Floripes Grosso e Francisco Santos, um casal de antigos conserveiros

Texto e foto: José Garrancho


Algumas profissões que ocuparam grande número de pessoas, sobretudo mulheres, durante muitos anos, começaram a desaparecer, há cerca de meio século. Hoje, fala-se muito nelas, embora a maioria das pessoas que as referem não as tivesse conhecido verdadeiramente.

O Portimão Jornal conversou com um casal de octogenários, Floripes Pacheco Grosso e Francisco Santos, antigos operários na indústria conserveira, para que partilhassem um pouco das memórias dessa vida árdua e sem horários.

Da agricultura para a indústria
Floripes nasceu no Morgado de Arge, onde completou a escola primária. “O meu princípio foi no campo, na Quinta Azul, no Odelouca. Ia dali num trator, com três ou quatro homens, para o Lobito, em Lagoa, cortar as ripas para segurar as videiras e as uvas não caírem. E também, na quinta, era eu quem ia buscar a água para dar aos trabalhadores, ou qualquer coisa que faltasse, à casa do capataz. Nessas alturas, passava pelas árvores e enchia a barriga de fruta”, recorda.

Entrou na fábrica de São José com 15 anos, tendo de sair de casa, no Odelouca, às seis horas, para começar a trabalhar às oito, fazendo o percurso a pé, através do Morgado de Arge.

“E nunca cheguei atrasada, embora não houvesse relógio em casa. A minha mãe orientava-se pela estrela da manhã, para nos levantarmos. À noite, chegava a casa por volta das 21 horas, muitas vezes mais tarde, e ainda tinha de lavar a roupa de trabalho e esperar que secasse, para vestir na manhã seguinte. Estive muitas vezes a lavar a farda, no poço, à uma da madrugada”, garante.

Mais tarde, comprou uma bicicleta a pedal, o que tornou as viagens mais fáceis e mais rápidas. “Mas, no inverno, chegava com a roupinha toda molhada, pois não havia capas de plástico, naquele tempo. Tinha de despir aquela e vestir a farda. E, à noite, era colocar junto ao fogo de lenha para enxugar”, descreve.

Também Francisco começou muito novo a vida de trabalho, a apanhar mato, fazer alqueives, cavar figueiras, varejar alfarroba. “Trabalhei muito tempo na horta do Calado, onde hoje estão as Finanças. Ele tinha um lagar nos Montes de Alvor, onde também laborei, chegando a sair à meia-noite. Ia de bicicleta a pedal, a essa hora, do lagar até ao Odelouca, onde morava. Mas, de vez em quando, dormia na casa do meu irmão, junto ao lagar, pois não aguentava aquela canseira, todas as noites. Trabalhava no duro e era o que havia. Depois, trabalhei numa fábrica de azulejos e na fábrica de lãs do ‘Melão’, o pior trabalho que tive”, afirma.

O nascimento de uma conserveira
“No início, foi logo bom. No primeiro dia, sentaram-me ao lado de uma rapariga um pouco mais velha e que já sabia trabalhar. Ia-me dizendo como fazer e eu ia seguindo as instruções. Estávamos no descabeço, perguntou-me se já tinha trabalhado naquilo, disse-lhe que não, e ficou admirada pela perfeição do meu corte. E assim começou”, diz Floripes. “Na segunda semana, ganhei 200 escudos, que era muito dinheiro. Logo as mais velhas caçoavam, dizendo: ‘olha lá, uma aprendiza, a ganhar 200 escudos’. Era assim”.

Depois, começou a fazer pilhas de latas e a carregá-las até às cravadeiras, chegando a levar 100 latas de uma vez, embora o normal fosse entre as 70 e as 80.

“Fiz de tudo. Fui logo para o quadro, o que me permitia ter trabalho o ano inteiro, e cheguei a ser ‘visitadeira’, controlando a qualidade do trabalho das outras. E também fiz trabalho de litografia e obtive carteira de litógrafo. Só não estive na creche. Puseram-me lá um dia, mas eu disse que não tinha filhos nem paciência para aturar os filhos dos outros. E se gosto de crianças! E elas gostam de mim. Ajudei a carregar muitos, de colegas que os traziam ao colo. Mas, nessa altura, já tinha carteira de litógrafo e pertencia a um sindicato diferente. Não me podiam despedir por recusar trabalhar na creche. Também estive uns anos na cantina do escritório e fui telefonista. Fui a última a sair, quando a empresa fechou as portas”, conta Floripes.

Nessa altura, já trabalhava também no Continente. “Saía do escritório às seis e entrava às seis no Continente, até à meia-noite, se não houvesse inventários. Era uma correria”, assegura.

Horário? Só para entrar!
“Quando havia muito peixe, chegava a entrar às oito da manhã de um dia e sair às quatro da madrugada do dia seguinte, porque quem estava nas cravadeiras não terminava o trabalho até que todas as latas estivessem fechadas”.

“Muitas vezes, de manhã, saíamos de casa sem comer, comprávamos uma batata-doce à porta da fábrica e, enquanto não se descabeçasse o peixe daquele barco, não havia almoço para ninguém. E, quando compravam peixe à noite, não podíamos vir para casa, enquanto não acabássemos de descabeçar”, acrescenta. “Jantávamos das seis às sete, para sair à meia-noite. Se o trabalho se prolongasse, já não tínhamos autorização para ir comer mais nada”, descreve ainda. “Hoje, já ninguém ia nisso”, reforça o marido.

