O karaté como arte tradicional continua a cativar os lagoenses

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Mário Moreira
O karaté é uma imagem de ‘marca’ em Lagoa, embora muitos dos habitantes do concelho desconheçam as raízes desta modalidade, assente num projeto com cerca de 30 anos. Foi nessa altura que arrancou o denominado Centro de Artes Marciais de Lagoa, nas instalações do Pavilhão dos Amigos de Lagoa, que, entretanto, viria a sofrer obras de requalificação, voltando a abrir portas em outubro de 2024. Este projeto acabou por ficar por terra, uma vez que não havia estatutos conformes.
A história é contada na primeira pessoa por João Vieira, o Mestre e grande mentor do karaté lagoense. “Em vez de alterar esses estatutos fizemos uma nova associação, em 2009, a que demos o nome de Associação de Artes Marciais de Lagoa”. Assim se inicia a história mais recente do ensino desta arte marcial, muito devido ao empenho de um homem que chegou a dar aulas, também, em Portimão, e que, em 2003, passou a dedicar-se quase por inteiro à divulgação da modalidade em Lagoa.
“Havia pouco desporto, éramos nós, o andebol e pouco mais, daí que fosse pertinente contribuir para o desejado crescimento”.
João Vieira começou a praticar karaté shotokan com oito anos, e, mais tarde, abraçou outras vertentes, do jujutsu ao taihojutsu, yoseikan budo e kempo, com graduações que agora chegam a 5º dan, sempre na defesa das artes marciais japonesas.
“Acho que nesta área já fiz tudo o que se possa imaginar no nosso concelho. Dirigi uma Universidade Sénior, faço as Férias Desportivas há 18 anos e numa aula para seniores chegámos a reunir 80 atletas de uma vez”.

Inserido no programa de escolas, ensina do 1º ao 12º ano, na Jacinto Correia, ESPAMOL e João Conim, e, em Faro, dá formação a um grupo da GNR. Há anos passou pelo Sporting Clube Lagoense, recordando, a propósito, Gonçalves Zeferino, um dos fundadores do karaté no Algarve, entretanto já falecido. Antes de assentar arraiais no Pavilhão dos Amigos de Lagoa, dava as aulas no Municipal da cidade.
Orgulho enorme em representar Lagoa
Uma das curiosidades da prática do karaté na Associação de Artes Marciais de Lagoa, pelo menos para os mais leigos na matéria, prende-se com o facto de não existir competição. “Já tivemos, mas depois afastámos essa ideia, pois primamos pela arte marcial tradicional, que não permite competição. Aqui é a cultura japonesa que impera”, assinala João Vieira, que conta com perto de 30 alunos, que treinam duas vezes por semana, nas instalações dos Amigos de Lagoa, que foram remodeladas para receber, precisamente e em exclusivo, as artes maciais tradicionais.
“Em vez da competição temos encontros nacionais, europeus e mundiais, bem como inúmeros estágios. Esta arte não pode ser vista como de competição. Os samurais dizem que não a faziam para levantar taças e medalhas, mas, sim, para defender a honra e a integridade física. E não se perde atletas”, garante, aludindo ao interesse de quem o segue, desde os miúdos com cinco anos aos que já são, ou quase, cinquentenários.
“Tenho alunos que trabalham comigo há perto de 20 anos, caso dos meus assistentes, o Mário Pires e o Francisco Vieira, 2º e 1º dan, respetivamente, que ajudam e dão treinos em caso de necessidade”.
O Mário tem sido uma companhia constante e entre os petizes há muitos já com três e quatro anos na Associação. “Recentemente estivemos em Samora Correia, a representar Lagoa, e eu fui convidado para dar um seminário”, prossegue João Vieira, aludindo mais uma vez à beleza desta arte tradicional. “Treinamos com catanas, bastões e facas, está tudo ligado ao modo de ensino e à prática”.
A ligação com o município é muito forte e estreita, faz questão de vincar. “Entendemo-nos muito bem e estou sempre disponível. Há 18 anos que faço as Férias Desportivas”, repete o Mestre, natural de Carvoeiro e residente em Lagoa muitas décadas. “Tenho 58 anos e um orgulho enorme em representar Lagoa e trabalhar com pessoas boas. Nunca houve um conflito com quem quer que fosse, nunca mesmo. A nossa missão não é por dinheiro, é pela arte em si, pelo contributo que dou e pelo legado que vou deixar”, salienta.
“Seguir este caminho”
Além das aulas de karaté, João Vieira é formador na área da autodefesa, na GNR, empresas de segurança e Marinha. Antes, trabalhou no comércio de camiões e autocarros. “O desejo? O que nós queremos, no imediato, é dar continuidade a tudo isto. Estamos bem e importa seguir este caminho, para que esta associação se mantenha e para que eu e os meus alunos e assistentes continuem a divulgar a modalidade”.
Existem algumas dificuldades financeiras, reconhece, em especial quando há deslocações para fora da província algarvia, que obviamente “custam dinheiro, mas temos de suportar. A Associação realiza periodicamente um estágio internacional, com mestres austríaco, alemão e Luís Fernando, o mais graduado em Portugal, o que contribui em larga escala para este encanto que o karaté como arte tradicional vai espalhando e que, ao mesmo tempo, ajuda a cativar novos entusiastas.
Apesar da satisfação de todo o seu trajeto, João Vieira não esconde ao Lagoa Informa que o karaté no Algarve tem um nível fraco, mais visível, eventualmente, a nível de competição. “Nunca teve grande expressão e são poucos os apoios federativos. Também nunca se alcançaram resultados significativos, e, sem desconsideração pela competição, os resultados de hoje já não traduzem o que é o karaté de raiz. E faltam muitos apoios, repito”.
Associação sólida e federada
O número de praticantes vai subir, acredita João Vieira, em especial porque, na transição do Pavilhão Municipal para a atual casa, perderam-se alguns alunos, que ficaram com dificuldade na deslocação. “Faziam também piscina e o karaté ficava ali ao lado, agora é mais longe e diferente, mas o número que temos é razoável”, assume o Mestre, inclusive porque têm surgido certas “modalidades de moda”, inclusive nos desportos de combate, como o full contact, ou o jiu-jitsu brasileiro.
“Gostava de salientar o percurso efetuado ao longo destes anos. Já exprimi o meu orgulho em representar Lagoa, mas acho que o desporto do concelho também me deve alguma coisa”, diz o Mestre, apressando-se a acrescentar que gosta mais “que sejam os outros a falar de mim”. Mas, bem vistas as coisas, 50 anos de prática e de dedicação justificam o devido reconhecimento.
O trajeto, aliás, nem sempre foi fácil. João Vieira recorda que chegou a dar aulas a apenas três atletas, mas “nunca desisti”. Não havia tradição do karaté em Lagoa, “e hoje, é curioso e muito importante, temos uma Associação sólida, federada, e na qual temos imenso orgulho. É para continuar, claro. Somos chamados a todos os lados e brevemente vou a Itália dar um estágio”, conclui aquele que foi o primeiro algarvio a dar estágios fora do país.
O entusiasmo dos mais jovens
Clara Marreiros é uma menina de 12 anos, que pratica karaté há três, sempre na Associação de Artes Marciais de Lagoa. “O único desporto que fiz e faço é o karaté. Gosto muito e tenho prazer em aprender a utilizar as técnicas de defesa, em saber responder e ter os gestos adequados”, explica, com uma natural timidez à mistura. Clara frequenta o 6º ano e não pensa deixar o karaté nos tempos mais próximos. O colega e amigo Gabriel Magalhães, de 12 anos e praticante também há três, é da mesma opinião. “É bom saber como nos devemos defender. Também fiz capoeira, quando era mais criança, mas prefiro o karaté”, diz este jovem nascido no Brasil. Ambos cinto laranja, Carla e Gabriel gostam da modalidade tal como ela é, sem competição, revelando o entusiasmo próprio da idade, inclusive pelos momentos de convívio que os treinos proporcionam.

