Rádios locais mantêm viva proximidade

Ligar o rádio e sintonizar a estação preferida vai sendo um hábito que começa a entrar em desuso, sobretudo entre os mais novos.
A evolução das novas tecnologias, onde tudo cabe num mero telemóvel, veio tirar alguma da magia de outrora e ‘roubar’ espaço a um meio de comunicação que em vários períodos da história se mostrou essencial para as populações.
Há, porém, no Algarve algumas rádios que teimam em não se calar, por carolice de pessoas que persistem na missão de dar informação e entretenimento de proximidade. Não é um caminho fácil e é pautado por muitas dificuldades que só o grande amor à camisola leva a que estas vozes se mantenham a emitir todos os dias. Vão-se mantendo nomes como Gilão, Alvor FM, Lagoa, Portimão, Kiss, Horizonte, Universitária do Algarve e pouco mais.
Missão de proximidade
Para Sérgio Baptista, presidente da direção da Rádio Gilão desde fevereiro, sediada em Tavira há vários anos, o que distingue esta emissora, à semelhança de outras em Portugal, “é a proximidade, a afetividade, a família”, porque alguns dos ouvintes até os tratam assim.
O impacto imediato da notícia, “da informação, o entretenimento… são as pequenas coisas que não têm grande importância para os órgãos nacionais, mas que são muito importantes para nós, desde o corte de água ou de trânsito na Rua X ou Y. É também a edição, o contacto mais direto com a população, o famoso programa de ‘Discos Pedidos’”, enumera. No caso desta rádio, o responsável admite que o ouvinte está na média de idades a partir dos 40 anos.
No fundo, também na opinião de Ricardo Coelho, responsável pela Alvor FM, no outro extremo do Algarve, mesmo no que toca à inserção de publicidade são, na maioria, os mais velhos que ‘ajudam’ as rádios a sobreviver, pois reconhecem o “valor que esta teve para eles noutras alturas”, quer a nível da história do país, mas também porque “quando começaram a funcionar foram muito ajudados através das rádios”, argumenta. Muitos anunciantes, por essa razão, sentem quase uma ‘obrigação’ em continuar a apoiar.
A verdade é que tal como o papel, no caso da imprensa escrita, muitos foram aqueles que anunciaram a morte da rádio. Foi sobrevivendo e assim continua. “A questão é que a rádio soube evoluir, mesmo sem apoios, mas já associou imagem e muitas outras ferramentas até para atingir segmentos mais jovens”, afirma Júlio Ferreira, também um dos rostos que ainda persiste na Alvor FM.
Começou na já extinta Rádio Barlavento, dirigida por Hélder Nunes, que detinha o jornal regional com o mesmo nome. Era ainda um ‘miúdo’, chegado aos estúdios pelas mãos do professor João Ventura, que desafiou o diretor da rádio a deixar os miúdos fazerem um programa. “Estava lá o Mário Jorge, o Gonçalo Barata e quando lá fui fazer o primeiro programa, éramos três ou quatro… Mal abro a boca ao microfone para gravar, por causa da voz grave, o Mário Jorge diz-me: ‘Vai aparecendo’. E eu fui. Quando viram que estava mais ou menos, isolaram-me num programa à noite”, recorda. E assim foi, até hoje.
Já Ricardo Coelho é daquela geração que foi tomando contacto com as ‘rádio pirata’, mas só entrou na Alvor FM de pedra e cal depois da legalização, no final dos anos 80. Tal como Sérgio Baptista, na Gilão. “Trabalho na rádio desde 1989, ainda que tenha tido outras atividades paralelas, mas tenho-me mantido sempre na rádio. Isto é difícil e andamos sempre com a corda no pescoço, mas quem está aqui é por paixão”, assegura o técnico de som. O legado, esse, há de ficar para alguém.
Captar novos públicos
O problema é que os mais novos não estão para aí virados e, cada vez mais, é difícil atraí-los, quer como ouvintes, quer como colaboradores. António Batista, da Rádio Lagoa, afirma que esta estação vai “criando conteúdos que vão ao encontro aos desejos dos ouvintes”, mantendo, como refere o Estatuto Editorial, “uma grelha de programas” que englobe “diferentes correntes de opinião, do nível cultural, social e etário dos ouvintes, sem deixar de preservar e promover a língua portuguesa”.
