Margarida Costa: Uma mulher que fez o ‘estágio’ de bombeira ainda na barriga da mãe

Texto e fotos: Jorge Eusébio


A vida de Margarida Costa esteve desde sempre ligada ao mundo dos ‘soldados da paz’ portimonenses. Desde logo porque o seu pai era bombeiro e a mãe, costureira, fazia fardas de cotim para os elementos da corporação. De forma que, diz, “ainda na barriga dela, já eu andava nesse ambiente”.

Isso fez com que, muito jovem, tenha resolvido seguir os passos do progenitor. Na altura, tirou um curso de socorrismo e começou a trabalhar nas ambulâncias. O primeiro serviço que lhe atribuíram ficou-lhe na memória: foi o transporte da vítima mortal de um acidente rodoviário ocorrido na zona da Mexilhoeira Grande.

Contudo, a situação que a chocou mais foi a de “um atropelamento, na V6, de uma senhora irlandesa que estava na passadeira com uma criança de 2 anos”. Ao chegar ao local “fiquei com ela e um colega meu foi dar assistência à criança que tinha sido arrastada”. Foram feitos todos os esforços para salvá-la, mas acabaria por falecer.

Apesar da missão de socorrista ser muito dura e cheia de momentos maus, também lhe proporcionou grandes alegrias, sobretudo quando contribuía para que o desfecho dos acidentes não fosse fatal, conseguindo salvar a vida dos envolvidos.

Para além de rapidez e da escolha das técnicas que, em cada situação, são as corretas para socorrer quem precisa, aquele trabalho criava uma envolvente emocional muito intensa, que ela e os seus colegas tinham de saber gerir da melhor maneira possível.


Era frequente que familiares de pessoas que iam ajudar “estivessem ansiosas para que, rapidamente, as transportássemos para o hospital, mas, muitas vezes, essa não era a forma correta de abordar aquele caso específico”.

Devido a esse tipo de circunstâncias, havia que lidar com a revolta e o desespero de muita gente. Nessas alturas, havia que tentar acalmá-las, explicar-lhes que o risco de levar o paciente rapidamente para o hospital era maior do que a prestação de socorro no local.

Nos primeiros tempos “não conseguia abster-me desse tipo de situações, mas aos poucos fui aprendendo a lidar com isso, tinha que prestar o melhor apoio possível a quem estava numa aflição, independentemente do que à volta se passava, do que se dizia e das emoções que se geravam”.

Mas confessa que isso era bem mais difícil quando era chamada a emergências que envolviam familiares e amigos pois “aí, a gente treme toda, queremos sempre salvar todas as vítimas, mas quando pela frente encontramos alguém que conhecemos, as coisas tornam-se psicologicamente bem mais complicadas”.

A sua ligação à área do socorrismo foi tão forte que, apesar de, atualmente, por motivos de saúde, já não estar no ativo, ouvir a sirene de uma ambulância é algo que continua a mexer consigo e a deixa em estado de alerta.

Quase apanhada pelo incêndio
O combate a incêndios florestais é outra das missões mais conhecidas do trabalho dos bombeiros e Margarida Costa, enquanto chefe de equipas, participou em vários de grandes dimensões.

Fazendo a comparação entre a forma como a luta contra o fogo era feita na altura e hoje, diz que “não tem nada a ver”. Há uns anos, o voluntarismo e a coragem individual e coletiva sobrepunham-se à organização e coordenação geral. Hoje, “os meios técnicos, logísticos e organizacionais são muito superiores”.

Até ao nível do apoio alimentar as coisas eram muito diferentes nos seus primeiros tempos. A comida “era feita numas panelas muito grandes que íamos pedir aos hotéis, depois era transportada para o terreno e os bombeiros que conseguiam vir comer, vinham, os que estavam um pouco mais longe não o conseguiam fazer e passavam fome”.

Há cerca de 15 anos, na zona de Monchique, viveu uma das situações mais perigosas da sua vida. À frente de um grupo de combate a incêndios, encontrava-se “numa zona em que, de repente, o fogo apareceu, vindo pelas copas das árvores”.


Só teve tempo de gritar para o motorista da viatura, que se encontrava a uma distância considerável, que fugisse, e ela e mais dois bombeiros seguiram noutra direção, por terrenos que já tinham sido ‘visitados’ pelas chamas.
Acabaram por chegar a uma casa que tinha uma piscina, onde se refugiaram durante cerca de três horas. Depois de verem que o pior já tinha passado, “viemos a pé até à estrada principal, numa altura em que, soubemos depois, as televisões já tinham dado o alerta de que estávamos desaparecidos”. Confessa ter sido “um grande susto” que, de alguma forma, acabou por ser compensado quando se juntaram aos restantes bombeiros, “graças aos abraços e à alegria do reencontro”.

Em 2016 esteve na frente de combate a outro grande incêndio que deflagrou no concelho de Monchique e que galgou muitos quilómetros de terrenos dos concelhos vizinhos, tendo por vezes, parecido ser impossível travá-lo.

