Pedalar no feminino tem cada vez mais encanto

Texto: Hélio Nascimento


Já lá vão mais de seis anos: Orieta Oliveira e Celina Carpinteiro deram corpo à primeira equipa de ciclismo exclusivamente feminina, batizando-a com o nome de 5 Quinas Município de Albufeira, e hoje, em tempo de retrospetiva, não podiam estar mais felizes e satisfeitas. “Se valeu a pena? Claro que sim! É gratificante constatar o nível atual e a evolução que se tem registado e nós sentimos que ajudámos a impulsionar o ciclismo feminino português. Na altura havia algumas equipas mistas, mas nenhuma totalmente feminina”, conta Orieta, agora diretora desportiva, que, porém, não deixou de pedalar. 

“Repetia tudo! O crescimento é fantástico e estou sempre a lembrar-me que fomos as primeiras. O pelotão feminino tinha aí umas 40 unidades e agora integra 120, com várias outras equipas que apostaram igualmente na imagem e replicaram o nosso projeto”, acrescenta Celina, a grande campeã que por estes dias também é treinadora. 

“Antes era um pelotão muito mais modesto”, prossegue Orieta, insistindo em “como é bom” ver todo este trajeto e a aposta entretanto feita por outros emblemas, “com estruturas de qualidade”. Os outros projetos no feminino, “mais uns três ou quatro” segundo a dirigente-atleta, apostaram também “no brilho de equipamentos mais apelativos e aperfeiçoados” ao mundo feminino, já que outrora transmitiam um certo “ar masculino e não brilhavam tanto”. Graças à equipa 5 Quinas e aos seus mentores, “tudo mudou para melhor e há muito mais cor nas estradas quando se realizam as nossas corridas”. 

De “coisa primitiva” ao brio das ciclistas 

Em fevereiro de 2015, quando Orieta e Celina apresentaram a equipa ao mundo das bicicletas, prometeram “revolucionar o ciclismo feminino português”. Será que conseguiram? “Sem dúvida. O que existia era uma coisa primitiva e hoje vimos atletas que cresceram e se desenvolveram na modalidade. Algumas seguiram outros caminhos, mas ficaram muitas, que vão ganhando títulos e evoluindo. Tenho um enorme orgulho em fazer parte da carreira delas”, atesta Orieta Oliveira. 

“O crescimento é fantástico
e estou sempre a lembrar-me
que fomos as primeiras.
O pelotão feminino tinha aí umas 40 unidades e agora integra 120, com várias outras equipas que replicaram o nosso projeto”

A promoção do ciclismo feminino é, porventura, o ponto mais alto da existência da 5 Quinas, sem esquecer, depois, as vitórias e as medalhas. “O brio das ciclistas e a realização dos nossos estágios, às vezes em ambientes rurais, enchem-nos de alegria. Quando chega a altura das competições fora do Algarve vamos dois dias antes, estamos juntas, as mais velhas partilham experiências e tudo isto dá frutos”, garante Orieta, destacando os triunfos e os títulos, quer individuais quer coletivos, que vão enchendo a sala de troféus.  

Em termos de dificuldades, as maiores reportam-se a questões logísticas, porque não é fácil, por exemplo, transportar 15 atletas e mais todo o material inerente às provas, nomeadamente as bicicletas. “As corridas são quase todas de Lisboa para cima e temos de alugar carrinhas, marcar hotéis, enfim, não é nada fácil para quem trabalha”, como é o caso de Celina e de Orieta. É aqui que entra o grande apoio do Município de Albufeira, ‘através’ do Clube Desportivo Areias de São João, já que o conjunto 5 Quinas é uma seção autónoma desta coletividade. “Quando viajamos é tudo em formato XXL”, brinca Orieta.

“Se não fosse a Câmara não suportaríamos as despesas, tipo dormidas, refeições, gasolina e portagens. O contrato programa apoia também o nosso projeto e conseguimos dar condições às atletas”. 

