nunca se vão apagar. Era uma presença constante, de tal modo que não tardou a despertar a atenção e curiosidade dos responsáveis.
“Já todos me conheciam, e a Ana Seabra, então com funções de chefia no AIA Motor Clube, disse que precisavam de alguém para ajudar, para servir cafés e distribuir papéis e documentos”. Foi assim que tudo começou, entre 2010 e 2011. “Ainda entreguei papéis durante algum tempo, mas aos 16 anos assumi o papel de ‘runner’, estabelecendo a comunicação com as equipas e continuando a distribuir documentos”.
Pouco depois Beatriz passou a secretária de corrida, tratando de toda a documentação e fazendo a gestão dessa atividade, entregando-a aos diretores de equipas, pilotos, ‘runners’, oficiais de prova, quadro oficial e ‘media center’. Paralelamente tinha também a seu cargo aspetos administrativos, “basicamente o ‘check in’ dos pilotos para as provas e a confirmação dos números e dos ‘transponders’”, um dispositivo de comunicação eletrónico.
Cortar o bolo de noiva em plena reta da meta
Funcionária numa loja de mediação de seguros em Portimão, a jovem tinha todos os fins de semana ocupados com aquilo que mais gostava e lhe dava prazer. “Em 2021, o Daniel Matos, diretor desportivo do circuito que trabalhava com Délcio Santos, o diretor de prova, perguntou-me o que eu mais queria fazer. ‘Quero ser o Délcio, respondi’. Ficaram ambos espantados com a minha convicção e quiseram saber se era a sério o que eu dizia”.
Na altura, Délcio procurava um adjunto e fazia todo o sentido que fosse Beatriz a integrar a equipa. “É daí que surge o convite e a oportunidade para integrar a equipa da ‘Race Control’. O Délcio saiu em abril de 2023, por motivos profissionais, para fazer corridas no estrangeiro como diretor de corrida, e eu assumi o cargo dele, fazendo a transição”. Nesse mesmo ano de 2023 passou a diretora de prova, que é quem gere o que se passa no circuito e que o conhece como poucos, tratando da comunicação e gestão operacional dos meios, seja em relação a motos ou a carros.
Beatriz atingiu assim um patamar só ao alcance dos mais predestinados e estudiosos da matéria, algo que a deixa realizada com todo este percurso, embora não rejeite a ideia de que há mais para alcançar. Quiçá corolário desta ascensão, protagonizou um momento singular em 30 de novembro do ano passado: casou no Autódromo e cortou o bolo da noiva em plena reta da meta.
“O Autódromo é o sítio onde me vejo há muitos anos, e, por isso, fazia todo o sentido celebrar a minha união, mais a mais com a oportunidade de cortar o bolo na reta da meta”, assume a felizarda, cujo ‘copo de água’ foi servido no restaurante contíguo. “O meu marido também gosta das corridas, mas sem exagero. Os convidados? Foi uma surpresa, na medida em que, a dada altura, pedimos que nos seguissem para cortar o bolo. E assim foi, mas todos ficaram espantados quando abrimos o portão de entrada no circuito e invadimos a pista, em plena reta da meta”.
A primeira corrida de Superbikes
Carros ou motos? Beatriz adora ambas as corridas e “até hoje ainda não consigo responder”. Se, por um lado, esteve sempre habituada a motos e é proprietária de uma, por outro não fica indiferente às muitas especificidades dos carros, assinalando diferenças entre uma coisa e outra. “São dois amores”, resume, com um largo sorriso, durante a conversa com o Portimão Jornal.
Em termos de fascínio, a diretora de prova fala de um “ambiente eletrizante” e do facto de cada corrida ser distinta e “ter uma ‘pica’ especial”. Em todas existe um desafio e nenhuma é igual, salienta, dando conta de “muito trabalho e de uma concentração extrema” para levar a cabo a sua missão, em que se exige uma cuidada preparação, desde a leitura dos regulamentos ao agilizar todos os meios com o chefe de pista, confirmando se está tudo operacional.
Das inúmeras provas a que já assistiu e, entretanto, dirigiu da ‘sua’ ‘Race Control’, a jovem não tem dúvidas em eleger a que melhores recordações lhe proporciona. “Tenho um carinho enorme pela primeira corrida de Superbikes. Em 2023 estreei-me no MotoGP, com supervisão do Délcio, e, depois, nesse mesmo ano, em setembro, tive a primeira prova de Superbikes como responsável direta. Acho que a ficha me caiu nessa altura, tipo ‘agora é comigo e à séria’, daí guardar esta memória com especial carinho”.
Beatriz congratula-se pelo facto de até à data nada de grave ter ocorrido no circuito e evoca, a propósito, Paulo Pinheiro, o ‘pai’ do Autódromo, que faleceu em julho do ano passado. “Os anjinhos da guarda estão connosco. Foi assim no tempo do engenheiro Paulo e agora, infelizmente, temos mais um, que nos protege”.

A postura adequada para receber pilotos famosos
A equipa que cuida de toda a segurança no Autódromo é vasta, tema que já foi reportagem do Portimão Jornal, englobando o pessoal do ‘rescue’ (salvamento e resgate das pistas quando há acidentes), gruas, manutenção, ‘pit lane’, técnicos, comissários.