“A juventude até ouve desde que tenha motivos de interesse. Se um amigo passa a informação que em determinado dia, àquela hora, vai estar em direto, aí conseguimos tê-los como ouvintes. Temos uma colaboração com a Associação de Pais da Escola Secundária de Tavira em que eles fazem um programa aqui. São duas horas semanais e vão rodando nos convidados. É também uma forma de terem interesse e quem os ouve são os colegas, os irmãos, os primos…”, descreve Sérgio Baptista. “Têm outras perspetivas. Usam o ‘Spotify’, fazem ‘playlists’ e é o que ouvem, mesmo os jogos vão aos canais que transmitem e pronto”, adianta ainda Sérgio Baptista.
No outro lado, há as colaborações. “Pessoal novo para fazer programa? Vai rodando. Todos os anos temos estagiários e há até um ou outro que consegue realizar algumas coisas, mas eles agora já têm uma mentalidade diferente. Já não há o amor à camisola. A maior parte nem quer ficar em Portimão. Os que são de cá vão para fora e outros vêm da universidade, mas acabam por sair da cidade”, explica, Ricardo Coelho. Grande parte sente-se, aliás, mais atraído pela televisão.
A Alvor FM tem uma estrutura que varia entre os 12 e 15 colaboradores, incluindo o pessoal de desporto, com os relatos dos jogos, uma das mais valias da emissora, a par do Choque Frontal ao Vivo.
E mesmo assim, desde sempre a Alvor FM tentou marcar a diferença, dedicando-se a uma faixa etária mais jovem, com objetivos mais arrojados para a época. Os tempos têm vindo a mudar e a emissora vai tentando adaptar-se. Esta geração passou pelos vinis, pelos CD até chegar agora aos computadores e sem adivinhar o que ainda pode estar por vir.
“Os jovens praticamente não veem televisão. Eles ouvem ‘podcasts’, veem vídeos e esse até foi um caminho onde a rádio se conseguiu manter”, admite Júlio Ferreira que considera que havia que inovar e ganhar mais mercado. Desde que haja condições mínimas, porém, o locutor considera que é possível cativar quem já faz rádio há muito tempo ou até atrair quem já não faz há algum tempo. “Se falarmos na Alvor FM, na Rádio Gilão e outras locais, a verdade é que vamos sempre dar às mesmas caras”, refere.
É a carolice de continuar e não deixar morrer os projetos, mesmo sem ajudas, sem apoios e só com contas para pagar.
Taxas e ‘taxinhas’
“O custo do trabalho, os impostos, as taxas, as taxinhas, os direitos, a que agora acrescem os conexos, aos de autor… É um somatório de pagamentos e as receitas não são por aí além. Há aqui um ponto de equilíbrio, mas não nos permite grandes aventuras. Atualmente são dois funcionários a manter a rádio e, neste momento, não se consegue contratar mais ninguém, porque não temos condições para tal”, descreve Sérgio Baptista.
Uma realidade que também é apontada por Ricardo Coelho, na Alvor FM. “Cada vez a rádio tem mais taxas e impostos. Se falar com as outras rádios vão dizer-te exatamente o mesmo. Além disso, saímos agora de umas eleições, em que não falamos de política aqui. Se não somos bons para sermos como os outros (nacionais) também não servimos os promover e esses valores das campanhas, para as rádios que têm muito pouco dinheiro, são muito importantes. Por isso, só daremos espaço às autárquicas”, assinala.
As rádios locais vão desaparecendo e é a lei do mercado a funcionar, em que as “grandes empresas vão absorvendo as mais pequenas. Destas, mediante as dificuldades que existem no dia a dia, umas aguentam-se, outras não. Há outras que infelizmente encerram e são absorvidas. Quando não há um apoio financeiro que nos ajude a sobreviver, é assim”, partilha Sérgio Baptista.
São equipamentos pesados. “O emissor, em preços muito por baixo, custa 15 ou 16 mil euros, um recetor 1000 a 1200 euros, uma torre com 57 metros como nós temos, mais cabos e antenas, também é uns 15 mil por baixo. Uns headphones de estúdio são 170 cada um no mínimo, o microfone com áudio razoável cerca de 200, e pagamos IVA de 23 por cento. É muito”, contabiliza o responsável pela Rádio Gilão.
