O brilho dos algarvios na Volta a Portugal

Texto: Hélio Nascimento


Ricardo Mestre (2011), João Rodrigues (2019) e Amaro Antunes (2020) têm o seu nome inscrito na lista de vencedores da Volta a Portugal, com a curiosidade de serem os três algarvios. Ou seja, duas vitórias nos dois últimos anos e três nos derradeiros dez sugerem que a província dá cartas na ‘Grandíssima’, a prova rainha do ciclismo nacional, sobretudo porque só um outro português, Rui Vinhas, conseguiu a mesma façanha no registo da década, sendo os restantes de nacionalidade espanhola. 

A Algarve Vivo foi à procura de razões para este sucesso e ouviu Vidal Fitas, diretor desportivo do Tavira e referência da modalidade, e Rogério Teixeira, um dirigente com história no mundo das bicicletas.

Para Vidal Fitas, “têm ganho porque surgiram integrados numa geração que é muito boa e também porque são donos de uma mentalidade diferente”. O homem que dirigiu aquele trio no Tavira (hoje representam a W52-FC Porto) desenvolve a ideia. “Se calhar, não são melhores ou piores do que outros algarvios. A geração é que é boa e a isso junta-se a tal mudança de mentalidade e uma melhoria clara das condições de treino”, o que permitiu que as equipas evoluíssem muito mais, até aos dias de hoje, sendo “mais organizadas e com um maior acesso ao conhecimento, o que faz toda a diferença em relação à evolução dos atletas”. 

Rogério Teixeira junta mais algumas justificações, enfatizando a “transição dos escalões de formação para o profissionalismo”. Além disso, “tiraram também partido de as equipas algarvias, nomeadamente o Tavira, trabalharem muito bem nas camadas mais jovens”, explica. “Temos mais dois ou três corredores a despontarem, casos do Emanuel Duarte e do Rúben Simão, por exemplo, mas o Mestre, o João Rodrigues e o Amaro são de uma geração fantástica e têm brilhado tanto a nível nacional como internacional. Aliás, não é por acaso que já o demonstraram frente aos principais nomes do pelotão mundial, como tem sucedido na Volta ao Algarve”. 

No entender de Vidal Fitas, “a qualidade do algarvio não é de agora”, dando como exemplo Jorge Corvo – brilhou na década de sessenta – e ‘outras figuras’ do ciclismo nacional. “Se no meu tempo a organização e o trabalho das equipas fosse diferente, mais corredores teriam certamente obtido grandes resultados”. Rogério Teixeira fala também do clima e das estradas do sul de Portugal, que “são favoráveis” e podem ajudar a esse desenvolvimento, bem como a existência de média e alta montanha na região, o que permite diversificar o treino sempre em boas condições.  

Pouca quantidade e… muita qualidade 
Além do Tavira, também o Louletano tem um papel primordial no destaque que os algarvios têm conseguido obter a nível nacional. “Nunca se elogia muito o trabalho de formação feito no Algarve, apesar de depararmos com dificuldades bastantes superiores às registadas no Norte e no Centro, zonas em que o ciclismo tem mais tradição”, opina Vidal Fitas, que passa a explicar.

“Nunca se elogia muito o trabalho de formação feito no Algarve, apesar de depararmos com dificuldades bastantes superiores às registadas no Norte e no Centro, zonas em que o ciclismo tem mais tradição” Vidal Fitas

“Nos últimos 11 anos apareceram três algarvios a ganhar a Volta num universo de 40 ou 50 ciclistas, não de 500, como sucede em outros locais do país, que têm mais população. Num pelotão de 200 unidades, por exemplo, 180 são dessas zonas”, diz, aludindo às maiores dificuldades em trabalhar com uma base reduzida de potenciais valores, como sucede no Algarve. 

Apesar desta pouca quantidade de corredores – mas muita qualidade – no extremo sul do país, Vidal Fitas sabe que “é mais fácil ganhar quando se está numa equipa forte”, referindo-se a Rodrigues e Amaro, que venceram a Volta ao serviço da W52-FC Porto, a equipa que tem dominado o ciclismo português. “A modalidade começa por ser individual, só que, depois, é necessário que o coletivo funcione. Veja-se a recente vitória do Amaro e a ajuda que teve do Rodrigues e do Ricardo Mestre. Quando tens bons gregários para controlar o pelotão as coisas ficam mais fáceis”.

