Opinião AGIR: O personalismo queima

David Roque | Professor de história


Os costumeiros incêndios de verão trouxeram para o espaço mediático um velho problema da sociedade portuguesa, o voluntarismo. Não me refiro ao combate aos fogos nem ao desempenho das autoridades nessa questão, aponto sim o dedo ao sofrimento dos animais retidos em canis irregulares. Para além da efémera indignação moral, é obrigatório retirar lições sobre o funcionamento daquelas instituições civis, do seu mau funcionamento e das consequências que daí possam advir.

A expressão irregular não foi usada inocentemente, pois tem um fator de gravidade acima do ilegal: o ilegal é apenas um aspeto administrativo que nos diz pouco sobre o exercício de uma atividade; já o irregular diz-nos muito sobre ela, sobretudo que não cumpre regras e, ao não cumpri-las, poderá causar dano futuro. Se as entidades civis têm de cumprir leis não é porque sim e apenas para satisfazer o Estado, é porque devem reger-se por formas de conduta que vão ao encontro dos seus objetivos fundacionais e para que o seu crescimento tenha uma racionalidade saudável e benéfica. Com base nestes pressupostos, vejamos onde falharam estas entidades de improviso, para lá de toda a questão da legalidade.

Primeiro, estas formas de intervenção cívica são muitas vezes de base pessoal e não grupal, isto é, baseiam-se de boa vontade de uma pessoa que centra em si toda a dinâmica da organização. Os restantes participantes da entidade são encarados como voluntários e instrumentos úteis para cumprir essa vontade pessoal, que se dispõem a tal por amor à causa de fundo. Neste modelo, ainda que haja várias pessoas a agir, não se manifesta um sentido democrático dentro da orgânica de funcionamento, é a típica estrutura de liderança piramidal.

Segundo, o personalismo das hierarquias piramidais, que podem ter um excelente desempenho se o líder o for de facto e ter uma clareza de atuação exemplar e edificante, apresenta defeitos inegáveis. Os dois principais problemas deste modelo de serviço à comunidade: o desenvolvimento, mais cedo ou mais tarde, de comportamentos autocráticos que começam a alienar os próprios voluntários, causa abandonos ressentidos que fazem a instituição trabalhar sempre no mínimo dos mínimos; a não participação dos restantes membros de espírito inteiro no projeto, com ideias, modelos de gestão, formas de relação com a comunidade, articulação com as entidades oficiais…

Terceiro, por muito boa vontade que haja, o modelo personalista esgota-se por si, a ausência de democracia interna impede a existência de continuidade para além do chefe. A autocracia mata sucessores, e a não participação dos outros na gestão da atividade nega competências para levar o barco para diante quando falhar o chefe, ora porque este se cansa, ora porque está doente, ora porque morre, (destino que a todos chega), ora simplesmente porque está caduco e as suas decisões são manifestamente imprudentes.

As más condições materiais dos canis afetados pelos fogos advém da acumulação destes fatores, pelo menos do que foi percecionado através dos média. Não havia ali associativismo de base, nenhuma atividade grupal ou relação comunitária sólida. Alguém, vou acreditar que com boa intenção, fez do auxílio àqueles bichos a sua causa pessoal, sem procurar criar um projeto virado para fora, com regras e objetivos bem definidos. Será meritório num primeiro instante, mas carece do espírito são que nasce da vontade de nos ligarmos uns aos outros com regras democráticas.

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