Opinião: A Esgana e o mito do bicho debaixo da língua
Cristina Mosteias |Médica Veterinária
Vamos falar do “bicho” debaixo da língua….
Espero que tenha sido uma boa semana para os leitores, hoje vamos falar do “bicho” debaixo da língua dos cães, chama-se comummente freio lingual e é uma inserção aponevrótica para as fibras musculares do músculo génio-glosso e do músculo próprio da língua… essa cara… é a mesma que eu faço quando me dizem que trataram a esgana do pobre animal cortando o “dito cujo”.
O freio tem características elásticas que conferem mobilidade aos músculos da língua, e claro quando cortadas contraem-se e daí o mito do “bicho”. Vermes existem em muitos outros locais do organismo, mas não aqui!
Acerca da Esgana, é um vírus que se transmite por contacto direto, mais prevalente nas estações frias. A suscetibilidade é maior nos cachorros entre os 3 e os 6 meses de idade, que coincide com a perda de imunidade passiva, até à obtenção da imunidade que lhes é conferida pela vacinação.
Este vírus, sendo inalado espalha-se nos tecidos linfáticos e vias respiratórias, com corrimento ocular e nasal e tonsilite, que muitas vezes pode ser subvalorizado.
A fase seguinte é a infeção generalizada dos tecidos dos vários órgãos, via linfática e sanguínea, onde podemos ter diarreias, perda de apetite, erupção cutânea e tosse seca que rapidamente evolui para a formação de muco. Seguem-se febres altas e a possibilidade desta infeção passar a barreira hematoencefálica e atingir o cérebro. Vamos observar sintomatologia neurológica, onde um grande número de animais morre decorridas 2 a 4 semanas pós-infeção e os que recuperam, podem apresentar sequelas permanentes…
Todo o tratamento a efetuar nestes animais é de suporte de vida, com monitorização contínua, até que o sistema imunitário deste consiga combater o agente viral. Nomeadamente corrigindo a desidratação, controlando a diarreia, as hipoglicémias providenciando nutrição por via endovenosa, imuno-estimulantes e antibióticos para o controlo das infeções bacterianas oportunistas, que aproveitam a baixa imunitária do animal para provocar infeções.
Por tudo isto o esquema vacinal em cachorros deve começar às 6 semanas com uma vacina bivalente para Esgana e Parvo-vírus e a partir das 8 semanas com uma polivalente que confere imunidade para Esgana, Parvovírus, Leptospira e Parainfluenza (dependendo da vacina podem ser incluídas outras valências/imunizações).
Posto isto, espero ter contribuído para o esclarecimento da complexidade do tratamento de uma doença de origem viral, que nada beneficia do corte de um “tendão” da língua.
Este ato hediondo e arcaico apenas inflige dor aos menos afortunados cujos detentores o fazem baseando-se numa “sabedoria popular” sem qualquer fundamento médico.