‘Agarrados à Net’ reflete sobre uso excessivo de ecrãs e ‘cyberbullying’

Fotos: CM Lagoa

Em entrevista ao Lagoa Informa, Tito de Morais e Cristiane Miranda alertam que o envolvimento dos pais no acompanhamento da vida digital dos filhos é essencial. Nas sessões que promovem e que decorreram nas escolas do concelho, no âmbito do projeto ‘Agarrados à Net’, conversam com os alunos para perceber quais as preocupações existentes e para aconselhar sobre os cuidados a ter. Também neste contexto terá lugar no dia 3 de junho, às 18h00, no Auditório Carlos do Carmo uma iniciativa dirigida aos pais.

As ações que desenvolvem no ‘Agarrados à Net’ centram-se em dois públicos distintos?
Tito de Morais:
Sim. Trabalhamos com alunos a partir do 5º ano e, em Lagoa, vamos trabalhar três temáticas. Uma é a prevenção da utilização excessiva dos ecrãs por crianças e jovens, a outra tem a ver com a prevenção do ‘bullying’ e do ‘cyberbullying’ e, depois, também com os alunos do Ensino Secundário falámos sobre como prevenir os impactos negativos da pegada digital que todos nós deixamos quando usamos estas ferramentas. Para os pais, teremos a sessão ‘Pais digitais pela parentalidade digital positiva’, no dia 3 de junho, onde os alertamos para os impactos negativos da utilização excessiva dos ecrãs e como preveni-los.

Qual a importância de envolver os pais nestas ações?
Cristiane Miranda:
É fundamental chegar aos pais. Temos ouvido miúdos muito pequenos, com situações em que percebemos que não dependem só deles. Ainda recentemente estivemos com uma turma onde perguntámos: “Vocês gostariam que vos tivessem exposto menos aos ecrãs?”. Eram miúdos que frequentam o 10º ano e a maior parte deles disse que sim. Isto vem dos pais. Eles, com 14 ou 15 anos dizem: “Neste momento já não há nada a fazer para nós. Já estamos tão habituados a isto que agora não adianta tirar”. Está a começar com miúdos demasiado novos e sem os pais terem ideia do que os filhos andam a fazer. Também estivemos com uma turma de 5° ano, na semana passada, onde um miúdo de 11 anos nos dizia que joga um determinado jogo que é para uma faixa etária a partir dos 18 anos. Os pais não fazem a mínima ideia do que eles jogam, dos conteúdos que os jogos têm ou que há classificações etárias para jogos. É fundamental alertar os pais, sensibilizá-los e informá-los para esta questão relacionada com a gestão do tempo que os filhos passam online.

Então segundo o que contou aqui, posso deduzir que os alunos acabam por estar mais predispostos a debater estas questões e até a entender que há uma certa dependência? Mais depressa até que os pais?
Tito de Morais:
Sim, muitas vezes sentimos isso. E digo isto devido à metodologia que seguimos nas nossas sessões, porque não vimos falar ‘para’ crianças, mas ‘com’ crianças e jovens. Queremos ouvir as suas perspetivas e as nossas sessões são muito interativas, o que potencia a que eles se abram e confidenciem muitas situações, sejam aquelas que se prendem com a utilização excessiva, sejam as que se prendem com o ‘bullying’ e com o ‘cyberbullying’, reportando casos que acontecem na escola, mas sobre os quais o estabelecimento não tem conhecimento, porque normalmente eles não os denunciam. Com a nossa presença, os miúdos sentem que estamos lá para os ouvir e confidenciam. Estivemos no outro dia numa escola em que houve um jovem que nos reportou uma situação, sobre a qual o aconselhamos a procurar o psicólogo da escola. No dia seguinte recebemos uma mensagem a dizer ‘segui o vosso conselho, fui falar com o psicólogo da escola e ajudou-me muito”. É este tipo de abertura, de não ir para lá como preletores, com discursos moralistas do ‘não devem fazer isto’, ‘não devem fazer aquilo’.

Qual consideram ser o maior desafio para os pais?
Cristiane Miranda:
Por um lado, é impor regras de utilização destas tecnologias. É ter tempo para acompanhar os filhos e, aqui, temos que perceber que os pais andam muito ocupados, não têm tempo, mas que não é necessariamente também verdade, porque, às vezes, vemos os pais, ao fim de semana, a andar pelo ‘shopping’. Há sacrifícios que têm de ser feitos e quem é pai e mãe tem mesmo de que ter tempo para acompanhar os filhos na sua vida toda, incluindo a vida digital.