“Era um trabalho pesado, sem salário fixo, trabalhando muitas horas, quando havia peixe com fartura, mas era o que fazia, se voltasse para trás”, confidencia ela ao Portimão Jornal. “O ambiente de camaradagem que se vivia era único. Existia convívio, a malta era toda amiga. Havia sempre quem cantasse, nos serões, para não nos deixarmos dormir. Havia lá uma moça que cantava muito bem, mas outra colega desmaiava, assim que ela começava a cantar. Tinha de se calar”.

Quando alguma era mais lenta, muitas vezes pela idade, as outras ajudavam-na, para não ser penalizada pelas chefias.

Como se iniciou o romance que ainda dura
Francisco Santos conheceu-a em criança, no Odelouca, mas deixou de a ver e esqueceu-a, até que veio a um baile às Cardosas e a reencontrou. E ali começou o namorico. Ele tinha 22 anos e ela 16. Casaram quatro anos mais tarde e continuam, há 62 anos.

“Ela já trabalhava na fábrica, quando iniciámos o namoro. Em 1964, houve três vagas na lata vazia, no Fialho, ela estava bem vista pelo gerente, falou com ele e fui trabalhar para lá. Primeiro, a levantar o trabalho dos outros e, depois, a fazer solda para as latas. Ao fim de cinco meses, o apontador teve um acidente e tinha de ir um empregado do escritório fazer a mistura do estanho com o chumbo. Um dia, ele não pôde ir e foi o encarregado, mas fez mal e eu disse-lhe que as percentagens estavam erradas. ‘Sabes fazer?’. ‘Pois sei’. ‘Então, quando precisares de material, vai fazendo’. Pediu ao Baracho para eu ficar como apontador e comecei a tomar nota do que saía e entrava, do peso das cargas dos camiões para Sines e Peniche e do trabalho das pessoas. Fechava as folhas do pessoal, semanalmente”, relata Francisco Santos.

Como era ser chefe, nesse tempo?
“Nos tempos em que eu já estava em chefia nos embarques, era escravidão. Elas tinham de trabalhar muito, para ter o produto pronto a tempo e horas. E eu fui chamado muitas vezes, porque me colocava do lado delas, quando via que não podiam dar mais. Tinha de apontar o trabalho de cada uma, senão estava na parede, porque algumas eram malandras”, explica ainda o antigo operário.
Sempre cauteloso, o entrevistado fez sempre uma cópia para si, de todos os documentos que fazia no trabalho.

“Havia lá dois contabilistas e, no final do ano, pelas contas deles, faltavam 100 quilos de estanho, muito dinheiro. Foi um rebuliço naquele escritório. Até os guardas foram chamados. Eu disse ao meu chefe que, pelas minhas contas, estava certo. Mostrei-lhe as minhas cópias, ele foi ter com o gerente, que depois me mandou chamar. Viu os números de ponta a ponta, dia a dia. No fim, estava tudo certo”, diz.

O que mudou com o 25 de Abril?
“Depois do 25 de Abril, aquilo deu uma volta, deixámos de fabricar a lata, o gerente e outros foram despedidos, os empregados de escritório tomaram conta daquilo. Fui convidado para chefe de secção, mas nunca quis compromissos e recusei. Depois, vieram os tipos do Porto tomar conta e começaram logo a vender a sucata, toneladas de ferro. De seguida, deixaram de preparar os embarques nas fábricas e começaram a fazer nos armazéns ao lado da São José”.

“E fiquei eu, que não percebia nada de conservas, a chefiar. Deram-me um grupo de mulheres para empapelar e meter nas caixas de cartão, para o embarque. As mulheres é que faziam as caixas, enchiam-nas e carregavam-nas para o armazém. A almofada trabalhou muito comigo, mas desempenhei o meu lugar. E foi até aquilo fechar e lá ficou uma mão-cheia de dinheiro por receber”, conclui Francisco Santos.

Como se fabricava a conserva

O peixe entrava e eram retiradas a cabeça e as vísceras. Depois, ia para a moura, que era trabalho dos homens, controlado pelo mestre (hoje, diretor de produção), que decidia a quantidade de sal e o tempo na moura. Eram também os homens quem retirava as sardinhas da moura, as colocava em grelhas de estanho, as passava pelos chuveiros de lavagem e as colocava nos autoclaves, onde eram cozidas em vapor, a 120 graus centígrados. Depois, iam para as mesas, onde as operárias as preparavam e enlatavam, sob a supervisão das ‘visitadeiras’, que viravam as latas sobre a mão, para ver a qualidade e o aspeto das sardinhas no fundo, que era por onde as latas eram abertas pelo consumidor. De seguida, eram levadas em pilhas, geralmente de setenta e tal latas, para as cravadeiras, onde eram cheias com azeite ou óleo de amendoim e o fundo cravado, terminando o fabrico na estufa, onde as latas eram submetidas a alta temperatura, para acabar o processo de pasteurização.

Conferência final

Engana-se quem pensar que o trabalho estava terminado. Algumas operárias sentavam-se em bancos baixinhos e batiam as latas duas a duas. Pelo som, sabiam se alguma estava com ar e separavam-na, porque, como afirma Francisco Santos “as latas iam à estufa e algumas rebentavam. Essas iam para a lata vazia, faziam um furinho, metiam de novo azeite ou óleo, o ‘pingador’ tapava o buraco, ia à estufa, o chamado segundo banho, e era vendida barata aos operários ou vendedores ambulantes, pois devia ser consumida num curto espaço de tempo. Era melhor do que essa que anda aí nos supermercados. Até consolava”, diz com saudade no olhar. “Hoje, é tudo a cru e com sardinha congelada”, lamenta. Depois, as latas eram lavadas e limpas, para retirar qualquer gota de óleo que tivesse ficado agarrado à superfície exterior.

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