Rogélia Canelas Gonçalves: 80 anos a tratar da roupa dos clientes

Texto e fotos: José Garrancho


O dono chamava-se António da Silva, foi um grande tintureiro do Grandela, em Lisboa. Veio abrir o seu negócio em Portimão. Eu vim trabalhar com ele, com 17 anos. Era uma pessoa muito correta. Um dia, perguntou-me se queria aprender a tingir e respondi-lhe que era pequenina e não chegava às caldeiras. Disse-me que não havia problema, porque me arranjava uns caixotes. E assim comecei”, conta a Dona Rogélia ao Portimão Jornal. Ela queria aprender, ele era bom professor e ensinou-lhe tudo sobre os tecidos e sobre como usar os diversos produtos com os diferentes materiais. Vieram a casar e, quando Rogélia Canelas Gonçalves ficou viúva, tomou conta do negócio. E por lá continua até hoje. Com 97 anos mantém-se no ativo, com a filha Maria do Carmo, que já leva cerca de 40 anos a ajudá-la a tempo inteiro. Conseguiram cativar uma clientela que se mantém fiel e o trabalho não falta.

Quando é que mudou de tinturaria para lavandaria?
Veio o 25 de Abril e tingir foi proibido pelas leis. Mas, depois, apareceram as máquinas para a limpeza a seco e para lavar a roupa branca e tratei de pôr tudo como lavandaria. Desenvolvi isto à minha maneira, com publicidade, e cá estou. Eu trabalhava para todo o país e também para o estrangeiro. Recebia e enviava a roupa pelo correio. Era uma casa muito conhecida. Fiz publicidade no jornal cá da terra e foi uma loucura. Chegava roupa de todo o lado. Devolvíamos à cobrança, para não ficarem a dever. Por acaso, tive sorte, mas eu também não explorava ninguém.

Nesse tempo, não havia calotes?
Havia, muitos. Antes de casar, o meu marido tinha aqui um livrinho com as dívidas. Recebi todas! Um dia, ainda não era casada, vi dívidas de um médico, pessoa rica, e questionei o patrão. “É amigo, tenho vergonha de lhe pedir”. Mais tarde, perdi a vergonha e disse-lhe: “Senhor doutor, tem cá uma dívida muito atrasada e ainda vem trazer mais? Então, paga logo tudo”. Ainda me lembro das palavras dele: “Dizes bem, rapariga. Vou pagar tudo”. O meu patrão disse-me: “Você é esperta. Sem melindrar as pessoas, conseguiu o que eu não consigo”. Eu era rabina e levava os clientes todos à certa. Até hoje, ainda não houve nenhum que me fugisse à unha. Respeito-os, trato-os com delicadeza, mas têm de pagar.

As pessoas, cada vez mais, recorrem às lavandarias?
É verdade. As pessoas trabalham e, então, o tempo é curto. E nós temos uns preços acessíveis, que elas podem pagar.

E a Dona Rogélia continua a vir para aqui, todos os dias, apesar da idade?
Sim. Eu gosto muito disto. Quem me tira isto, tira-me tudo. São muitos anos; vim para aqui com 17 e nunca mais saí.

As roupas mudaram muito?
Sim. Os tecidos mudaram bastante.

Para melhor ou pior?
Alguns para melhor e outros ficaram na mesma.

Hoje, há muitos sintéticos, que antes não havia…
Foi por isso também que deixámos de trabalhar em tinturaria. Antigamente, era lã, linho, algodão ou seda. Os sintéticos aceitam tinta, mas davam muito prejuízo a quem fosse trabalhar com eles. Para as fábricas, é fácil, mas para quem vai tingir, é muito mais difícil. As tintas, por si só, não se agarram aos tecidos. São necessários os ácidos, como o sulfato de sódio cristalizado e outros, para a tinta penetrar nos tecidos. Por exemplo, a lã pura levava ácido sulfúrico, mas nem sempre. Dependia da anilina. Se fosse azul forte, levava ácido acético. Os químicos variavam com as cores e com os tecidos. No caso do castanho-claro, já não se podia usar ácido sulfúrico; tinha de ser ácido acético. A seda natural não podia levar qualquer ácido; só anilina e sulfato de sódio cristalizado.

