Ivo Santos: “Gostava de sair com o Fernando Pessoa e observar o que ele fazia”
Texto: Lélia Madeira
Com o livro editado em 2019, Ivo Santos revela um pouco de si e espera este ano fazer a apresentação pública do ‘Ik-Lipse’.
O livro ‘Ik-Lipse’ é escrito em coautoria com o Criado Vasques. Quem é o Criado Vasques?
A obra nasceu quando participei num seminário sobre a construção do Eu. Entretanto, comecei a estudar Fernando Pessoa e encontrei em José Gil a opção de Pessoa usar esse Eu como um ato de pensamento. Ao identificar-se com o mundo exterior, Pessoa consegue vazar o seu corpo para que vários atos de pensamento surjam. É o que permite o diálogo entre os diferentes heterónimos e o Fernando Pessoa ortónimo. Durante os meses do seminário, fiz a experiência de colocar os meus sentimentos na rua, permitindo que surja um outro que não partilha dos mesmos sentimentos que nós. Um conflito com alguém e esse alguém surgiu como sendo o Criado Vasques. Um outro dentro do mesmo corpo, mas um outro diferente do Ivo.
Quais são, então, as diferenças entre o Criado Vasques e o Ivo?
O Criado Vasques era mais incisivo, mais bruto, mais velho, já não tinha nada a perder. Eu, Ivo, sou mais calmo, mais relaxado, mais passivo nas decisões. O Criado Vasques chamava-me um pouco à razão. Não me deixava perder a noção das coisas.
O encontro que acontece neste livro entre a filosofia e a literatura aconteceu naturalmente?
Como estudante de filosofia, era normal olhar para o mundo de maneira diferente. Torna-se inevitável começarmos a analisar tudo com base em critérios filosóficos. A poesia surge devido ao facto de não gostar de ler. Para mim, ler é uma tortura.
Não gostando de ler, onde é que encontra inspiração?
Com a filosofia, consigo analisar de onde parte a emoção e isso faz-me ver alguma ingenuidade nas pessoas. A ingenuidade dos seus atos é a maneira poética do agora. Todas as pessoas são poesia, basta mexerem-se. Nos livros de poesia, encontro a inspiração para traduzir a filosofia, o pensamento racional.
Estão agendadas apresentações públicas do livro?
Estamos a agendar. Gostaria de fazer apresentações para o público em geral, na Biblioteca de Lagoa e em vários locais de Coimbra. Gostaria também de fazer apresentações para alunos do secundário, para terem contacto com alguém que estuda filosofia e escreve poesia, duas disciplinas que não são muito tidas em conta. Gostaria de mostrar que o que escrevemos pode ser lido.
Indo um pouco atrás no tempo: com que idade surgiu o gosto pela escrita?
A minha irmã mais velha, a Hélia, escrevia bastante. Quando saíamos juntos, eu escrevia nos guardanapos e nos postais que havia no café. Tinha a noção de que ela escrevia melhor do que eu. Eu não gosto de competição, mas tenho um lado competitivo em segredo. Vejo uma pessoa a fazer uma coisa e penso: eu também sou capaz de fazer aquilo. Então, vou tentando.
Há uns tempos, quando estava a arrumar a minha casa no Algarve, encontrei um poema que escrevi no quarto ano. Acho que era o meu primeiro poema e até estava bastante bem escrito. Fiquei surpreendido com o Ivo do quarto ano.
O poema era sobre o quê?
Era sobre o Natal e o Menino Jesus. Não me lembro bem, mas tinha alguma sensibilidade, o que é interessante. Pensava que era um jovem menos cuidadoso, mas parece que não.
A sua formação musical ajuda-o no seu processo de escrita?
Com o passar do tempo, o meu estilo de poesia foi mudando. Agora, os meus poemas caem num género que já foi praticado pela Beat Generation, que influenciou o Bob Dylan. Apesar de a minha formação musical ser clássica e de ouvir mais rock e metal, ouvi muito hip-hop. Depois de partilhar os meus poemas com um jovem que faz hip-hop, apercebi-me de que a cadência poética que tenho agora aproxima-se mais das rimas grandes do hip-hop, que nos deixam ofegantes quando as dizemos.
Isso não aconteceu de forma intencional…
Foi quase uma bola de neve, começar a descobrir essas formas de escrever poesia e a dialogar com pessoas sobre como constroem poemas. Tenho um amigo que escreve os poemas e os vai melhorando com o tempo. No meu caso, o poema começa a surgir, porque existe um tema que me inquieta. Há um momento em que tem de sair e, quando o poema está escrito, está escrito.
Além da pronúncia, o que tem mais de algarvio? Tem a chamada ‘alma algarvia’?
Houve uma altura que pensava: não quero mais voltar ao Algarve, porque fico triste, sempre que lá vou. Este ano, comecei a tirar o Mestrado em Estudos Artísticos e deparei-me com uma canção que o Giacometti gravou dos pescadores em Portimão, chamada ‘Leva, leva’, e com um texto que ele escreveu sobre essa canção. Se não tivermos relação com o Algarve, passa-nos ao lado, mas vieram-me as lágrimas aos olhos. Foi o meu momento de reconciliação com o Algarve. Cheguei à conclusão de que, afinal, existe uma alma algarvia em mim. Para o Giacometti, o que dizem de o povo algarvio ser mais fechado é só uma lenda, porque, quando se consegue entrar nele, percebemos que existe uma abertura à comunidade. O Giacometti fez-me ter essa noção de compaixão, de receber o estrangeiro tão bem como eu próprio me receberia a mim.
Há algum personagem icónico que gostava de ter criado?
Não gostava de criar personagens, gostava de ter conversas com os autores e imaginar o que essa pessoa sentiu para aquele poema sair.
Então, o que perguntaria a Fernando Pessoa, por exemplo?
Gostava de sair com ele, observar o que ele fazia, estar apenas. Acredito que nada do que ele contruiu foi ao acaso. Temos a ideia de alguém meio perdido, que bebe absinto e fuma ópio, mas, a meu ver, ele era bastante metódico e consciente da sociedade. Queria perceber como é que ele era capaz de fazer tanta coisa, porque, hoje em dia, não temos tempo para nada. A quantidade de páginas escritas e de heterónimos é impressionante. Em vez de criar o personagem, preferia andar como uma sombra do autor e, de vez em quando, se ele quisesse conversar comigo, podia conversar.
O Ivo também faz teatro. Já pensou em explorar outras áreas da escrita, como a dramaturgia?
Já. Eu faço teatro no CITAC. Através dos estudos de etnomusicologia, surgiu-nos a ideia de fazer uma peça a partir das canções populares, fazendo uma análise sociológica, psicológica, filosófica, e escrever um texto que fosse uma partitura para o movimento, para as expressões. Seria uma coreografia com atores, cantores e músicos do GEFAC, que é um grupo etnográfico da Universidade de Coimbra.
Neste momento, está a escrever algum livro?
Tenho outro livro já terminado. À parte disso, está a surgir-me uma outra problemática, que poderá traduzir-se num pequeno romance, em prosa. Há uns tempos, tinha muita vontade de ser velho. Fascinava-me o facto de os velhos guardarem uma força que os jovens não têm. Eu queria essa força. Para mim, existe um romance poético na velhice. As coisas que agora estou a escrever andam à volta da velhice. Os velhinhos e as pessoas do campo têm ensinamentos incríveis. O que eles dizem não tem a carga fria da universidade.