Opinião: ‘O Luis Belém’
João Reis | Professor
Não sei quantos lagoenses, dos mais antigos, terão frequentado, por motivos profissionais ou outros, a zona ribeira de Portimão – o cais – nos idos tempos de 1950’s. Se os houver, recordar-se-ão desta típica figura do sítio e da época; aos outros, deixo esta história simples, simpática, verdadeira. Sem saber porquê, lembrei-me dele. Pouca estatura, seco de carnes, pele gretada do sol e do mar, descalço, como tantos outros. Teria 10-12 anos quando o conheci (toda a gente o conhecia) – ele morava na Rua da Barca e eu na Rua da Ribeira – quase vizinhos.
O Luís Belém (leia-se Blêm, com ‘sotaq algarvi’) estaria nos 60 anos, casado. Não conhecia uma letra ou número. Fora pescador, toda a vida – nos galeões, nas traineiras. Vida esforçada, desnoitada, mal paga. Depois, a idade e as forças começaram a desencontrar-se – idade aumentava, forças diminuíam. Mudou, então, de vida – só um poucochinho: adquiriu um bote, a remos, e passou a pescar no rio. Talvez recebesse algum ‘abono’ da Casa dos Pescadores. Que não daria nem prás sopas. Por isso, de manhã cedo, saía de casa com a cana de pesca, um rolo de sedelas com os anzóis já ‘empatados’ e protegidos por rolhas, o ‘xalavar’ de rede alcatroada, o baldinho com minhocas e ‘carnada’ (cabeças e tripas de sardinhas), que constituíam o isco, mais o farnel e o cantil da água. Atravessava o ‘Largo do Maurício’, olhava os armazéns das ‘artes’ de pesca – redes, cabos, bóias – e dirigia-se à ‘praça do peixe’ onde, na ‘venda’ do Venâncio, bebia um bagacinho, conversava com ‘camaradas’ e seguia pró botezinho. Excepto quando chovia muito, lá ia apanhando uns charrocos, uns cabozes, umas safias; às vezes, lá picava uma dourada, uma iró, um salmonete. Por vezes, no assoreamento da ‘coroa’, na margem esquerda onde estão, agora, edificações ligadas à actividade marítima, metia os pés à lama para trazer berbigões, ameijoas, ‘lagueirões’. A paciência, a dedicação e a necessidade eram, com a venda, recompensadas com uns escudinhos; outra parte da ‘teca’ era para consumo próprio. Vida difícil e irregular; mas o Blêm era sempre visto com expressão alegre, piada fácil, amigo do amigo.
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Um dia daquele Dezembro, princípio daquela década, comprou uma ‘cautela’ da lotaria do Natal. Fazia isso, às vezes. Saía sempre ‘branco’. Mas, desta vez, Santa Catarina, a padroeira dos pescadores, terá ajudado. A sorte bafejara-o. Foi o próprio cauteleiro que lhe anunciou: – “Olha aqui a lista, ganhaste 120 contos”. “Não! Tás a brincar!”. “Pobre não ganha tanto dinheiro…”. Mas ganhara! O respeitado Sr. Calado, empregado de escritório, seu conhecido e entendido em números, confirmou. (É difícil converter ou comparar aquele montante com a moeda actual. Mas se se disser que 120 contos, naquele tempo, pagariam uma casa, dá para perceber).
Depois do Ano Novo, acompanhado do amigo Sr. Calado, lá foi ao banco, sítio onde nunca entrara. Cumpriu as formalidades, o Sr. Calado assinou por ele, recebeu o prémio em numerário e regressaram a casa onde entregou todo o dinheiro à mulher, como sempre fizera.
Não voltou ao rio, por uns tempos. Tinha, com a companheira, tanto para fazer! “Olha – dizia – leva algum ao ‘mano’ Xico, que há meses que não pode trabalhar e a família tem de comer e pagar a farmácia”. “Amanhã vai a casa da Amélia, o moço dela está no liceu e quer continuar os estudos; precisa de roupa e livros”. “O Zé Gordo e a Custódia casaram há pouco tempo; vamos ver que mobília lhes faz falta”…
A lotaria daquele Natal saíra, na verdade, a toda a Rua da Barca! Toda a Portimão, pequena cidade, então, soube e comoveu-se com tamanha solidariedade e espírito de vizinhança. Para si, o Luís Blêm só quis mandar fazer um fato e comprar uns sapatos. E vestir a mulher com roupas novas. E, para os dois, uma garrafa de Champanhe… para lhe conhecerem o sabor! Bem aconselhados, ainda depositaram uma importância na Caixa. A velhice vinha a caminho…
A riqueza dele não era a do dinheiro; era a da bondade, da generosidade, da grandeza de sentimentos. Continuou pobre e deve ter voltado à pesca!
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Atravessamos, agora, tempos maus e circunstâncias difíceis. Precisamos TANTO de ‘Luíses Blêns’!!!
25/Abril/2021
- Artigo escrito sem a aplicação do novo acordo ortográfico