Era necessário grande conhecimento e técnica apurada?
Claro. As temperaturas também mudavam, consoante os tecidos. A lã pura levava a temperatura alta, para não largar. As sedas e o algodão, temperaturas mais baixas. Há temperaturas que fazem a lã esticar e outras, que a fazem encolher. Mas tudo por causa das tintas. Havia um fornecedor da América que tinha umas anilinas bonitas, mas, se não tínhamos cuidado, encolhia tudo.

Então, voltando à lavandaria, como foi a mudança?
Vieram dois agentes, de Lisboa, fazendo uma proposta para uma máquina de limpeza a seco, duas de lavar, uma secadora, duas de passar e um manequim para passar os fatos e os casacos. Eu disse-lhes que era muito dinheiro e que podia pagar-lhes apenas metade, pois não queria ficar desprevenida. Disseram-me que montavam a lavandaria e que eu logo lhes pagava. Assim foi: dei-lhes uma entrada grande e, depois, fui pagando aos poucos. Mais tarde, adquiri máquinas Miele, muito boas, e fiquei com uma bela lavandaria. Disse-lhes que não podia pagar-lhes a pronto e responderam-me que não havia problema, pois sabiam que eu não tinha dívidas.

Faltavam os clientes para pôr a lavandaria a trabalhar em pleno?
Fiz publicidade numa televisão em Espanha, nos guias turísticos e a casa está conhecida mundialmente. Tenho feito muito por ela.

Temperatura e detergentes são dois fatores importantes?
Lavamos entre os 30 e os 40 graus centígrados, porque as temperaturas mais altas cozem e encardem a roupa. Se o detergente não for bom, mais a água quente, mais a lixívia, é uma desgraça. Nunca se deve usar a lixívia com água quente. Também temos sabão líquido. Mas, em 99 por cento das lavagens, usamos detergente em pó. Para já, não se pode pôr muito, pois são muito concentrados e fazem demasiada espuma. Tem de ser aquela medida-padrão.

As pessoas costumam dizer que, se não fizer espuma, não lava.
Não é bem assim. A espuma tem a ver com a concentração do produto, o que faz aquela saponária. Mas não é a espuma que lava. E a mesma quantidade de produto, com roupas diferentes, dá uma quantidade de espuma diferente. E embora a água da rede, atualmente, seja muito melhor do que no passado, a lavandaria possui um filtro para melhorar a água que entra e é feita uma lavagem mensal a todas as máquinas, para remover algum calcário e o possível cheiro deixado pelas roupas. Possuímos duas máquinas de lavar de 15 quilos, quatro de 8 quilos, uma secadora e ainda temos o quintal grande, lá fora, para estender a roupa, poupando o secador e a roupa.

E que tipo de serviço fornecem?
Tudo. Há quem deseje apenas lavar, ou apenas secar, ou o serviço completo. Outros, é só para passar a ferro. Aceitamos tudo. Agora, a roupa branca é mais para passar, porque as pessoas estão no fundo de desemprego e têm tempo. Quando começam a trabalhar, é para fazer o serviço completo.

Hotel Americano

Segundo revelam mãe e filha, as instalações que ocupam pertenciam ao (possível) primeiro hotel no Algarve, o ‘Hotel Americano’, um projeto de emigrantes portugueses que não veio a concretizar-se. Compraram o terreno, que se estende até à Rua D. Maria Luísa, construíram o imóvel, com quartos no primeiro andar e cozinha, restaurante e salão de chá, no rés-do-chão. Deixaram um familiar encarregado de ir comprando os terrenos ao lado, para ampliar o edifício e construir jardins e piscina. Segundo os mais antigos, este tinha uma fachada espetacular. Consta que o dinheiro sumiu e nada mais foi adquirido pelo familiar. Quando voltaram e viram que tinham sido enganados, não quiseram saber mais do hotel. Também nos contaram que os monchiquenses com dinheiro vinham de burro ou de bicicleta, que deixavam no quintal, entrando pela taberna, que ficava na rua D. Maria Luísa.

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