Beatriz está no ‘Race Control’, o centro nevrálgico do circuito e responsável pelo monitoramento e supervisão dos treinos, qualificações e corridas. Neste posto tem-se a visão de toda a pista, através das câmaras que gravam digitalmente o que se passa em tempo real. Em caso de alguma dúvida, seja um toque ou um acidente, revê-se as imagens para atuar em conformidade.
“No ‘Race Control’ somos sete ao todo. O Jorge e o Diogo estão nas gravações, o Artur no minuto a minuto (tudo o que acontece na corrida é passado nesse minuto a minuto), quem comunica ao rádio é o David e o Luís Azevedo faz a gestão de meios. Temos ainda o Nuno Caracol, que vai ser certamente o meu diretor de prova adjunto”, enumera.
Durante a sua atividade Beatriz lida com inúmeros participantes, de diversas áreas, mas não vê grandes diferenças entre os estrangeiros e os portugueses. “Estamos todos a trabalhar para o mesmo. Há pessoas mais ‘picuinhas’, é verdade, mas não há distinção de tratamento”, garante, antes de falar dos pilotos, num comentário pleno de autenticidade. “Trato todos como famosos, colocando acima de tudo a certeza de que, se eu fosse famosa, gostaria de ter a minha privacidade. Por isso, quando vejo o Marc Márquez ou o Miguel Oliveira no ‘Race Control’ torno-me imparcial e tenho a postura que julgo adequada”.
Beatriz tem uma Harley, que conduz mais quando vai para o Autódromo e menos durante a semana quando se desloca para o trabalho. “Se nunca pensei em correr? Vou ser sincera, quando era miúda e ia ver as corridas, dava por mim, durante o Nacional de Velocidade na categoria dos minis, a desejar estar na pista. Cheguei a chorar, porque queria lá estar, mas depois essa fase passou e continuo plenamente satisfeita”.
Um papel que merecia mais atenção
As grandes provas realizadas no Autódromo, já se sabe, atraem milhares e milhares de pessoas e têm um mediatismo incrível. Beatriz reconhece que “o patamar é diferente e a exigência é maior entre corridas nacionais ou as grandes internacionais”, mas, ressalva, “o meio de atuação é o mesmo, a segurança está acima de tudo e todos são tratados da mesma forma”.
A preparação para a corrida, obviamente, obriga a outros cuidados. “Às 6h30 já estamos no circuito, para, entre outras coisas, colocar 280 a 300 comissários na pista e ver se tudo está operacional até ao derradeiro timing”.

Num Campeonato Nacional, por exemplo, o ‘Race Control’ alberga a própria equipa, mais uns três ou quatro comissários e o diretor de corrida adjunto, enquanto num MotoGP ou Mundial de F1, além das mesmas presenças, “temos equipa médica, responsável do INEM, dos Bombeiros, ou seja, mais elementos, daí que chegamos a ter todas as cadeiras ocupadas nas grandes corridas”.
Beatriz considera que todos os ‘heróis dos bastidores’ do Autódromo desempenham “um papel que merecia mais atenção”, em especial o dos comissários e técnicos, porque “sem eles não havia corrida e o trabalho conjunto é precisamente esse, no sentido de que a corrida aconteça”. O público, sublinha, “nem sempre tem essa perceção e até há quem pense que o ‘Race Control’ é a Torre VIP”.
A mãe continua a ser comissária, mas o pai tem agora pouco tempo livre devido à sua atividade profissional. Beatriz ‘manda’ na mãe e discute sempre com ela, no bom sentido, após cada prova, analisando ambas o que correu bem, menos bem e o que há a melhorar. O papel das mulheres no mundo do automobilismo e motociclismo, acrescenta ainda esta portimonense que nasceu em Alvor, é cada vez mais significativo nos postos de maior responsabilidade.
Uma licença de alta responsabilidade
Em Portugal apenas três pessoas têm licenças de diretores de provas de motos internacional e Beatriz possui uma delas, sendo mesmo a mais jovem a nível internacional. “É o segundo ano que tenho esta licença de motos. Temos formações anuais e, de dois em dois anos a licença tem de ser renovada, com um teste, que implica muito estudo, porque temos mesmo de passar” nesse exame, explica. Estas ações decorrem sempre no estrangeiro e ainda no passado mês de fevereiro esteve em França, num seminário da especialidade.
Subir na carreira sempre no horizonte
“Todos nós gostaríamos de subir na carreira e eu, sim, vejo-me a dar o salto”, confessa Beatriz, com um brilho nos olhos. Por exemplo, “gostava de ingressar na estrutura de um MotoGP ou Superbikes e até vai haver o Mundial feminino a acompanhar as Superbikes, quem sabe…”, deixa escapar, revelando ambição. Mas o Autódromo, vinca, “será sempre a minha casa e algo muito especial”. Continuar é, pois, o principal propósito, fruto de uma satisfação plena, mesmo com “alguns atalhos ou constrangimentos pelo meio”. E com o dado curioso de boa parte dos seus amigos não terem bem a noção “do que faço no Autódromo” e de até perguntarem o que lá vai fazer todos os fins de semana. “É diretora de prova, responde o meu marido”.