Uma dupla imbatível  

O protocolo com a equipa BTT de Loulé, uma espécie de satélite nas camadas jovens, permite que do escalão de cadetes para cima as corredoras façam as duas vertentes, a de estrada e a todo-o-terreno.

“É um acordo de cavalheiros e um ‘empréstimo’ para os Campeonatos Nacionais e Taças de Portugal. Recordo que até há pouco não havia ciclismo de formação em Albufeira”, revela Orieta, confessando que a 5 Quinas não tem capacidade para dar resposta ao nível dos escalões etários mais baixos. “Somos mães, atletas e temos uma vida profissional exigente. Eu e a Celina, aliás, já temos o nível 1 de treinadora e estamos a concluir o nível 2. Dar mais passos é difícil, tem de ser uma coisa de cada vez”.  

Neste momento, Celina Carpinteiro ocupa-se mais da parte desportiva, sendo também treinadora, enquanto Orieta, como diretora desportiva, resolve as ‘burocracias’, libertando mais a amiga para os treinos. Seja como for, ambas têm conhecimento de tudo o que rodeia a equipa, e formam, como elas mesmo dizem, “uma dupla imbatível”. No caso, “nem precisamos de falar, sabemos sempre o que é preciso fazer, fruto de muitos anos de trabalho e da nossa forma de ser e estar na vida”. 

A equipa 5 Quinas tem mais provas pela frente durante esta época, tanto da Taça de Portugal como o próprio Campeonato Nacional, aspirando aos lugares “mais alto do pódio”, como é tradição. “Há mais valores a despontar e a competitividade aumentou, mas também queremos que as nossas atletas se divirtam”.

Para que tudo corra na perfeição, a dupla conta com o forte apoio familiar, sobretudo dos maridos (ver outra peça), e, para além da Câmara de Albufeira e do CD Areias de São João, não esquece o Luna Hotel e o papel de Ludgero Coelho, um amigo de longa data, com “uma disponibilidade incrível, que faz também de diretor desportivo e tem estado presente desde a primeira hora”, como Celina faz questão de frisar. A filha de Ludgero Coelho, Irina, faz, aliás, parte do conjunto de Albufeira. 

Admiração pela campeã

Celina Carpinteiro tem um palmarés de respeito e durante muito tempo foi figura principal da modalidade, quer no ciclismo de estrada, quer no BTT, tendo alcançado vários títulos nacionais e em diferentes especialidades, sobretudo no todo-o-terreno. “Sinto-me realizada, é verdade que sim, não só pelos títulos conquistados e toda a responsabilidade que daí resulta, mas, também, pelo carinho e admiração que sinto por parte das pessoas. A minha forma de encarar este desporto foi, de resto, sempre valorizada”. 

Hoje, Celina reconhece que é mais difícil conciliar todas as tarefas. “Sou atleta, treinadora, estou a tirar, tal como a Orieta, o nível 2 do curso, e tenho a minha profissão e a família”. As suas pupilas não dispensam um conselho, ou não seja ela uma líder e uma referência. “Vejo-me nesse papel e enquanto puder cá estarei. O BTT? Faço competição e lazer. As minhas caraterísticas, que se adequam às provas de resistência, levam a que dê prioridade a esta vertente quando faço o meu calendário”.   

Esta admiração é extensível ao universo geral das bicicletas, incluindo o “mundo masculino”, como sublinha Orieta. “Mostram carinho e dão muito apoio. Gostam de nos ver em provas, de conversar connosco e recebemos muitas mensagens. Temos inúmeros seguidores nas redes sociais”, adianta, deixando um derradeiro comentário sobre o ainda inevitável piropo que ouvem de vez em quando. “Faz parte e já estamos habituadas”. 