Passividade do Estado
Em Lagoa, são destacadas também como dificuldades “a falta de publicidade, único meio de subsistência, seja de privados, seja de publicidade institucional”, num panorama generalizado. O Estado devia, por isso, não ser um elemento passivo e contribuir de forma ativa para a sobrevivência e subsistência de meios de comunicação local que fazem um trabalho que nenhum outro faz.
“Atribuição equitativa da publicidade institucional às rádios locais e o reconhecimento do serviço público que as mesmas prestam às populações onde estão inseridas”, divulgando atividades das fundações, associações e instituições locais, regionais e até nacionais, que recorrem à rádio local por reconhecerem o seu papel na divulgação da informação, são apenas alguns exemplos. A exclusão das rádios locais nos tempos de antena para as eleições legislativas, presidenciais e europeias também não é compreensível, bem como o facto de entidades relacionadas com o Estado, apenas reconhecerem a existência destas emissoras para enviar notas de imprensa, mas recorreram aos nacionais para publicitar eventos, acrescenta António Batista.
Sérgio Baptista, por sua vez, assinala que deviam ser apoiados revendo as despesas de energia, telecomunicações, deslocações. “Em relação aos direitos conexos, houve uma proposta de lei apresentada na Assembleia da República, julgo que pelo PAN, que considero uma excelente ideia. Existe em Portugal a lei da cópia privada, um tipo de imposto, vá lá, que se refere a tudo o que tem capacidade de armazenamento. A proposta dizia que a verba anual dessa lei distribuída pela SPA e mais algumas entidades nacionais, devia ir buscar uma percentagem para distribuir pelos órgãos de comunicação locais e regionais. Infelizmente, foi chumbada”, esclarece.
Por sua vez, “em Portugal Continental não há subsídios das autarquias, mas nas ilhas dos Açores e Madeira há. Tem de ser através de um contrato de publicidade, o que é um completo transtorno burocrático. Levamos meses para efetuar um contrato, salienta Sérgio Baptista.
E até há programas de incentivos para modernização e outras categorias a que os órgãos de comunicação social podem recorrer, mas muitas vezes atrasam-se e complicam os investimentos.
“Desde janeiro que estamos à espera da entrega de uma parte de um incentivo do estado. Já estamos em junho. Esta candidatura é de 2022. Temos que ir ao banco pedir emprestado, pagamos os juros do empréstimo, e depois esperamos… Ora, ainda nos falta a terceira fase destes incentivos. Se na segunda já estão com quatro ou cinco meses de atraso, imagino agora a terceira”, conta. Em relação aos incentivos, Sérgio Baptista considera que devia ser usado outro modelo, em que a entidade pagasse diretamente ao fornecedor o material e as rádios ficavam isentas de ter de recorrer à banca.
‘Apagão’ calou rádios locais
A maioria das emissoras de âmbito local não conseguiu assegurar a transmissão durante o último apagão, no final de abril. E mesmo depois, a ligação e sua estabilização não foi imediata, demorando alguns dias. “Quanto aos emissores, à semelhança do sistema informático, tivemos o cuidado de os desligar das tomadas e só os ligámos após a estabilização da energia elétrica”, não havendo registo de danos, com o retorno da eletricidade.
“Gostaria de referir, quanto ao facto de a grande maioria, senão a totalidade das rádios locais terem-se visto privadas de emitir, que esta privação teria sido ultrapassada se o Estado português não tivesse interrompido em 2000, apesar da insistência da Associação Portuguesa de Radiofusão (APR), um programa iniciado, no ano antes, em conjunto com a APR, com o objetivo de comparticipar a aquisição de geradores, reconhecendo o papel estratégico das rádios locais no sistema de Proteção Civil. Os últimos contactos com o governo decorreram no final de 2022, mas, apesar de ter sido esboçado em novo protocolo, infelizmente, acabou por não ter sido fechado”, recorda António Batista.
Ainda na sequência do ‘apagão’, a APR, recorda em comunicado “que a Lei de Bases da Proteção Civil é clara ao estabelecer que a atividade de Proteção Civil se exerce também através da informação e formação das populações, promovendo a sua sensibilização para a autoproteção e para a colaboração com as autoridades.
Nesse contexto, a existência de Rádios locais funcionais e operacionais em tempo de crise não é um luxo: é uma necessidade fundamental. A ausência de apoio público a estas emissoras compromete, objetivamente, a capacidade de resposta nacional em situações de emergência”.