Ainda sobre este tema, Rogério Teixeira realça que o facto de “integrarem uma equipa poderosa, como é a W52-FC Porto, também dita leis, mas eles já revelaram capacidade suficiente para ganhar a Volta pelo seu valor intrínseco. E lembro-me do caso do Amaro, quando respeitou a disciplina da equipa no ano em que venceu o Alarcón”. 

Acesso ao conhecimento foi fundamental 
Vidal Fitas e o Tavira ganharam a Volta a Portugal entre 2008 e 2011, através de David Blanco (por três vezes) e Ricardo Mestre. Foram anos fantásticos, reconhece o diretor desportivo. “A mudança de mentalidade e a melhoria de condições, repito, foram fundamentais. Houve também a felicidade de juntar um grupo excecional”, sublinha. Passados quase dez anos, prossegue, “penso que o futuro do ciclismo algarvio está assegurado”, referindo-se a valores como João Rodrigues, Emanuel Duarte, Rúben Simão e Rafael Lourenço. 

“Nesses anos vitoriosos reunimos conhecimento à volta da equipa que ajudaram a potenciar a qualidade dos atletas. O Samuel Caldeira e o Henrique Casimiro também figuram neste lote. Foi gente que evoluiu muito, à conta da metodologia de trabalho, que, por sua vez, ajudou a detetar talentos”, explica Vidal Fitas.

Em particular, salienta a importância de dispor de dados fisiológicos para preparar um projeto de dois a quatro anos, com planos de treino detalhados e testes físicos apropriados. Foram esses dados, garante, “a permitir que esta geração pudesse despontar”.  
 
José Martins e Jorge Corvo no pódio 
Curiosamente, as primeiras vitórias de um algarvio na Volta a Portugal datam dos distantes anos de 1946 e 1947. Foi José Martins, natural de Paderne, a cometer a proeza. A este propósito, Rogério Teixeira lembra-se de que foi “alvo de uma homenagem, já idoso, na sua terra natal”, mas escasseiam outras memórias.

“O Mestre, o João Rodrigues e o Amaro são de uma geração fantástica, têm brilhado tanto a nível nacional como internacional e não é por acaso que já o demonstraram frente aos principais nomes do pelotão mundial” Rogério Teixeira

Em relação a Jorge Corvo – obteve três segundos lugares (59, 63 e 64) na Volta, andou de amarelo, ganhou várias etapas e até a Volta a São Paulo – o comentário é consistente. “Não ganhou a Volta por pouco, embora fosse um ciclista fabuloso. Se estivesse numa equipa mais forte…”, comenta, aludindo aos poderosos blocos de Benfica, Sporting e FC Porto, onde, na altura, se destacavam Peixoto Alves, João Roque, Joaquim Leão, Sousa Cardoso e Carlos Carvalho, entre outros. 

Volta ao Algarve adiada para o mês de maio

A suspeita andava no ar e acabou por concretizar-se: a Federação Portuguesa de Ciclismo, organizadora da Volta ao Algarve, informou todos os parceiros e as equipas inscritas de que a corrida não poderá realizar-se na data prevista, 17 a 21 de fevereiro. O adiamento é uma decisão difícil, mas que se tornou inevitável, dada a evolução da situação pandémica em Portugal.

A organização da Volta ao Algarve está consciente de que estavam criadas legítimas expectativas de realização de um excelente espectáculo desportivo, face ao número e categoria de interessados e inscritos. No entanto, o contexto geral do país impõe um adiamento que sinalize o compromisso da Federação Portuguesa de Ciclismo com a defesa da saúde pública e a motivação de oferecer aos adeptos uma corrida de grande qualidade, noutro momento do ano.

Iniciaram-se imediatamente diligências no sentido de realizar a 47ª Volta ao Algarve na próxima primavera. A nova data prevista é o período de 5 a 9 de maio, embora a recalendarização dependa da consensualização com as equipas e com os parceiros envolvidos no evento, tendo também de ser aceite pela União Ciclista Internacional, dado tratar-se de uma prova do calendário UCI.

