Opinião: ‘O Ritz do Dafundo’
João Reis | Professor
Pensei poder ser relaxante, para o leitor e para mim, um afastamento dos assuntos mais badalados desta parva actualidade – a pandemia e a política. Em vez de ‘OPINIÃO’, uma ‘croniqueta’ despretensiosa, para desopilar.
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Como acontece a muita gente, nestes tempos de clausura, também eu entrei em contacto com alguém que não via, nem ouvia, há muitos anos – um velho colega de curso, o Nogueira, de Pombal. Depois de ‘identificados’, e do ‘como é que estás?’, vieram os ‘relatórios’ do que mais nos apoquenta nesta chamada ‘3ª idade’ – a saúde – passando, a seguir, à narrativa, necessariamente resumida, de mais de meio século. Depois, vieram os “eh pá! Tu lembras-te de…?” E, aí, meus amigos, foi um caudal de recordações difícil de descrever!
O Nogueira, eu e outros 28 jovens formámos a turma do 1º ano do INEF (Instituto Nac. de Educ. Física – actualmente, Faculdade de Motricidade Humana) no princípio dos 60. Situa-se, ainda, na Cruz Quebrada, junto do Estádio Nacional em cujos campos de treino decorriam algumas aulas das ‘cadeiras’ práticas.
A partir do primeiro dia tivemos, todos, de começar a procurar alojamento; as magras mesadas com que contávamos (só uma meia dúzia seria ‘meninos de bem’, onde se contava, p. ex. o José Cid; sim, o cantor – bom moço, aliás) obrigavam-nos a desejar um quarto, a dividir por dois, de preferência… Com sorte, alguns conseguiram, também, a alimentação.
A maioria, porém, foi testando as tascas do Dafundo, nossa zona de alojamento, a cerca de 1,5 Km do INEF. Alguém ‘topou’, em certa altura, uma taberna/tasca que mereceu ser analisada – a proximidade, o preço (*), a qualidade/quantidade e o asseio q.b. eram convidativos.
Passado o portão de ferro, um quintal, que tinha, à esquerda, a taberna e, à direita, a sala de jantar e cozinha. Mobília? Uma enorme mesa rectangular, rodeada de bancos onde se sentavam 12 pessoas, à larga, ou 18, apertadinhos… Por companheiros comensais, principalmente ao almoço, tínhamos empregados da Fábrica de Baterias TUDOR, bombeiros da corporação do Dafundo e dois polícias, nos dias em que eram destacados para aquelas áreas.
As conversas, a alegria (às vezes, também a partilha de alguma tristeza…) atravessavam aquela mesa, em bom ambiente. O negócio do casal Sr. Manuel e D. Maria ia singrando, com muito trabalho; por isso, chamaram, lá da terra (arredores de ‘Biana’ do Castelo) a ‘Xenhora Conxeixão’, para ajudante da cozinha, que se tornaria figura típica ‘inesquexível’. O tasco passou a ser o nosso refeitório e ganhou um nome – ‘O RITZ DO DAFUNDO’ que, misteriosamente, assim apareceu escrito a tinta azul, na fachada.
O Baltazar, colega (de alcunha ‘o Seta-Rúbia’ – muito veloz na corrida e de cabelo ruivo) é que não gostava muito; era mais esquisito! Só lá ia, às vezes. Foi naquele dia, porque soube que o almoço seria peixe-espada grelhado, que adorava. Entrou, cumprimentou e sentou-se num espaçozinho que lhe arranjaram. Rapidamente, a Xenhora Conxeixão, deixando o alguidar onde estava amanhando mais peixe, gritou: – “Vou já xervi-lo, Xr. Baltajar!” E trouxe o prato, com uma enorme posta de peixe-espada, rodeado de farto puré de batata encimado por seis azeitonas.
Baltazar: – “Ó Sra. Conceição, não sabe que não gosto de azeitonas?” E a Conceição: – “É verdade, esquexi-me; vou já tirar”. E, metendo os dedos no puré, “arrancou” as azeitonas. “Ó Conceição – exclama o Baltazar – então está a tirá-las com as mãos, tal como estavam a arranjar o peixe?” – “O peixe está limpo; eu própria o lavei”, explicou a Conceição. Toda a assembleia “rosnou: – “Baltazar, cala-te e come!!”, a que se seguiu uma geral e sonora gargalhada.
Houvesse, naquele tempo, uma ASAE e a higiene estaria mais presente; mas, aquela tasca, ‘O RITZ DO DAFUNDO’, não teria a mesma piada!
Tão bom recordar!!!
(*) Uma refeição custava dez escudos; convertidos para a moeda actual = 5 CÊNTIMOS.
- Escrito sem a aplicação do novo acordo ortográfico