Álvaro Faustino: “Brinquem, respeitem, trabalhem e sejam sempre muito felizes”

Texto: Hélio Nascimento | Fotos: Portimão Jornal


Álvaro Faustino é uma figura incontornável da cidade de Portimão, querido e respeitado por todos aqueles que o conhecem, que não conseguem ficar indiferentes ao humor e à alegria de quem espalha gratidão ao balcão de ‘A Cozinha’ e nos muitos locais que visita e frequenta, seja pela pura diversão ou pelo caráter mais social de um qualquer evento. Álvaro está prestes a fazer 88 anos, trabalha há 75 e há 49 que teve o seu primeiro negócio na cidade.

A sua história de vida é deliciosa e não admira que o livro ‘Memórias de um refugiado com rótulo de retornado’, escrito pelo próprio, já vá na terceira edição, agora na recente publicação de abril deste ano.

“Meus queridos familiares e amigos, quero festejar convosco a minha felicidade e alegria, com a bênção de Deus”, pode ler-se logo a abrir, numa espécie de ‘rótulo’ que o acompanha desde sempre. Não é por acaso, naturalmente, que durante a longa e apaixonante conversa que teve com o Portimão Jornal tivesse deixado bem claro que se considera “um privilegiado e um protegido”, um homem feliz, realizado e eternamente grato a todos os minutos da sua existência.

“Estou à beira dos 88, sim, mas só quero morrer daqui a 150 anos!”, exclama, com uma inconfundível gargalhada, algo que repete vezes sem conta e que faz parte da sua identidade. O diálogo decorre na icónica casa da Rua Direita, onde o frango assado é ‘rei e senhor’ há 47 anos, dois anos depois de ter lançado esta aposta na comida para casa, então na Rua Infante D. Henrique. Muito antes disso, teve negócios em Porto Alexandre e em Moçâmedes e experimentou na pele as agruras de quem abandonou Angola à pressa e com pouco mais do que a roupa que tinha vestida.

Debaixo das escadas do Hotel Globo
“Vim cinco meses depois da independência. Tinha dito que quando um dia saísse da minha terra era de tanga e assim foi”, conta Álvaro, num desfile de momentos e acontecimentos que quase dispensa perguntas. “A guerra é um jogo de interesses, nunca vi ninguém metido na guerra que não tivesse enriquecido. Não é uma crítica, só estou a constatar a realidade”, vinca, avançando de imediato com uma das suas tiradas favoritas: “Gente há muita, pessoas é que há poucas”.

Natural de Porto Alexandre, no sul de Angola, o nosso ‘portimonense’ Álvaro Faustino teve mesmo de deixar as suas raízes, embora pensasse, numa primeira análise, que saía durante uma temporada e voltaria quando as coisas acalmassem. Na altura já a viver e trabalhar em Moçâmedes, começou por experimentar a dor da separação. “Tinha dois irmãos, um gémeo e o outro mais velho, os meus pais eram de Olhão e tinham comércio desde 1955. O meu pai não sabia ler, eu tenho a quarta classe”, prossegue, sem mágoas, até porque, como diz, “Deus ajudou”.

De Moçâmedes seguiu para a África do Sul e depois para Portugal, com a esposa Elizabete, mas sem as duas filhas e o inseparável Ernesto, o irmão gémeo. “Nunca chorei e devo muito à minha mulher. Trabalhava num armazém, ia ser gerente”, recorda, na sequência de uma mocidade feliz em Porto Alexandre e dos primeiros empregos na ‘Ferreira e Faustino Lda’ e no supermercado Gémeos, o que o levou, inclusive, a ser disputado por outras entidades patronais.

“Para ter saúde preciso de ter dinheiro, que não tem nada a ver com ganância. Mas sou uma pessoa protegida desde o meu nascimento. Brinquem, respeitem, trabalhem e sejam sempre muito felizes”, sublinha, enumerando alguns princípios fundamentais da sua vida.
“A Beta (a esposa) é daqui, de Portimão, e cá conseguimos chegar. Fomos para o Hotel Globo, não havia quartos e ainda dormimos debaixo das escadas, um problema que acabou por ser resolvido com o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN)”, diz o homem que trabalha desde os 12, 13 anos e que sempre lidou com várias camadas sociais.

No carro de mula para ir buscar mercadoria
A aventura ia prosseguir. “Dei uma volta por aqui e senti que, em relação à minha experiência no ramo comercial, havia um atraso considerável. Mesmo sem dinheiro vi que tinha hipóteses. Comecei a vender panelas e depois abri um negócio na Rua Infante D. Henrique, fruto da venda de um carro que, entretanto, despachara para Lisboa. Montei uma espécie de minimercado e comecei a assar frangos. Ah, devo muito à minha mulher! Às seis da manhã estava na padaria para ir buscar pão, porque não se faziam entregas, e ainda tinha tempo para dançar. Sou feliz”, repete.

Da Infante D. Henrique para a Rua Direita foi um saltinho, na sequência de um trespasse concretizado num ápice. Dois anos depois de ter chegado a Portimão, em 1979, Álvaro Faustino inaugura então ‘A Cozinha’, local emblemático da cidade e o primeiro a vender frangos assados e outras comidas para fora, quiçá uma das maiores conquistas do empresário, que viveu seis meses no estabelecimento da Infante D. Henrique e seis anos num quarto, antes de ter casa própria.

“Fui sempre feliz. Tudo depende de como falamos com as pessoas. O segredo do sucesso? O meu irmão gémeo e eu fizemos um mundo. Recebemos e damos carinho. Fomos felicíssimos. Cheguei a alugar o carro de mula para ir buscar mercadoria, na mercearia, onde vendíamos de tudo um pouco. Hoje há tanta felicidade que não se consegue fazer nada”, acentua, num estilo meio brincalhão que não o impede, contudo, de dizer muitas verdades.