Amaro Antunes: ambição e classe sem limites

Amaro Antunes, o vencedor da Volta a Portugal do ano passado, é natural de Vila Nova de Cacela e começou a açambarcar títulos de campeão ainda na categoria de juniores. Profissional desde 2011, saiu do Tavira para uma aventura no estrangeiro, na Ceramica Flamínia-Fondriest (2013), a equipa italiana que acabou por ser uma desilusão para os portugueses que por lá passaram. De regresso a Portugal, ambicioso como sempre, voltou ao Tavira, então Banco Bic-Carmin (2014), para rumar depois à LA Aluminios-Antarte (2015 e 2016) e, posteriormente, à W52-FC Porto, onde registou vários lugares no top-10 da Volta a Portugal. Em 2017 teve um dos pontos altos da sua carreira, triunfando no Alto do Malhão, na Volta ao Algarve, numa vitória épica que escapava a um português desde 2006 (por João Cabreira), ou seja, desde que a ‘Algarvia’ passou a ser palco de excelência para os melhores corredores do mundo. No ano de 2017, aliás, venceu o GP Joaquim Agostinho, a Clássica da Arrábida e foi 2º na Volta a Portugal, ‘respeitando’ o seu colega de equipa, Raul Alarcón, que envergava a amarela. 

Tanto destaque levou Amaro Antunes de novo para o estrangeiro, mas desta feita para os polacos da CCC, onde deu nas vistas, obtendo lugares de relevo e ganhando a Volta a Malopolska.

No ano seguinte, ascendeu com a CCC ao WorldTour, a divisão máxima do ciclismo mundial, e foi aí que o trepador português voltou a justificar chamadas de primeira página: esteve seis dias no top 10 do Giro de Itália e foi terceiro numa das etapas. Em 2020 regressou à W52-FC Porto, vestiu a camisola amarela na 2ª etapa da Volta a Portugal, depois de chegar isolado ao Alto da Senhora da Graça, e nunca mais a despiu. Aos 30 anos, tem tudo para continuar a ser figura de proa no ciclismo português.

O grande Mestre e o excelente Rodrigues 

Ricardo Mestre, 37 anos, nasceu em Cortelha (Castro Marim) e ganhou a Volta a Portugal de 2011, ao serviço do Tavira, um triunfo efusivamente celebrado pelas gentes algarvias. Além desta singular proeza, venceu duas vezes o GP Joaquim Agostinho (2011 e 2012), o GP Jornal de Notícias (2019) e o GP Minho (2010). Fez grande parte da sua carreira no Tavira, esteve no WorldTour pelos espanhóis da Euskaltel e voltou a Portugal.

Desde 2016 que representa a W52-FC Porto, onde tem ganho tudo a nível coletivo. É um fantástico corredor de equipa, sendo hábito vê-lo a puxar pelos colegas, preparando o caminho para as vitórias nas etapas decisivas das grandes competições.  

João Rodrigues é o mais novo do trio de algarvios vitoriosos na Volta a Portugal, prova que ganhou em 2019. Tem 26 anos, venceu a Volta ao Alentejo no mesmo ano e também começou no Tavira. Está na W52-FC Porto desde 2016, tem rubricado desempenhos de vulto na Volta ao Algarve e é um dos mais completos ciclistas portugueses da atualidade.  

Samuel Caldeira é outro dos algarvios em destaque. Tem 35 anos, nasceu em Manta Rota e é mais um produto do Tavira. Chegou à W52 em 2015, andou de amarelo na Volta de 2019 e transporta o talismã de ter estado em todas as grandes conquistas da sua equipa nos últimos seis anos. 

Emanuel Duarte, um jovem de 23 anos, natural de Portimão, é reforço do Tavira para a época prestes a iniciar-se, depois de ter corrido pela LA Alumínios. Em 2019 venceu o Prémio da Juventude da Volta a Portugal e a Volta a Portugal do Futuro.

Os outros algarvios nas equipas nacionais são David Livramento, Valter Pereira, Rafael Lourenço, Rúben Simão (Tavira) e André Evangelista (Louletano).

You may also like...

Deixe um comentário