Um artesão de mãos livres

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Kátia Viola


O atelier chama-se ‘Mãos Livres’, um nome apropriado para quem faz da arte manual a sua vida. José Pedro Brito anda ‘nisto’ desde sempre e nem se vê a fazer outra coisa senão moldar matéria prima e construir as suas obras. “Artesão porquê? Não foi uma herança, embora a minha mãe tivesse jeito para as artes. Foi uma conquista pessoal. Desde miúdo sempre fui muito ligado a tudo que pudesse construir com as mãos e muito cedo comecei a dobrar garfos, queimar as pontas para furar a madeira, colocar num fio, fazer pulseiras e até utilizar o caroço da cereja”, começa por contar o artesão, enquanto procede a uma paragem na sua atividade diária. 

“Depois descobri o barro seco, juntava-lhe água, enfim. Fui para arte e design, era mais uma aprendizagem teórica, até porque aqui, no Algarve, não havia nada do género, apesar de Lagoa ser uma terra rica em olaria, sobretudo na zona de Porches. Mas nem uma escola existia, para lá do local onde estava o mestre Rodrigues”, prossegue José Pedro, que tem toda a história fresca na memória.

Nesta sequência, evoca os primeiros tempos na FATACIL, onde, com 16 anos, ajudava a montar os stands. 

“Fiquei fascinado com tantas peças, até que um dia desisti da escola. Já chegava de teoria. Fui para o ‘fundo de desemprego’ e conheci a psicóloga Antónia. Expliquei-lhe o turbilhão que existia na minha cabeça e ela deu uma ajuda tremenda”. É assim que o nosso artesão ruma às Caldas da Rainha, onde tinha aberto um centro de formação profissional. “Era complicado entrar. A zona tinha muitas fábricas e formava pessoas, para desenvolver trabalho, mas os locais tinham preferência”. 
 
Artesão a 200 por cento 
O sonho, no entanto, ganhou forma. Entraram no centro três algarvios, um deles José Pedro. Corria o ano de 1987. “Era o ideal para mim. O Cencal (Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica) era a primeira escola do género e estive lá dois anos, muito intensivos.

“Tinha um subsídio e fiz formação de modelador, ou seja, foi o começo que me abriu mais a mente. Havia jeito para o desenho e para pegar na madeira, mas comecei então a trabalhar a grés”, certamente no pontapé de saída daquilo que continua a fazer até aos dias de hoje. 

Facilidades, todavia, é que nem pensar. José Pedro não tinha curso de vidrados ou cozedura e teve de comprar um forno a prestações, com a grande ajuda da tia Mimi. “Da família, foi ela que sempre me incentivou. O meu pai dizia que não dá nada…só que o sonho nunca fechou e fui batalhando”. A grés, um material feito a partir de argila de grão fino, plástica, sedimentária e refratária, que suporta altas temperaturas, como a cerâmica, passou a ser parte integrante da sua vida. 

“Depois casei, tive filhos, e, como a minha mulher era da zona da Beira Alta, tive de arranjar casa e pedir um empréstimo. Precisava de outro emprego e trabalhei 19 anos numa firma de rent-a-car, ao mesmo tempo que fazia a FATACIL”.

Na carismática feira de Lagoa, andou quase 30 anos, desde o tempo em que “era o puto que acabava a escola e ia para lá, porque a Câmara Municipal de Lagoa contratava, entre aspas, adolescentes durante mês e meio, para montar a FATACIL”.

José Pedro conheceu então muitos artesãos. “Era puro artesanato e via tudo a evoluir. Entretanto, a firma de rent-a-car faliu. Não quero mais patrões, disse cá para mim. Agora vou ser artesão a 200 por cento”. 
 
Feiras de norte a sul   
Estava decidido. José Pedro tinha na altura 43 ou 44 anos e um amigo, Napoleão Mira, disse-lhe “compra uma carrinha e vai à tua vida”. Sem hesitar, o artista fez-se à estrada e percorreu feiras de norte a sul do país, tendo um calendário próprio, no qual fazia as suas escolhas e tomava as opções sobre os melhores locais a visitar e expor.

“O meu trabalho é peça a peça, sem pressão, sempre sozinho. Se calhar, não me adaptei a ganhar muito dinheiro… fazia as feiras, porque para lojas não vale a pena, querem 50 por cento do preço, é impossível”, salienta. 

A pandemia, naturalmente, deu “um estalo” em muitos dos planos de José Pedro. “Espero que para o ano tudo melhore. Ultimamente, vinha apostando num outro tipo de feiras, mais genuínas, e desisti da FATACIL, porque começou a ser um espaço mais de gastronomia e espetáculo e o artesanato ficou de lado. Davam-me 18 contos para ir ao certame, sou desse tempo, mas saí de lá a pagar 350 euros pelo stand. Só que nunca quis borlas”, acentua, agora mais resignado.  

“Descobri terras que dão mais valor aos artesãos, casos de Loulé e Tavira, que têm clientes conhecedores. Agora, faço Cabanas, Conceição de Tavira, feiras pequenas, mas que valem a pena. Vou à Dieta Mediterrânica e a São Brás de Alportel, à Feira da Serra, que, aproveito para dizer, espero bem que volte com outras ideias. É que há quem vá ao chinês e diga que é arte”, protesta José Pedro, sem papas na língua quando tem de criticar ou enfatizar certos procedimentos. 