Os pais devem também ser disciplinados no que toca ao uso do telefone?
Cristiane Miranda:
Os pais e a sociedade não estão a ser o melhor exemplo para os jovens. Não tenho a mínima dúvida que seja verdade. Mas uma das grandes dificuldades dos pais é conseguirem acompanhar efetivamente toda esta evolução. A nós, ninguém nos ensinou. Andamos aqui a tentar aprender e, quando estamos a conseguir aprender alguma coisa sobre os telemóveis, aparecem as redes sociais, tipo um Facebook. Andamos a tentar perceber o Facebook e, quando começamos a perceber, vem um Instagram, depois o TikTok, a Inteligência Artificial, e a realidade virtual. É tanta coisa, que efetivamente pode ser complicado para os pais manterem-se a par de toda esta evolução. Mas, hoje em dia, os pais já não se podem pôr naquela posição do ‘eu não percebo nada disto’. Têm mesmo de fazer um esforço para acompanhar, para perceber o que os filhos fazem. Nas nossas sessões dizemos: “Tirem a tecnologia da equação”. Porque o que estamos a falar é de educação. A tecnologia veio complicar, mas nós continuamos a falar de educação. E perguntamos muitas vezes aos pais: “Quem é que hoje está a passar os valores aos seus filhos? São vocês ou são os ‘influencers’ e os ‘TikTokers’ desta vida?”. Acredito que a maior parte dos valores estão a ser passados por estas redes sociais, por estes jogos online e por esta tecnologia.

Os jovens têm noção dos riscos que correm?
Tito de Morais:
Eles têm noção dos riscos. Acham que nós, os adultos, somos muito exagerados e acreditam que as coisas más só acontecem aos outros. E essa é uma perceção que, muitas vezes, alguns pais também têm. Muitos optam por abordagens parentais facilitadoras, são os chamados ‘pais facilitadores’. Ou seja, aqueles que, ao fim ao cabo, entregam os filhos à internet, porque acreditam que eles se conseguem autoproteger.

Mas há situação um pouco mais complicadas…
Tito de Morais:
Infelizmente, há. Temos passado por centenas de escolas, de norte a sul do país, e temo-nos deparado com situações preocupantes, como crianças que desde idade muito tenra partilham fotografias íntimas com colegas, que conversam e marcam encontros com pessoas que conhecem só através da internet, que usam a internet para ofender, humilhar, agredir outros colegas. Sentimos duas coisas que nos preocupam muito. Por um lado, uma certa desesperança em muitos dos miúdos com que nos encontramos nestas sessões, que sentem que não têm objetivos de vida para alcançar. Limitam-se a viver. Por outro lado, algum distanciamento dos pais, e aqui ‘algum’ é capaz de ser até de menos, relativamente à utilização que os filhos fazem da internet. Veja esta série que foi muito falada sobre a adolescência. Traz uma mensagem essencial que é a importância do acompanhamento dos pais à vida online dos filhos. Infelizmente, vimos a série ser usada para promover o medo, a proibição dos telemóveis nas escolas, para aumentar a idade do uso das redes sociais, mas vemos pouco ser usada para alertar os pais para a importância de acompanharem os filhos nesta utilização. Um terceiro aspeto que sentimos é uma grande falta de empatia, de miúdos já em idades muito tenras que são indiferentes ao sofrimento do outro. E isto preocupa-nos bastante. Achamos que vem muito da influência dos pais, mas também por aquilo a que se chama ‘efeito de desinibição da internet’ e que leva a que as pessoas façam e digam coisas que presencialmente não o fariam.

Quais são os sinais a que os pais devem estar atentos para perceber se há algo a acontecer com os filhos?
Cristiane Miranda:
Principalmente, alterações do comportamento. Pode ser apenas um ‘amuo com um namoradinho’ ou outras coisas normais, mas a mudança de comportamento geralmente tem algo por trás. Se as crianças estiverem a ser aliciadas ou se estiverem a sofrer algum tipo de ‘cyberbullying’… o comportamento é mesmo para prestar atenção, para averiguar. Não é para partir logo do princípio que o filho está nesta situação. Não! Há que tentar perceber primeiro o que pode ter provocado essa mudança. E tanto pode ser, de repente, estar mais tempo no telemóvel ou, pelo contrário, já não querer estar. Também pode ser o uso de linguagem pouco própria da idade, o que pode indiciar que alguém esteja a manter contactos online para o abuso sexual de crianças e jovens. Temos, sobretudo, que garantir aos nossos filhos que, connosco, estão num porto seguro, que podem contar-nos tudo, por pior que seja, porque vamos estar lá para ajudá-los. Não quer dizer que não sofram as consequências da asneira, mas, às vezes, essas consequências já são castigo suficiente. Se uma criança pede ajuda, porque está com um problema ou fez uma asneira, ela já está a dar um passo importante para reconhecer que o fez.