O fundamental apoio dos maridos 

Orieta Oliveira tem 38 anos e é técnica de biblioteca. Celina Carpinteiro, de 41, é professora de Ciências Naturais. Ou seja, além de atletas, dirigente e treinadora, têm a sua profissão. E família. “O apoio dos nossos maridos tem sido fundamental e eles são parte integrante deste projeto, pela colaboração e ajuda que nos deram e continuam a dar. O meu, o Eurico, é patrocinador, através da empresa 5 Quinas, que nos fornece o equipamento. O Valério, o marido da Celina, é ainda nosso treinador e está sempre disponível”, explica Orieta. “Gostam de partilhar, dão conselhos e fazem tudo o que é necessário, até carregam as baias às costas”, garante. E a filha do casal, Adriana, de 13 anos, é muitas vezes a fotógrafa de serviço! A paixão pelo ciclismo em estado puro, sempre e também com a ideia de dar a maior das visibilidades às corredoras e à própria cidade de Albufeira. 

OPINIÃO | Protagonistas da História  

O ciclismo é uma modalidade com uma forte ligação à sociedade e à evolução histórica, provavelmente por ser mais do que uma competição desportiva. A bicicleta sempre se afirmou agente e instrumento de mudanças e de afirmações na sociedade. Nos primórdios enquanto elemento distintivo da nobreza e da burguesia, mais tarde como modo de transporte do operariado, ultimamente como equipamento para a prática desportiva, instrumento de lazer sem intuitos competitivos ou modo de transporte ecológico e saudável.  

Tendo a bicicleta e o seu imaginário uma tão profunda ligação à sociedade e à forma como esta se organiza em cada momento, o ciclismo, enquanto desporto, acompanha necessariamente as transformações sociais. Isto acontece a nível internacional, mas também em Portugal.  
Durante décadas, o ciclismo feminino de competição foi uma raridade em Portugal. Aconteceu desde o início do século XX até ao 25 de Abril. Oceana Zarco, setubalense que competiu na década de 1920, teve um papel pioneiro e sem paralelo durante a ditadura que terminou em 1974, sendo a primeira figura reconhecida do ciclismo feminino em Portugal.  

A liberdade trouxe direitos às mulheres e muitas escolheram a bicicleta para afirmarem esse novo estatuto. O ciclismo em Portugal começou a abrir-se gradualmente à presença feminina em diferentes missões, de ciclistas a comissárias. Nesta fase houve um nome que se afirmou sobre os demais, Ana Barros. A vianense apurou-se para os Jogos Olímpicos de Barcelona’92, onde não chegou a correr, devido a um acidente num treino, e para Atlanta’96, onde foi a 23ª classificada.  

Com altos e baixos foi possível manter um circuito interno de ciclismo feminino, com algumas incursões internacionais das corredoras portuguesas. Neste particular, o Algarve sempre teve uma forte presença no pelotão feminino nacional, através de ciclistas e de equipas organizadas, que competem nas mais variadas vertentes da modalidade.  

Na última década deu-se um salto de ambição e qualidade no ciclismo feminino português. Daniela Reis foi precursora na vontade férrea de triunfar no ciclismo internacional. Esta determinação de estar junto das melhores tem motivado corredoras na estrada, mas também na pista e no BTT. É por isso que, neste verão, a participação velocipédica portuguesa nos Jogos Olímpicos é paritária: João Almeida e Nelson Oliveira na estrada, Maria Martins na pista e Raquel Queirós no BTT.  

A afirmação desportiva das ciclistas portuguesas é um passo natural, dado que o número de mulheres praticantes filiadas em Portugal tem crescido de forma significativa. Nas últimas dez épocas, entre 2012 e 2021, o incremento foi de 138 por cento.  

Vivemos também uma fase em que a igualdade de género é uma missão de todos, gerando um alargado consenso na sociedade. A conjugação destes fatores faz-nos crer que o crescimento do ciclismo feminino irá acentuar-se no futuro próximo. A realização da primeira Volta a Portugal Feminina, em setembro deste ano, será um marco. E, como sempre tem sucedido na História do ciclismo, existe uma relação profunda entre o estádio da sociedade e as pedaladas que o ciclismo dá. As ciclistas são protagonistas da História. E sê-lo-ão cada vez mais.  

José Carlos Gomes (assessor de Imprensa da Federação Portuguesa de Ciclismo) 

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