Professora Judith tem 78 anos e todos os dias calça os patins

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Eduardo Jacinto
São 78 anos de vida, 66 dos quais dedicados à patinagem, a modalidade que ainda hoje a faz sonhar e a transporta para o mundo encantado das meninas que lhe querem seguir as pisadas. Judith Gomes, é dela que falamos, é a responsável pela Escola de Patinagem de Portimão, na sequência de uma história que a guindou a um dos mais altos patamares no desporto, quer como atleta quer como professora.
“O meu nome escreve-se com ‘th’, sou uma Judith antiga”, diz ela, com um enorme sorriso ao Portimão Jornal, depois de mais uma aula no Pavilhão Gimnodesportivo da cidade. “Desde que casei metade da minha vida era em Lisboa e outra metade aqui”, revela, falando da sua forte e profícua ligação ao Benfica e da magia que continua a espalhar, onde a idade pouco conta. “Cansada? Não, não senhor. Hoje não calcei os patins, por acaso, mas patino todos os dias”, juntamente com as suas alunas.
“Comecei a fazer desporto no Benfica, na ginástica, com quatro anos. Depois pratiquei natação, em piscina ao ar livre, e ainda fui atleta nacional, antes de surgir a patinagem. Fiquei encantada e o professor disse-me logo que tinha uma enorme aptidão”, revelando-lhe também que a natação podia ser prejudicial para uma patinadora. “Nadava costas e mariposa e, segundo ele, ficava descoordenada para os patins. E era ao ar livre, com baixas temperaturas no inverno. Na altura tive alguma pena, mas o meu pai ajudou na decisão”, recorda.
A patinagem, note-se, também era então ao ar livre. Judith evoca os professores António Silva e Xavier de Araújo e as aulas que muitas vezes decorriam no rinque do Jardim Zoológico. “Eu só ia aos fins de semana, numa altura em que havia grande adesão pela patinagem. Lembro-me que até a equipa de hóquei em patins do Sporting estava ali a patinar”.
A primeira mulher a ganhar uma bolsa no desporto
Judith foi saltando etapas e cedo se constatou que tinha um jeito invulgar para ensinar pequeninas e fazer as respetivas coreografias. “Fui estudar, tendo sido a primeira mulher em Portugal a dispor de uma bolsa para ir para a Alemanha, para a cidade de Bremen. Estava em desporto, na vertente da patinagem, porque o curso era então diferente”.
A competição foi também e sempre uma realidade, traduzida nos inúmeros títulos de campeã nacional conquistados e na presença na seleção, representando Portugal em provas internacionais. “Aos 26 anos, em vésperas de um Europeu, parti um braço. Aproveitei para terminar a carreira como atleta. Algum dia tinha de ser”, revela, com toda a naturalidade, neste desfolhar de recordações.
A professora lecionou também na Damaia, no primeiro ano em que houve atividades extracurriculares no ensino. “Apresentei um projeto e tivemos 400 miúdos em ação. Foi no ano do 25 de Abril”. Face ao meritório trabalho desenvolvido, a Direção-Geral do Desporto, que superentendia a matéria nessa época, convidou-a para ser coordenadora da modalidade, ‘integrada’ no Ministério da Qualidade de Vida.
“Andava por todo o país a desenvolver a modalidade, mas sempre ligada ao Benfica, desde atleta a técnica. Fiz cursos em Barcelona, Itália e nos Estados Unidos da América e uma pós-graduação. Procurava evoluir constantemente e ter mais conhecimentos para continuar a ensinar”, prossegue Judith, quase a ‘chegar’ ao Algarve.
“Vim para Portimão numa fase em que houve problemas a nível de Direção no Benfica”, enfatiza, aludindo a um período em que o então presidente Vale e Azevedo até queria acabar com as modalidades amadoras. “As coisas mudaram e voltei com Manuel Vilarinho, que, entretanto, tinha assumido a presidência, mas a Escola de Patinagem de Portimão manteve-se, agora agregada ao Benfica”.
Diversos pódios a nível europeu
Foi por volta de 1994 que o novo clube, aceite de pleno direito no órgão que tutela a patinagem, começou a obter grandes resultados. “As crianças tinham muita disponibilidade, inclusive porque havia pouca oferta de outras modalidades, e criámos um autêntico viveiro no Colégio ‘A Flor’, berço de bons patinadores”. Competindo com as cores do Benfica e sob a denominação de Escola de Patinagem de Portimão-Benfica, a equipa de Judith Gomes teve vários atletas internacionais e conquistou diversos pódios a nível europeu.
A professora dedica algumas palavras a Hugo Correia, que foi campeão da Europa e hoje é médico. “O Hugo trazia medalhas de todas as provas e nos Mundiais da Austrália, onde estive com ele, obteve um excelente 5º lugar. A Ana Rita Cruz também foi uma grande atleta e campeã. E o Bruno Teodósio, que hoje ensina ‘solo dance’ em Paderne, a mesma coisa”, enumera.
Até ao mês passado Judith ainda dividia a sua atividade entre Portimão e o Benfica, mas tudo tem o seu fim. “Já cansa um bocado, mais a mais porque posso deixar de dar treinos de um dia para o outro. E chega de sacrificar o meu marido, para baixo e para cima todas as semanas, comigo, de carro, porque tenho medo de acidentes. Estava na hora de parar”, vinca, salientando que fica até ao fim da época como coordenadora da patinagem do Benfica, mas agora mais à distância. “Os treinos ainda decorrem na Avenida Gomes Pereira e fica lá uma ex-aluna minha”.
Por cá, a Escola de Patinagem de Portimão é agora um clube autónomo, recebido de braços abertos pela Associação de Patinagem do Alentejo e Algarve e com plena satisfação do município de Portimão. “A Catarina Martins está a ajudar-me nas aulas”, explica Judith, referindo-se, com gratidão, a uma ex-aluna. E as revelações não ficaram por aqui, pois, como conta, “algumas meninas do Benfica querem inscrever-se por Portimão”.
“Fazer patinagem até morrer”
Os treinos decorrem no Pavilhão Gimnodesportivo, sempre de segunda a quinta-feira, e, esporadicamente, também já se realizaram no Arena e na Quinta do Amparo. “Tenho 40 alunas, não consigo mais, face ao espaço e tempo disponíveis. Há muita gente em lista de espera”, acrescenta Judith, enumerando “outras épocas de grandes atletas e gerações de internacionais”, alunos seus que, porém, seguiram depois para a faculdade. Agora, garante, esta é uma fase mais calma. A idade das alunas oscila entre os 6 e os 17 anos, em classes de iniciação e competição, consoante o nível técnico delas. “Se vierem mais novinhas, com 4 ou 5 anos, a margem para evoluir é naturalmente bem maior”, refere.