Margarida Costa foi destacada para a zona da Senhora do Verde. Recorda-se de “ter ido para lá no carro dos sapadores, que é mais pequeno do que os outros, e, curiosamente, com exceção do condutor, todos os elementos da equipa eram mulheres”.

Onda de solidariedade
Também acompanhou as operações de combate ao grande fogo de 2018, mas, desta vez, a partir do quartel, a coordenar a logística. Tinha a seu cargo a responsabilidade de que não faltasse comida aos mais de uma centena de operacionais que se encontravam no terreno.
Nesses dias testemunhou a grande generosidade dos portimonenses, que desenvolveram uma forte onda de solidariedade para com os bombeiros.

Estavam sempre a aparecer muitas pessoas que faziam questão de entregar alguma coisa, para dessa forma, também ajudarem, de forma indireta, na guerra às chamas.

Em muitos casos, os produtos que levavam até não eram os mais necessários naquela fase, mas acabavam por aceitá-los, pois “as pessoas ficavam sentidas e quase ofendidas se não o fizéssemos”. Ao fim de alguns dias, começaram a anunciar, através das rádios locais e das redes sociais, o material ou o tipo de alimentos que eram necessários e logo eles apareciam em abundância.

No final, sobrou muita coisa, que acabou por ser doada a instituições de solidariedade.

Uma profissão sem horário certo
A profissão de bombeiro não tem horário certo, o que pode causar algumas perturbações na vida familiar. Felizmente, o seu marido, como também é ‘soldado da paz’, percebia perfeitamente as exigências da atividade.

Margarida Costa lembra que, “como havia períodos em que fazíamos turnos desencontrados, ficávamos vários dias sem, praticamente, nos vermos, pois quando ele estava a trabalhar, eu encontrava-me a descansar e quando ia para o quartel era ele que voltava para casa”.

Admite que o mais afetado pela profissão do casal tenha sido o filho, que nessas fases ficava na casa dos avós. Era frequente “sair do quartel diretamente para a casa dos meus pais para estar um bocadinho com ele e daí voltar para o serviço”. Nas férias, pai e mãe procuravam compensá-lo pelas muitas ausências registadas ao longo do resto do ano.
Ainda assim, o jovem não parece ter ficado ressentido ou magoado, uma vez que, também ele, embora por um curto período de tempo, experimentou a vida de bombeiro. Enquanto lá esteve, garante, nunca teve tratamento especial da parte da mãe, “tal como eu nunca tive do meu pai, que era chefe”.

Aliás, lembra, sempre que as coisas não corriam bem, era ela que ouvia as críticas mais fortes. Quando, mais tarde, se encontravam os dois a sós e ela se queixava do progenitor estar sempre a ‘dar-me na cabeça’, ele respondia que era para que os outros não pensassem que tinha tratamento especial por ser sua filha.

Quando entrou para a corporação portimonense, a esmagadora maioria dos bombeiros eram homens, podendo-se contar o número de mulheres pelos dedos de uma mão. No entanto, nunca sentiu ter sido discriminada, pelo contrário, “toda a gente me aceitou bem, sempre houve muito respeito por nós, mulheres. No fundo, éramos uma grande família, muito unida”.

Isto apesar de, em trabalhos que exigiam maior esforço físico, uma vez ou outra ter havido alguém a sugerir que ela devia ficar no quartel. Isso, confessa, “fazia-me ‘ir aos arames’, pois sabia que era mais qualificada e tinha mais formação do que muitos colegas, para além de que, geralmente, não é a força física ‘bruta’ que resolve as situações, é o jeito, o conhecimento e a experiência que se tem”.

A surpresa de receber o crachá de ouro
A carreira ativa de Margarida Costa acabou precocemente, por motivos de saúde, tendo sido alvo, no final de 2019, na celebração de mais um aniversário dos Bombeiros Voluntários de Portimão, de uma homenagem pela sua dedicação à causa. Chamada ao palco, soube que ia ser promovida à categoria de chefe e ingressar no quadro de honra.

Tratou-se de um momento marcante, não só por ter diante de si todos os bombeiros locais e muitos convidados, mas por o ato ter contado com duas testemunhas muito especiais: o seu filho e o neto ainda bebé.

Cerca de um ano antes já tinha sido alvo de uma outra homenagem, esta no decorrer da sessão do Dia da Cidade de Portimão de 2018. Aí, juntamente, com outras pessoas e instituições, recebeu o agradecimento do município pelo apoio que deu no combate ao incêndio que, uns meses antes, tinha colocado muitas vidas e bens em risco.

No final da sua intervenção ficaria ainda mais emocionada, uma vez que lhe foi entregue o crachá de ouro da Liga dos Bombeiros Portugueses, o galardão máximo que aquela entidade atribui. Essa emoção, recorda agora, deveu-se, em boa medida, “ao facto de ter sido uma completa surpresa, pois o comandante fez segredo e não me disse que iria receber o crachá”.

Olhando para trás, em jeito de balanço, Margarida Costa diz que “valeu muito a pena ter vindo para os bombeiros”. Com o que hoje sabe, a única mágoa que guarda é “não ter entrado na corporação ainda mais cedo”.

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