Álvaro abriu outra ‘Cozinha’, na Rua da Quintinha, há 33 anos, entregue à filha Sílvia, a mais nova. A Carla, a mais velha, não está no ramo. Tem quatro netos e uma bisneta e não esquece a Augusta, que trabalha consigo há mais de meio século. Quando completou 80 anos, fez sociedade com as duas filhas.

Um exímio dançarino
“Para sermos felizes temos de olhar pelos outros. Temos de divertir as pessoas e desfrutei de coisas maravilhosas por esse mundo. Deus dá-me força e o carinho dos amigos é fundamental e revigorante”, garante, ao mesmo tempo que aponta para algumas das frases que emolduram o estabelecimento, tipo ‘esta cozinha é temperada com amor’ e ‘obrigado pelo vosso carinho’.

As viagens e o pezinho de dança são paixões assumidas por Álvaro Faustino, sempre na companhia da sua inseparável Beta, a quem, amiúde, dedica palavras elogiosas. “Hoje danço menos. Antes, era às sextas, sábados e muitos outros dias. Saíamos do trabalho e íamos dançar, tipo entrar e sair da loja de madrugada, eu, a Beta e a Augusta”, recorda, apontando vários locais de eleição, das coletividades populares ao Hotel Júpiter. Onde houvesse música, lá estava ele, revelando, a propósito, dotes de exímio dançarino.

“Lidei sempre com todas as pessoas, de todas as camadas, e, como somos muito comunicativos, passei por coisas maravilhosas, com as crianças e os adultos. Quero viver bem e com muita gratidão! Ainda há poucos dias fomos à Ladeira do Vau e dançámos, não obstante as dores que às vezes incomodam a Beta”, argumenta, com mais uma das suas caraterísticas gargalhadas.

De facto, se rir é um bom remédio, Álvaro ‘nunca’ está doente. “Desde que nasci que sou sempre assim. A gargalhada é uma imagem de marca e brinco muito, mas sem maldade”. O irmão gémeo vem de novo à baila, precisamente porque também dava as suas gargalhadas e levava a que muitas pessoas questionassem qual dos dois estava a produzir aquele som. “A minha gargalhada é mais sonora e sou mais espalhafatoso”, prossegue, lamentando o falecimento de Ernesto, ocorrido há cerca de seis anos. “Dávamos a vida um pelo outro”.
 
“Os meus patrões são os meus clientes”
À porta de ‘A Cozinha’, Álvaro recebe os cumprimentos de uma família e uma menina lança-se para os seus braços. É raro o cliente que não o conhece e não estabelece, na circunstância, laços afetuosos. Os frangos, esses, continuam a sair a bom ritmo. “Vendia num fim de semana o que agora vendo em quase 15 dias”, revela, mas sem se queixar, até porque, como faz questão de frisar, “vendo ainda muito bem”.

O estabelecimento fecha aos domingos à tarde e às segundas-feiras, mas durante muitos anos estava aberto todos os dias. O frango assado sempre foi o rei e a procura era tanta que Álvaro chegou a ter a chave do aviário para se abastecer em caso de necessidade.

“Sempre me ajudaram e a confiança era mútua. Até cheguei a fazer casamentos”, atira, entre mais duas gargalhadas, lembrando os tempos em que “só havia lojinhas” e pouca noção do negócio. A entrada em cena de novos comerciantes e das grandes áreas comerciais não beliscaram o apetite pelos frangos do senhor Álvaro, como muitas pessoas o tratam. “Os meus patrões são os meus clientes”, garante, reconhecido.

“Sou uma pessoa realizada. Desde miúdo que sou um protegido na vida, um privilegiado. Trabalhei desde muito cedo, ganhei dinheiro, em Porto Alexandre, Moçâmedes e agora aqui. Sou um abençoado. E só tenho de agradecer às pessoas, ao carinho que me dão, pelas quais nutro uma gratidão enorme! Para viver bem, não posso fazer mal a ninguém”, conclui, sorrindo abertamente, qual ponto final num testemunho muitas vezes enternecedor.

Álvaro Faustino recebeu em 2016 a Medalha de Mérito Municipal Grau Prata, altura em que a Câmara distinguiu cidadãos e instituições que, pelo seu percurso e atividade, têm dignificado Portimão e o Algarve. Um dos muitos prémios que integram a sua vasta coleção de taças, troféus ou simples lembranças. Na descrição destes momentos, aliás, a alegria é visível à distância. “A Medalha da Cidade foi especial, sem sombra de dúvidas. Mas vou a um cruzeiro ou estou num hotel, por exemplo, e tanto o ‘staff’ como as bailarinas me enchem de mimos. Já fui casal ideal e mister cruzeiro, embaixador da alegria e rei da festa, e, na circunstância, tenho recebido imensos prémios e taças. Numa ocasião levei coisas da minha terra, que é Portimão, tipo pratos e chaminés, que distribui em Itália e Espanha. Várias entidades, como a Igreja da Nossa Senhora da Conceição, o Boa Esperança, o Rotary e a Sociedade Vencedora, também têm reconhecido o meu percurso”, assinala, falando do “pequeno museu de cerca de mil peças que tenho em casa, com este tipo de ofertas”. Álvaro volta a enfatizar a gratidão que sente, “que é incomensurável”. E, bem ao seu estilo, com o humor e graça que o caraterizam, diz possuir “a felicidade de brincar com outras mulheres”, com o beneplácito da esposa Beta. “Até houve uma moça que me colocou um colar ao pescoço e obrigou-me a levá-lo comigo”.

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