Os objetivos imediatos são simples e naturais, assentes em “fazer o melhor possível para que a Câmara Municipal de Portimão repare e nos dê mais horas de treino”. Duas horas por dia é pouco, lamenta a professora, mesmo aproveitando todos os bocados, como chegou a suceder no verão, em que dava aulas do princípio da tarde à noite.
“Mudei os hábitos desta gente, em termos de desporto e de patinagem, e, veja, chegámos a ter 105 atletas! Os pais queixavam-se das horas tardias a que acabávamos, mas o Diamantino, o meu marido, enchia o carro e levava as miúdas a casa”, revela.
Jovial e com os olhos a transmitirem esse constante sinal de felicidade, a professora assegura que vai “fazer patinagem até morrer”, gracejando com outra expressão sintomática do seu estado de espírito: “Quando morrer, no outro dia não venho”.
Ao Portimão Jornal conta o episódio com a médica de família, que lhe disse ‘ter cliente até aos 100 anos’, em virtude do seu bom estado de saúde. Mas Judith é muito pragmática. “Quero que as minhas alunas se façam boas patinadoras e que tenham mais espaço para treinar. No ‘Março Jovem’, as atletas dos tempos da Damaia, com 60 anos e mais, vieram cá fazer exibição, e as meninas de Lisboa também”.

De resto, os planos passam por participar nas festas da cidade, “num evento organizado por nós já há anos”, bem como em todas as provas da Associação, ir a Espanha e aos Açores, a São Miguel, onde está em disputa, já em quinta edição, o Troféu Judith Gomes, num bonito reconhecimento a quem tem dedicado toda a vida à patinagem. “E vamos tentar que algumas das meninas comecem a espreitar uma ida aos Nacionais”.
O marido Diamantino e o aluno Rui Costa
Judith Gomes é casada com Diamantino Costa, um nome conhecido do futebol, que jogou no Benfica e no Portimonense entre sensivelmente 1965 e 1980. “Conheci o Diamantino quando ele foi para os juniores do Benfica. A minha ligação a Portimão nasce aí, visto que é a sua terra. Ele estava no Lar do Benfica, perto do local onde eu patinava, e o Diamantino ia lá com o Toni e o Humberto espreitarem as meninas”, conta a professora, sorridente. Quis o destino que também desse aulas a outro benfiquista famoso, Rui Costa, um médio que espalhou classe por esses relvados fora e que hoje é o presidente do clube da Luz. “O Rui Costa tinha uma habilidade nata para todos os deportos. Disse-me há pouco tempo que foi para a patinagem porque queria jogar hóquei em patins, era um maroto. E há uma história curiosa dele, a propósito dos patins rudimentares com que treinava. Informei a mãe que precisava de uns melhores e indiquei a Casa Senna ou a Socidel, as únicas lojas que em Lisboa, na altura, vendiam material desportivo. Dias depois, a mãe contou-me que ele não quis patins e preferiu uma bola de futebol”. Assim se ganhou um dos melhores jogadores de sempre do país…
“A treinadora das treinadoras”
Ana Rita Cruz, hoje responsável pela patinagem no Futebol Clube Ferreiras, guarda de Judith Gomes as melhores memórias, de todo inesquecíveis, ou não tivesse dado os primeiros passos na modalidade sob a sua orientação, durante cerca de 14 anos. “As recordações são muitas e todas boas! Fui atleta dela dos 5 aos 19 anos e lembro-me de uma professora sempre exigente, mas, ao mesmo tempo, uma amiga, com quem contávamos tanto a nível pessoal como desportivo, através dos seus incentivos e encorajamentos. Tudo isso se reflete ainda hoje no meu dia a dia e ter treinado com ela fez com que superasse todos os obstáculos. ‘Vai passar’, dizia Judith, quando algo não corria bem”. Ana Rita foi atleta de topo, com várias conquistas, e aproveita a ocasião para deixar “um grande obrigado por tudo o que me ensinou e por ter contribuído para que o bichinho da patinagem esteja sempre presente”. Sobre os 78 anos da professora, as palavras são elucidativas. “O segredo dela é a paixão! Às vezes perguntam-me como é possível ainda ensinar com a idade que tem, mas a história diz tudo, é a paixão que a move. É a treinadora das treinadoras, tantas foram as atletas que passaram pelas suas mãos e seguiram carreira”.