CAPACIDADE DE REFLEXÃO E REGULAMENTAÇÃO
Este novo paradigma dos vídeos curtos e do imediatismo promove as dificuldades de aprendizagem e de concentração?
Cristiane Miranda
: Sim, completamente. Notamos isso nas nossas ações nas escolas. Os miúdos já não conseguem ouvir alguém a falar dez minutos, porque já estão a desligar. Este hábito dos vídeos muito curtos, de coisas muito seguidas, com um vídeo a seguir a outro, mesmo a nível da dopamina… são estímulos muito rápidos e sempre coisas novas e diferentes, e eles já não têm capacidade de prestar atenção, de aprofundar conhecimentos. Se lhes damos um vídeo de três minutos já começam a ‘bufar’. É o mesmo com as notícias e isto é quando as leem. Só veem o título e, quando muito, o primeiro parágrafo. Já nem sequer se preocupam em aprofundar conhecimento e isso é preocupante.

Estão a perder a capacidade de reflexão?
Cristiane Miranda:
Estão a perder a capacidade de prestar atenção, de refletir, de aprender e aprofundar conhecimento. Estão com dificuldade em ter um pensamento crítico sobre o que estão a ler, a ver e da informação que estão a receber. Acreditam em tudo o que veem, partilham tudo e mais alguma coisa, sem pensar nisto a vários níveis, como a empatia. Não pensam, por exemplo: “Espera, o que estou a partilhar aqui é algo que pode prejudicar outra pessoa?”. Eles nem querem saber disto. É para rir, todos partilham, então vamos partilhar também. Só que isto também tem a ver com os valores. Mais uma vez estamos a falar de crianças e chegamos aos adultos, não é? Tomemos como exemplo o caso daquela jovem que se foi encontrar com um ‘influencer’ em Loures, que acabou por ser violada por quatro homens, e as filmagens vão parar à net: Mais de 30 mil pessoas foram ver e ouvir e ninguém denunciou? Vai dizer-me que quem viu aquele vídeo eram apenas crianças e jovens?

Devia existir aqui uma atenção maior à regulação?
Tito de Morais:
Sim. Estas questões têm estado a ser legisladas sobretudo a nível europeu, pela Comissão Europeia. O problema é que antes de dar um passo, esta entidade tem de pedir autorização. E são processos muito longos, que não respondem às necessidades mais recentes, porque estamos a falar de questões que estão permanentemente em evolução. Nesse sentido é importante que as legislações locais também complementem as falhas que vão existindo e que vão sendo detetadas ao nível da legislação europeia. 

Como por exemplo?
Tito de Morais:
A penalização dos fabricantes de aplicações de nudificação… Não há nada de positivo que possa resultar de usar uma aplicação de Inteligência Artificial que transforma uma foto de uma pessoa vestida numa foto de uma pessoa nua, porque isso vai ser usado para ofender e chantagear outras pessoas. Esse tipo de aplicações, pura e simplesmente, não devia de ser de todo permitido. A publicidade a essas aplicações também deveria, por sua vez, ser penalizada e a um nível mais elevado. Como estas aplicações geram fortunas, a multa não tem o efeito de dissuadir, porque são integradas nos custos operacionais. Já a cadeia, não. Quando começarmos a pôr as pessoas na cadeia, aí elas vão começar a pensar duas vezes.

Projeto foi criado há duas décadas 

Há mais de 20 anos que Tito de Morais trabalha as questões da segurança online de crianças e jovens, ajudando famílias e a comunidade escolar a lidar com um fenómeno, cuja evolução é constante. Em 2003, criou o projeto ‘Miúdos Seguros na Net’ e, em 2021, quando conheceu Cristiane Miranda, surgiu a ideia de desenvolver um outro projeto que promovesse o bem-estar digital. Foi assim que nasceu ‘Agarrados à Net’, que conjuga ‘Cristiane Miranda Coach’ e ‘Miúdos Seguros na Net’.

Albufeira foi ponto de partida no Algarve

No ano passado, os responsáveis por esta iniciativa foram convidados por uma organização juvenil para falar com um grupo de alunos da Escola Secundária de Albufeira. Uma das professoras que acompanhou os estudantes nessa ação, gostou da abordagem e desafiou-os a regressar para desenvolverem esta ação no Agrupamento de Escolas a que ela pertencia. E, nesse âmbito, fez também contactos com outros estabelecimentos, o que levou a que fossem promovidas ações aos três Agrupamentos daquele concelho. Na semana anterior, estiveram ainda em Olhão com um outro projeto que desenvolvem, os ‘Super Searchers’, que visa prevenir e combater os conteúdos falsos, numa ação dirigida a professores. Esta semana foi dedicada a Lagoa, onde já tinham estado em abril e este mês. Com o apoio do município, a ação envolveu diversos estabelecimentos escolares. Regressam a 3 de junho, entre as 18h00 e as 20h00, com uma sessão para os pais, no Auditório Carlos do Carmo.

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