A satisfação dos assistentes Mário e Fernando
“Aprender a ensinar faz parte do percurso”
Mário Pires e Francisco Vieira são dois dos atletas com mais anos de karaté, sempre sob a direção do Mestre João Vieira, funcionando agora também como seus assistentes e passando a experiência adquirida aos mais jovens, naquilo que rotulam de “gratificante”. Mário Pires tem 31 anos, começou aos 14, sempre em Lagoa.
“Ainda joguei futebol, mas não tinha talento, não era para mim”, atira, sorridente. Escolheu o karaté porque sempre foi pequeno e queria estar à altura de qualquer imprevisto, e, depois de iniciar os treinos, nunca mais parou. Francisco Vieira tem 50 anos e está há dez no ativo. “Comecei um pouco tarde, mas ainda a tempo. Tinha interesse na modalidade, embora só depois de acompanhar o meu filho, aqui na Associação, me tenha decidido. Gostei, ele saiu e eu fiquei”.
São ambos assistentes, “fruto do tempo e da dedicação”. A determinada altura, enfatizam, “começámos a aprender a ensinar, naquilo que faz parte do percurso”. Mário chegou a fazer competição, mas com o passar dos anos acabou por dar preferência ao “estudo da arte em si e às técnicas”. E quando se colocam essas técnicas em competição, assegura, “as coisas podem não sair bem, porque num campeonato as regras são outras e é para estragar”. A arte marcial é a preferência e “é para a vida toda, de tal modo que quando não se treina sentimos essa falta, é mesmo uma necessidade”.
Ensinar os miúdos, considera Fernando, “é um aliciante e é gratificante, mais a mais quando eles têm esse gosto e vontade de aprender”. Existem dificuldades, em virtude da tenra idade de algumas crianças, e, então, a receita é outra. “Tem de ser mais pela persistência, pelo aproveitar de uma janela de atenção. Quando vimos que não dá para mais de 20 ou 30 minutos, mais vale seguir no dia de amanhã”. De resto, o gosto pela arte ultrapassa tudo, desde logo pelos ensinamentos do Mestre. “Estamos aqui para prosseguir o crescimento e evoluir em termos de conhecimentos técnicos”, garantem.