 Rico… só de espírito 
José Pedro lamenta que em várias cidades algarvias, “como Portimão”, não haja o verdadeiro artesanato. “É a segunda profissão mais antiga do mundo, do tempo da Pré-História. Por exemplo, Loulé aposta a sério, com o ‘Loulé Criativo’, um trabalho espetacular, com os tradicionais e novos artesãos, mais os designers. Senão crescermos com isto…é que a malta nova não liga muito, porque nesta atividade não se fica rico. Só se for de espírito”. 

O seu trabalho em grés, cuja pasta dá para ir ao forno e depois se ‘transforma’ em obras únicas e maciças, é dedicado exclusivamente a peças decorativas. “Trabalho com colecionadores de presépios, de Santo António, mochos e agora até de gatos, ouriços e camaleões. Faço de tudo um pouco, desde que me dê prazer”. A inspiração surge porque “sempre fui criativo”, mas há situações embaraçosas, como sucedeu na fase do confinamento, em que “nem feiras havia”. 

Regra geral, são os estrangeiros os mais interessados. “Compram bem e são a base da minha clientela. Para o português é caro, só que o meu material é de exceção. Uma cozedura a 900 graus, vai depois outra vez ao forno, a 1200, com os óxidos e os vidrados. Demora até a peça ficar feita”, justifica José Pedro, mostrando uma peça à nossa reportagem, de uma mãe deficiente, sem pernas, mas que queria ser mãe a todo o custo.

“Foi uma notícia da televisão que me inspirou e resolvi fazer esta homenagem. Tive de me adaptar também a trabalhos pequenos, porque as peças grandes podem custar de 200 a 300 euros e estes gatinhos vendo-os a 15 euros”, aludindo ainda a peças de encaixe, mais fáceis para o cidadão estrangeiro transportar. 
 
Fornos em Lagoa e atelier em Portimão
José Pedro funciona em Lagoa, onde tem os fornos, e também em Portimão, onde está sediado o seu Atelier ‘Mãos Livres’, perto da rua do comércio. “Em Lagoa é a minha base, na garagem emprestada pela tia, que vou decorar agora à minha maneira. No atelier há muita luz, o que é indispensável”, diz o artesão, que nasceu em Coimbra, “por acidente”, como gosta de salientar. “O meu pai é de Lagoa e a minha mãe de Estremoz. Tenho três irmãos e vivi em Beja, Estremoz, Elvas e, já no Algarve, em Loulé, Portimão e Lagoa”.    

Aos 52 anos, com um segundo casamento, tem dois filhos e uma neta. “Todos nos ajudamos uns aos outros, o que é importante. Desejo é que a minha neta possa vir o mais rápido possível para aqui, para se sujar”, brinca José Pedro, pronto a passar o testemunho se for caso disso. Para trás já estão muitos anos de arte e um extenso rol de participações em feiras por esse país fora.

“Cheguei a fazer 30 feiras no Verão, mas agora estou mais seletivo”, acrescenta o homem que está inserido na Associação de Artesãos de Monchique, como convidado na Fóia. “Somos 18 e é um trabalho espetacular”. 

O único apoio, aliás, surge destas associações, porque “individualmente é complicado”. Na circunstância, dá conta de um pedido para vender na Praia da Rocha, que não conseguiu “porque pedem muito dinheiro para alugar um espaço”. Assim, reconhece, não dá. “Ainda lá vendi dois anos, mas tive problemas com os vizinhos. Quando passa a polícia, todos fogem…ficávamos nós, aí uns quatro, que estamos legalizados, mas há pessoas que julgam que somos do tipo que não querem trabalhar, às vezes até pensam mal de nós. O meu pai também não acreditava”, ironiza, com a simplicidade e o orgulho de quem conseguiu triunfar na profissão escolhida. 

O público não está educado para apreciar artesanato 

José Pedro sublinha que “às vezes é difícil sobreviver, sobretudo porque o público não está educado para apreciar o artesanato” e as obras nem sempre são valorizadas. “É caro? Só pode ser, porque tem custos e não é toda a gente que o faz. Mas tem de ser artesanato verdadeiro. Sei que toda a gente tem direito à vida, mas não misturem as coisas. Se pagar 300 euros num stand e o vizinho, que está ao lado, vende mais porque é comercial e foi aos armazéns do chinês buscar pulseiras de cortiça e por aí…”, lamenta o artista. “Volto a falar de Loulé, que está a dar cartas, já recebe estrangeiros e tudo. Enquanto não metermos na cabeça que é preciso qualidade no trabalho, não saímos da cepa torta”, adianta. Depois, sobre a tal educação que preconiza, explica que chegou a dar aulas a miúdos, que, ao início, até tinham medo de sujar mãos. No entanto, “acabaram por avançar com o projeto, oxidaram, limparam, vidraram e no final ficaram todos maravilhados”.  

“A liberdade tem de ser total” 
 
“Não me vejo a fazer outra coisa e por algum motivo dei o nome de ‘Mãos Livres’ ao meu atelier. A liberdade tem de ser total”, argumenta José Pedro, garantindo que o seu passatempo está “sempre ligado à arte e à cerâmica”. As ideias, essas, surgem em qualquer momento e em todos os lugares. “Pode ser numa viagem, numa conversa, na praia ou numa caminhada. Ou a ver um programa”, atesta, confessando que adora ir à praia dar um mergulho quando está sem inspiração. “Fecho a porta e regresso meia hora depois”. Por fim, um apelo: “O artesanato precisa de ser acarinhado. É preciso mais cultura. E há tanta gente de valor, como na Serra de Monchique, onde se trabalha tão bem a verga e a cerâmica. Quero acreditar que a pandemia fez bem a muita gente para se reinventar esta arte”. 

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