À semelhança das demais rádios locais, a questão de dotar a rádio de um gerador, não é tão simples. “Vejamos o nosso caso: para mantermos a emissão no ar, na sequência de uma falha na energia elétrica só seria possível mantermos no ar a nossa emissão, nas duas frequências que detemos, se tivéssemos dois geradores (um em Porches a alimentar os 99.4 e outro em Ferragudo a alimentar os 100.0). E ainda tínhamos que ter um outro gerador com capacidade de alimentar os nossos estúdios em Lagoa”, explica António Batista à Algarve Vivo.
Luís Encarnação, presidente da Câmara Municipal, visitou a rádio nesse dia e percebeu a inviabilidade de emitir comunicados à população in loco. Por isso, o responsável adianta que era importante salvaguardar futuras situações, em que as rádios locais são um meio eficaz para passar informação em situação, também, de calamidade, mas também a nível de todo um conjunto de atividades de formação dos munícipes.
“Estamos conscientes de que o município de Lagoa está sensibilizado para esta falha e que está ou estará a estudar a melhor forma da Proteção Civil Municipal poder formar uma parceria eficaz com a Rádio Lagoa”, e “estamos esperançados que tudo fará, no mais curto espaço de tempo, para colmatar esta falha que nos impediu de mantermos a nossa emissão no ar”, concluiu.
E António Batista não tem dúvidas, este ‘apagão’ ocorrido “na Península Ibérica veio demonstrar que o meio de comunicação ‘rádio’ ainda é o mais eficaz para chegar junto das populações e tudo o ‘resto’ passa a ser, nesta eventualidade, mera ‘ficção’, quando o fornecimento da energia elétrica entra em colapso.
“Houve alguém que escreveu que o herói deste último apagão tinha sido a rádio e, de facto, foi, mas acho que o poder político ainda não despertou para esse facto. As únicas rádios a emitir foram a Antena 1, a Rádio Comercial, nacionais, porque têm condições para tal, mas o que estava a passar não era local, era nacional, por isso devia ter sido um grande exemplo para agora ajudarem as rádios locais. E dizer estes ‘tipos’ daqui a algum tempo, porque estamos numa zona sísmica, porque não estamos livres de um evento grave, vão ter um papel importante”, refere ainda Júlio Ferreira. A Alvor FM até tem um protocolo com a Proteção Civil, acrescenta Ricardo, muito bem elaborado, mas, na prática, não funcionou “porque não havia gerador”.
‘Choque Frontal ao Vivo’ é exemplo de inovação
Se há programa de rádio que ganhou muito destaque ao longo dos últimos anos foi o Choque Frontal, uma ideia de Ricardo Coelho e que transmitia na emissora. A tentativa de inovar levou Ricardo Coelho e Júlio Ferreira, numa breve conversa de partilha de ideias, a ‘cozinhar’ uns minutos um novo projeto.
Ricardo até tinha falado, no passado, com o Teatro Municipal de Portimão e, um dia num direto no Mercado Municipal, falaram sobre isso. Para ver o que dava, se bem pensaram, melhor o fizeram. “Para começar, podia isto correr mal, escolhemos fazer na Blackbox no TEMPO, que só leva 40 pessoas”, conta Ricardo entre risos. Aproveitaram o nome do Choque Frontal, da Alvor FM, e oito anos depois, este é um evento que ganhou estatuto e até, “se calhar, já é o Choque Frontal ao Vivo que leva a rádio atrás. Criou uma identidade própria”, afirma Júlio Ferreira. Há muitos que não acreditam, mas é um evento quase feito sem dinheiro e sem outros recursos.
Mesmo o Choque Frontal original já era algo diferente. “Era um dos três ou quatro no país que fazia algo deste género. Éramos tão poucos que até entre nós trocávamos coisas. Era eu aqui, o Henrique Amaro na Antena 3, o Fernando Alvim estava no Porto e tinha República das Bananas”, recorda Ricardo Coelho.
Aliás, a Rádio Alvor sempre se diferenciou por estas questões. “O pessoal novo ficou muito ligado à rádio, porque sabia que apoiávamos a malta do Algarve e em vários géneros musicais. É algarvio, tem qualidade, nós temos de passar, porque nos estamos no Algarve”, resume Ricardo. E um exemplo desta multiversatilidade é o Festival Acústico, o Choque Frontal, o Festival de Acordeão João César e a Chaminé D’Ouro, ambos com a Junta de Freguesia de Portimão.